tag:blogger.com,1999:blog-60178436773828459352024-03-19T03:32:43.946-07:00NEIM - Núcleo de Estudos de Irracionalismo ModernoPaulo Ayreshttp://www.blogger.com/profile/05722111703766282633noreply@blogger.comBlogger355125tag:blogger.com,1999:blog-6017843677382845935.post-53428423658590322872024-02-27T15:08:00.000-08:002024-02-27T15:08:32.997-08:00Analisando os discursos bolsonaristas<div style="text-align: center;"><iframe allow="accelerometer; autoplay; clipboard-write; encrypted-media; gyroscope; picture-in-picture; web-share" allowfullscreen="" frameborder="0" height="315" src="https://www.youtube.com/embed/TzgEJA0VCME?si=2_RCXmhopyS5wfAa" title="YouTube video player" width="560"></iframe>
<br /></div><div><br /></div><div style="text-align: right;"> por <b>Camarada Janderson</b><br />= = =</div>Paulo Ayreshttp://www.blogger.com/profile/05722111703766282633noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6017843677382845935.post-77200875225591508042023-11-29T14:32:00.000-08:002023-12-06T14:40:08.691-08:00O racha e seu reflexo na juventude <div style="text-align: right;"><b><a href="https://ujc.org.br/sobre-o-racha/" rel="nofollow" target="_blank">União da Juventude Comunista (UJC)</a></b><br /></div><div style="text-align: justify;"><br />A Coordenação Nacional da União da Juventude Comunista (CN/UJC), organização de juventude do Partido Comunista Brasileiro (PCB) vinculada a ele histórica e organicamente por meio de seus quadros compartilhados e por submissão à sua linha política e deliberações partidárias, vem por meio desta nota se manifestar publicamente acerca do racha em andamento em nosso partido, que se cristalizou especialmente por meio da atuação da juventude fracionista cuja argumentação construída para se justificar já é de conhecimento público. <br /><br />Sabemos que esta nota é tardia. Infelizmente, houve entre os militantes restantes da Coordenação Nacional uma sobrecarga produzida pela necessidade de sustentar o trabalho organizativo da juventude a nível nacional, enquanto a grande maioria dos então membros debandavam para uma outra organização que buscava disputar e incorporar, primeiro internamente e depois publicamente, o nome e os trabalhos da UJC, desvinculando nossa organização do PCB. <br /><br />Se, por um lado, parte de nossos trabalhos foi gravemente prejudicado ou tomado de assalto pela nova organização, como nossa construção da UNE (no qual alguns dissidentes assumiram as cadeiras que legitimamente foram conquistadas com esforço coletivo e pertenciam à UJC e, portanto, ao PCB), não permitiremos que deem fim aos esforços da juventude comunista por meio de práticas oportunistas e fracionistas. Da mesma forma, não permitiremos que roubem nosso nome e história. Assim, ressaltamos que este é o posicionamento legítimo da UJC, que vem paulatinamente lutando para recuperar nossas redes e canais de comunicação usurpados, e que foi redigido pela Coordenação Nacional eleita em congresso e que goza da plenitude de seus direitos estatutários e políticos na organização, diferentemente de tantos ex-membros que hoje compõem fileiras alheias e disseminam a confusão por falsearem sua identidade organizativa. <br /><br />O racha já é um fato consumado, apesar das tentativas de manutenção da unidade da UJC a nível nacional. A organização que se constituiu com o racha do PCB – intitulada PCB-RR – forçou uma profunda ruptura no interior da UJC. Dessa forma, a CN/UJC entende que é necessário assumir postura decisiva em meio a esta crise, debatendo-a politicamente e defendendo nossos princípios organizativos: o centralismo democrático, a ligação orgânica com o PCB e o compromisso com a Revolução Socialista. <br /> </div><div style="text-align: justify;"><b>Antecedentes da crise</b><br /><br />Toda questão organizativa é também uma questão política, então não podemos iniciar o debate por outra forma que não analisando quais as teses políticas defendidas por este grupo, que passou a se constituir enquanto um partido próprio ao adotar a sigla de PCB-RR, anunciar a existência de uma Coordenação Nacional própria, criar espaços de articulação paralela em distintos estados e construir seus próprios meios de comunicação. Dentro dessas posições encontraremos as razões de fundo para a ruptura e os indícios que nos permitirão diagnosticar o futuro deste partido e do nosso. <br /><br />A primeira tese defendida pelo PCB-RR é a polêmica pública, um posicionamento retirado da literatura leninista sobre a construção do Partido Revolucionário, como um pré-requisito para organizar a disputa interna, permitindo que as ideias se confrontem livremente. Na prática, essa proposta abre alas para a organização de tendências dentro do Partido, expressas enquanto correntes de opinião e com potencial para constituírem estrutura própria. Em resumo, se trata da adoção de um princípio que regia o Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR). Este debate é, em si, relevante. A todos interessa a construção do Partido Revolucionário e nenhum comunista pode abdicar de discutir os meios necessários para essa construção, por mais difíceis e desgastantes que sejam. Contudo, essa é uma tese já debatida em congresso, tanto no XVI Congresso do PCB quanto no IX Congresso Nacional da UJC (CONUJC), e em ambos foi derrotada, com graus diferentes de maioria. Portanto, é compreendido que o intelectual coletivo que constitui a militância do PCB e da UJC rejeita essa tese, e entende que a atual forma organizativa do PCB (o Partido Comunista herdado da III Internacional) é a adequada para construir a Revolução Socialista no Brasil, e neste caso este entendimento se dá sem abrir mão da crítica e a autocritica interna constantemente praticada nas devidas instâncias. <br /><br />Contudo, embora rejeitada coletivamente, essa tese encontrou uma brecha na atual forma organizativa do complexo partidário para se expressar ilegitimamente. A autonomia relativa dos coletivos partidários, principalmente da UJC, foi instrumentalizada para construir tendências internas. Não negamos que há um descompasso na relação entre o PCB, seus coletivos e sua Juventude. Uma organização que exercita o centralismo democrático não deve se abster da crítica ou menosprezá-la. Os erros devem ser combatidos e superados. Contudo, não é negando os princípios da nossa própria organização que construiremos o caminho para superar essa contradição. Enquanto marxista-leninistas, temos o compromisso histórico de melhorar nossa organização e não cindi-la quando a conjuntura não nos favorece do ponto de vista individual. <br /><br />A segunda tese defendida pelo PCB-RR é a questão da independência proletária. Trata-se de uma contraposição importada dos nossos camaradas portugueses entre as políticas defendidas por Álvaro Cunhal e Francisco Martins Rodrigues (FMR), a frente ampla contra a independência proletária. O debate colocado é a identificação no Brasil das condições necessárias para romper com a política da frente ampla, entendida enquanto necessária no combate ao fascismo, e preparar a ofensiva proletária na constituição de um bloco de poder sob nossa hegemonia. <br /><br />Mais uma vez, a polêmica justa é deturpada em prol da ruptura. Uma vez que não há uma política de frente ampla generalizada dentro do PCB, parte-se para a criação de espantalhos. Sabemos que essa questão foi um amplo debate dentro da conjuntura brasileira nas últimas eleições e saímos orgulhosos da nossa política independente frente a hegemonia forçada do petismo, sem nos abdicar de construir as lutas unitárias com o conjunto dos movimentos sociais e partidos políticos contra o bolsonarismo. Cultivamos nossa independência e, inclusive, pautamos o acirramento das lutas de massas nas ruas quando o petismo buscava travar isso visando o cálculo eleitoral. Por conta disso, tivemos um crescimento amplo como não víamos há muito tempo, principalmente na Juventude. Não negamos a grande dificuldade que o PCB tem demonstrado para encontrar as mediações táticas diante da conjuntura nos últimos anos, mas, entre erros e acertos, reconhecemos que uma linha revolucionária acertada tem prevalecido. <br /><br />O primeiro espantalho construído foi sobre a Plataforma Mundial Anti-Imperialista (PMAI), quando a quebra de centralismo por parte do camarada Eduardo Serra foi usada para imputar um suposto giro a direita que estaria sendo planejado pelo conjunto do Comitê Central do PCB. Em seguida, dada a própria fragilidade do argumento, mudaram as acusações para a não caracterização do terceiro governo Lula pelo CC e um suposto rebaixamento tático do PCB em relação ao governo petista. Entretanto, outras ações, que dentro de uma interpretação mais estrita da independência proletária seriam condenáveis, como a participação em entidades representativas hegemonizadas pelo petismo e pela socialdemocracia (a exemplo das maiores entidades estudantis da América Latina, UNE e UBES), ou mesmo pela direita, não são sequer apontadas, dado o absurdo que seria defender essa política mais estreita na atual conjuntura. Então são apontados supostos rebaixamentos em questões onde a relação com o poder é mais distante – as relações internacionais e o governo federal – mas nas situações concretas, um alto grau de pragmatismo político é adotado pelo novo partido. <br /><br />Vale lembrar que o debate sobre o papel da UJC na UNE já foi incansavelmente realizado durante todos os anos de governo petista e amadurecido até se concretizar a mudança no 55º CONUNE, iniciando nossa retomada ativa na disputa da direção da entidade. Esta ação foi construída coletivamente e referendada em nosso VIII Congresso. Desde então, a UJC tem realizado um importante trabalho na entidade que ajudou a fundar, disputando a linha política e fortalecendo o papel da mesma rumo a construção de uma universidade popular. <br /><br />Dentro do PCB e do seu complexo partidário não há centralismo teórico. Todos os seus militantes são livres para defender o que acreditam, dentro dos princípios do marxismo-leninismo. O que não aceitamos é que a autonomia relativa da Juventude e das suas instâncias seja utilizada para romper com o centralismo-democrático, corrompendo nossa forma-partido e prejudicando a construção do nosso organismo revolucionário, de acordo com nossas resoluções tiradas em Congresso. A tese da forma-partido do PCB-RR foi derrotada no IX CONUJC, assim como no XVI Congresso do PCB. Portanto, as tentativas de aproximar a militância da UJC das teses dessa fração são baseadas em atropelos das nossas deliberações coletivas. Convocamos todos que acreditam nos princípios do PCB e aceitam sua disciplina partidária e permanecer nas fileiras da UJC, contudo, não podemos aceitar que o desrespeito ao nosso Estatuto às nossas Resoluções tiradas no IX CONUJC. <br /> </div><div style="text-align: justify;"><b>O IX CONUJC</b> <br /><br />Vale avaliar o processo do último congresso para colocar em questão as diversas evidências de fração organizada dentro da UJC, com seu epicentro no estado de São Paulo, assim como destrinchar a vitória da linha do giro operário-popular e da construção nacional da organização. <br /><br />A tese da formação de tendência interna apareceu no IX CONUJC a partir da proposta de nacionalização do jornal O Futuro de São Paulo via a construção de um jornal nacional da UJC, em detrimento da construção do jornal do PCB, o Poder Popular. Essa iniciativa nasceu na antiga Coordenação Regional de São Paulo e extrapola suas incumbências para incluir também o direito a polêmica pública e aberta, que serviria então para organizar abertamente os campos de opinião dentro da UJC, dando um salto qualitativo na organização de tendências. Durante toda a etapa nacional do Congresso ficou mais do que evidente, inclusive por via de denúncias, que a grande maioria da delegação de São Paulo, principalmente a proveniente do movimento estudantil universitário, defendia esta tese de forma orquestrada e organizada, tentando levar uma maioria nos Grupos de Discussão a partir do grande número de delegados que possuía o estado devido ao inchaço da organização em São Paulo. Mesmo assim, a maioria dos GDs e da plenária final votou contra a tese, a derrubando, e incluindo em seu rechaço a crítica de fracionismo e oportunismo por reapresentar um debate derrotado no XVI Congresso do PCB, a partir do que diversos dirigentes ligados ao jornal O Futuro de SP foram a tribuna “justificar sua abstenção” para se defender e tentar virar a acusação de fracionismo. <br /><br />A vitória do giro operário-popular já se deu de forma mais sutil. Não houve no congresso uma contraposição aberta contra as prioridades da UJC no próximo período: o movimento estudantil secundarista e os jovens trabalhadores. Contudo houve sim um processo de secundarização da pauta em detrimento do já consolidado na juventude (o movimento estudantil universitário) e também do debate acerca do estatuto e da forma organizativa da UJC. Esse debate, que em grande parte levou de nada a lugar nenhum, uma vez que o PCB já tinha rechaçado a polêmica pública e a UJC não poderia ir contra o seu Partido, restringiu o tempo de discussão e elaboração política sobre a maior tarefa da UJC no próximo período: o giro operário-popular das suas fileiras. Assim nossa organização saiu do congresso com teses curtas e sem a devida atenção a estas pautas. Embora tenha havido uma vitória formal desta linha, houve também o seu enfraquecimento tático e ideológico, uma vez que as teses do IX CONUJC relegam boa parte do trabalho de formulação sobre a inserção nestes segmentos para a CN eleita, abdicando de criar uma linha consequente para todo o território nacional com base nos debates em todo o país. <br /><br />Da mesma forma se dá a intervenção contra a concentração regional, em prol da construção da juventude nacional. Não há ou houve nenhuma tese congressual que defenda explicitamente a centralidade do trabalho no eixo Sul/Sudeste, reconhecendo que há a necessidade de enfrentar a burguesia brasileira de Norte a Sul no país. Contudo, a própria falta de teses e formulações políticas que saiam da compreensão política da complexidade regional do país, com especial atenção ao Norte (mas sem descartar o Nordeste e o Centro-oeste), acaba relegando a UJC a construir uma política nacional a partir da experiência no eixo Sul/Sudeste, com todas as particularidades que o desenvolvimento capitalista do Brasil incutiu a região, e no fim atrelando grandemente a atuação da UJC a uma certa concepção de movimento estudantil universitário, muito ligada a tradição política do estado de São Paulo.</div><div style="text-align: justify;"> <br /><b>A CN durante seu primeiro ano</b> <br /><br />Findado o IX Congresso e eleita a nova CN, a UJC embarcaria num novo momento da sua história. Pela primeira vez em décadas a juventude estava organizada em todos os estados da federação, com diferentes níveis de consolidação, e agora tínhamos um compromisso político, se não uma linha tática, de organizar o giro operário-popular em nossas fileiras e em nossa linha política, vinculando fundamentalmente a UJC ao processo de reconstrução histórica do movimento comunista brasileiro junto ao PCB. Contudo, já nos seus primeiros meses a CN passou por um processo de difícil consolidação, em grande parte causado pelos equívocos políticos na condução da sua organização interna e nas prioridades elencadas para o seu trabalho. <br /><br />O mais grave desvio organizativo que prejudicou a consolidação da CN enquanto uma instância orgânica foi a centralização excessiva na Comissão Executiva Nacional e na Comissão Nacional de Organização, sendo esta última composta integralmente por dirigentes que aderiram ao racha. Essas instâncias não davam espaço e oportunidade para que a CN se reunisse e discutisse qualitativamente a nossa linha política. Nem mesmo nossa participação no CONUNE, com toda a sua importância, foi debatido em reunião do pleno da CN, tendo ficado a cargo da CEN e da CNME organizar a nossa atuação. Às demais comissões da CN, couberam a tarefa operativa de resolver as demandas que chegavam. Essa centralização, em unidade com a fragmentação do trabalho, onde os dirigentes de diferentes comissões foram, inclusive, várias vezes impedidos de dialogar entre si, levou a uma instância sem a menor capacidade de trabalho positivo, levando quase tudo a toque de caixa, tendo quase um ano de gestão e não tendo conseguido aplicar boa parte das suas atribuições de congresso e do seu próprio planejamento. <br /><br />Mais uma evidência dessa desarticulação é a própria ausência de reuniões. Em quase um ano de gestão, o pleno da CN se reuniu apenas uma vez, para fazer seu planejamento. E a maior parte das comissões nacionais também encontravam dificuldades para se reunir regularmente, causando ineficiência e desarticulação da UJC a nível nacional. Contudo, essa letargia da CEN para organizar reuniões seria rapidamente sanada ao eclodir a crise, quando a Secretaria de Organização rapidamente se mobilizou para adiantar um pleno, violando uma decisão da própria CEN, a partir de uma votação na lista de e-mails no dia 08/08, alegando que caso houvesse maioria, uma nova reunião seria convocada com pauta específica para o dia 12/08, uma semana antes do previsto, dia 19/08. Curiosamente, esse adiantamento viria por uma “urgente necessidade de debate”, sendo que a CN não procurou se reunir nenhuma vez desde o início da crise, até o desligamento dos então dirigentes de Pernambuco e São Paulo pelos respectivos CRs.</div><div style="text-align: justify;"><br /><b>III pleno extraordinário</b> <br /><br />Sob troca de e-mails acalorada entre os membros da Coordenação Nacional, a reunião já convocada foi aprovada pelo método irregular e unilateral levado a cabo pelo então Secretário de Organização. Dada a conformação da solicitação, a Comissão Nacional de Juventude solicitou que a reunião ocorresse em sala virtual sob sua coordenação, o que foi veementemente negado pela antiga secretaria de organização sob a acusação de que o Comitê Central não seria confiável e que a UJC teria total autonomia frente ao Partido para se reunir, debater e encaminhar o que bem entendesse por si própria, mesmo quando orientado que o acompanhamento da assistência partidária seria fundamental e que a moderação deveria ser da assistência partidária à juventude ao compreender os problemas de se convocar uma reunião desse calibre às pressas, com pouco debate prévio e com desqualificação patente das instâncias do PCB, assim, questionando postulado central da razão de ser de uma juventude partidária: a autonomia relativa. <br /><br />O que se sucedeu não foi de estranhar. A então CNO criou sala virtual própria e o pleno da Coordenação Nacional da UJC se reuniu às 9 h do dia 12 de agosto de 2023 para debater sua posição pública frente a crise partidária. O fundamental da discussão foi colocado nos primeiros minutos da reunião: a ideia era chancelar nacionalmente as notas públicas das Coordenações Regionais que haviam rachado com a organização, pedido congresso extraordinário à revelia das instâncias partidárias e declarado não reconhecer a direção do PCB. Uma questão fundamental desta reunião é que mais da metade dos presentes haviam sido desligados do complexo partidário na véspera pelas respectivas direções estaduais por adesão ao PCB-RR, que já naquele momento contava com sua direção e canais de comunicação próprios e realizavam o movimento de colocar em prática a polêmica pública derrotada no XVI Congresso do PCB. <br /><br />Compreendendo a necessidade de reunião da UJC, já muito tardia, e a inevitabilidade da reunião já posta em execução, à revelia da reunião anteriormente convocada para o dia 19 de agosto, a Secretaria Nacional de Juventude do PCB teve a postura de esclarecer dúvidas referentes às atitudes tomadas pelo Partido e permitir o livre debate. A permissão do livre debate é ponto fundamental, posto que, com mais da metade dos militantes compondo outro partido, a reunião não se expressava adequadamente como reunião de instância, senão como bilateral na qual é possível debater, mas não chegar a encaminhamentos conjuntos. Esta tônica se provou fundamental. Ao logo da discussão o que se viu foi a violação da unidade recém-construída no IX Congresso da UJC sendo defendida com palavras de uma suposta “unidade”. Para que houvesse maior possibilidade de se utilizar dos mecanismos da UJC para a realização da disputa interna por partidos outros, diversos ex-militantes se colocaram favoráveis a uma mediação para a proposta de adesão ao “XVII congresso extraordinário” (convocado pelo PCB-RR) seja ela a solicitação da realização de um XVII congresso, mas nos termos daquele proposto por partido alheio. Junto a esse encaminhamento proposto, somaram-se outros cujo caráter político era de não reconhecimento da legitimidade do Comitê Central e das instâncias partidárias; frente aos quais a Secretaria Nacional de Juventude manifestou que não reconheceria os encaminhamentos daquela reunião por se tratar de um debate realizado majoritariamente por militantes que já não compunham a instância, de modo que a CN devidamente eleita pelo IX CONUJC e chancelada pelo Comitê Central do PCB, dada a autonomia relativa da UJC, e que ainda se encontrava regular e ligada ao complexo partidário, encaminharia em reunião posteriormente realizada, retirando-se do espaço, por compreendê-lo como um espaço que, por mais que pudesse discutir, não era um espaço legítimo da União da Juventude Comunista. <br /><br />De imediato se aprovou por maioria simples a retirada dos membros da Comissão Nacional de Juventude de todos os meios de comunicação da UJC, rompendo os canais de comunicação com o PCB e, portanto, quebrando com sua autonomia relativa e negando o centralismo democrático do Partido Comunista Brasileiro, bem como se aprovou os demais encaminhamentos já mencionados, além do posicionamento público da suposta instância, consolidando, portanto o racha na UJC. Nesse racha, no entanto, as redes sociais @ujcbrasil no Instagram e @ujcbr no Twitter ficaram com os fracionistas, que em poucos instantes após o encerramento da reunião postaram extensa nota política em defesa própria, comprovando que a mesma já se encontrava pronta e que já havia organização paralela para este momento de fracionamento. <br /><br />Neste sentido, a CN UJC eleita democraticamente no IX Congresso da UJC, e reconhecida pela Comitê Central do PCB, orienta o conjunto da militância os seguintes pontos: <br /><br />1) Nossa organização surgiu como juventude do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e a ele é preservada uma relativa autonomia como consta no 1º art. de nosso Estatuto. Logo, todo e qualquer militante da UJC deve defender e reforçar as nossas resoluções eleitas em congresso, bem como aprofundar as críticas e gozar do pleno direito a crítica nas devidas instância, como determina nossas resoluções. A saber: <br /><br />Art. 1° A União da Juventude Comunista (UJC), é a Juventude do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e sua escola de quadros, submetida a ele histórica, orgânica, política e ideologicamente, possuindo autonomia relativa em relação ao PCB, ou seja, mantendo seus próprios congressos, organismos, direção, finanças, etc, na medida em que sua existência, suas direções e ações são referendadas pelo PCB, em seus respectivos organismos. (IX CONGRESSO UJC, 2022) <br /><br />2) As discussões relativas a democracia interna partidária, bem como todas as outras discussões que dizem respeito a nossa organização, devem ser realizadas nas devidas instâncias. Como sempre ocorreu, exercendo o direito de se expressar nos debates internos sem riscos ou ameaças de algum tipo de “perseguição” ou “expurgo”. O exercício pela busca incessante do consenso é referência de uma organização que pratica o centralismo democrático, devemos abraçar a forma mais fraterna e empática de lidar com temas polêmicos. Não podemos abrir mão do respeito e da camaradagem quando lutamos pela nossa organização.<br /></div><div><br /></div><div style="text-align: right;">Coordenação Nacional da UJC <br /><br />11 de setembro de 2023<br />= = =<br /></div> Paulo Ayreshttp://www.blogger.com/profile/05722111703766282633noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6017843677382845935.post-48193090898874693892023-05-01T19:00:00.004-07:002023-06-07T16:18:09.627-07:00Por que odiamos? Ep. 3: Enéas Carneiro<div style="text-align: center;"><iframe allow="accelerometer; autoplay; clipboard-write; encrypted-media; gyroscope; picture-in-picture; web-share" allowfullscreen="" frameborder="0" height="315" src="https://www.youtube.com/embed/yO-k6SUVt2o" title="YouTube video player" width="560"></iframe>
<br /></div><div><br /></div><div style="text-align: right;">por <b>Ian Neves</b><br /><i>História Pública</i><br />= = =</div>Paulo Ayreshttp://www.blogger.com/profile/05722111703766282633noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6017843677382845935.post-30911362582018578432023-04-22T19:00:00.003-07:002023-06-07T16:09:24.950-07:00Breve história do Tibet e sua libertação<div style="text-align: center;"><iframe allow="accelerometer; autoplay; clipboard-write; encrypted-media; gyroscope; picture-in-picture; web-share" allowfullscreen="" frameborder="0" height="315" src="https://www.youtube.com/embed/0ARWjzimTKc" title="YouTube video player" width="560"></iframe>
<br /></div><div><br /></div><div style="text-align: right;">por <b>Ian Neves</b><br /><i>História Pública</i><br />= = =</div>Paulo Ayreshttp://www.blogger.com/profile/05722111703766282633noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6017843677382845935.post-81771436159275463062023-01-26T18:00:00.004-08:002023-01-27T12:16:42.996-08:00Eduardo Marinho critica comunistas<div style="text-align: center;"><iframe allow="accelerometer; autoplay; clipboard-write; encrypted-media; gyroscope; picture-in-picture; web-share" allowfullscreen="" frameborder="0" height="315" src="https://www.youtube.com/embed/667zuAUsXA8" title="YouTube video player" width="560"></iframe>
<br /></div><div><br /></div><div style="text-align: right;"> por <b>Humberto Matos</b><br />= = =</div>Paulo Ayreshttp://www.blogger.com/profile/05722111703766282633noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6017843677382845935.post-90561664586885032312023-01-19T18:00:00.001-08:002023-01-21T11:58:05.888-08:00O que aconteceu no dia 8 de janeiro?<div style="text-align: center;"><iframe allow="accelerometer; autoplay; clipboard-write; encrypted-media; gyroscope; picture-in-picture; web-share" allowfullscreen="" frameborder="0" height="315" src="https://www.youtube.com/embed/58Y5u-sbP-U" title="YouTube video player" width="560"></iframe>
<br /></div><div><br /></div><div style="text-align: right;">por <b>Ian Neves</b><br /><i>História Pública</i><br />= = =</div>Paulo Ayreshttp://www.blogger.com/profile/05722111703766282633noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6017843677382845935.post-28715661331887082732023-01-12T18:00:00.006-08:002023-01-14T15:49:26.194-08:00Um desabafo sobre os EUA<div style="text-align: center;"><iframe allow="accelerometer; autoplay; clipboard-write; encrypted-media; gyroscope; picture-in-picture; web-share" allowfullscreen="" frameborder="0" height="315" src="https://www.youtube.com/embed/9x6VTgDlltA" title="YouTube video player" width="560"></iframe>
<br /></div><div><br /></div><div style="text-align: right;">por <b>Lucas Rubio</b> e <b>João Pitillo</b><br /><i>Centelha Vermelha</i><br />= = =</div>Paulo Ayreshttp://www.blogger.com/profile/05722111703766282633noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6017843677382845935.post-46392538190471863102023-01-02T18:48:00.000-08:002023-01-02T18:47:53.940-08:00Metafísica idealista<p></p><p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgVNdHhr0Ub82UQxjx56Ny7LzaaUKAiF6kyrACjNl3sx9O2u8hZURVAXHuum-afE1xjZ1SIkp8aN1A9iMWv4poa9nzM2HtxGV9JxGZxUNlgLUo-ky9Az-IC8-dUrYxAF4-J106GV7VeK_WDRodTQa26TUlnXIS2S30aIkLCCkRe7jw8jrZGl9l12Q/s677/Metaphysical%20Ontology%20-%20Idealist%20Metaphysics.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="254" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgVNdHhr0Ub82UQxjx56Ny7LzaaUKAiF6kyrACjNl3sx9O2u8hZURVAXHuum-afE1xjZ1SIkp8aN1A9iMWv4poa9nzM2HtxGV9JxGZxUNlgLUo-ky9Az-IC8-dUrYxAF4-J106GV7VeK_WDRodTQa26TUlnXIS2S30aIkLCCkRe7jw8jrZGl9l12Q/w640-h254/Metaphysical%20Ontology%20-%20Idealist%20Metaphysics.png" width="640" /></a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: right;">por <b>Henri Lefebvre</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Esses metafísicos, portanto, põem o conhecimento como algo acabado (numa
ideia misteriosa, num Deus) antes de ter começado. Põem o conhecimento
antes daquilo de que é conhecimento; o espírito antes da natureza; o
pensamento absoluto (divino) antes do pensamento humano e da experiência
humana. Invertem a ordem real; põem o carro adiante dos bois e
empreendem a análise do conhecimento de cabeça para baixo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Considerando o conhecimento como algo acabado e previamente produzido,
condenam-se necessariamente a tomar uma pequena parte do conhecimento,
uma parcela da ciência atingida em seu tempo, e a transportá-la no
absoluto. Foi assim que Leibniz, ao inventar o cálculo diferencial,
atribuiu-o ao Deus metafísico que ele imaginava: “<i>Dum deus calculat, fit mundus</i>”.</div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="background-color: #76a5af;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="background-color: #d0e0e3;"><span style="background-color: cyan;">Chamamos de </span></span><span style="background-color: #d0e0e3;"><span style="background-color: cyan;">“metafísica</span></span><span style="background-color: #d0e0e3;"><span style="background-color: cyan;">”, por definição, aquele pensamento que separa o que é ligado.</span> </span>Chamaremos de
“idealistas”, por definição, as doutrinas que elevam ao absoluto uma
parte do saber adquirido, fazendo tal parte uma ideia ou um pensamento
misteriosos que, segundo eles, existem antes da natureza e do homem
real.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Essas definições, em seguida, voltarão a aparecer sob novos aspectos.
Mostraremos que elas são adequadas ao uso habitual dessas palavras e,
mais ainda, que são fecundas, permitindo esclarecer numerosas questões
filosóficas e suprimindo problemas “falsos” e mal colocados.</div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="background-color: #b4a7d6;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="background-color: cyan;">Disso resulta que <i>todo idealismo é metafísica.</i>
(A recíproca não é verdadeira: muitas metafísicas são idealistas, mas
existem outras doutrinas metafísicas não idealistas, ou seja, <a href="https://www.racionalismoformal.com.br/2023/01/metafisica-materialista.html" rel="nofollow" target="_blank">certos tipos de materialismo</a>.)</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Pode-se perguntar: “Como é que uma tal doutrina que separa do real e do
saber uma parcela com o fim de hipertrofiá-la, chegando mesmo a nada
mais ver além dessa parcela e levá-la ao absoluto, como é possível uma
tal doutrina, que divide e estanca a atividade do conhecimento humano?”.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Em outras palavras, a metafísica exigia do conhecimento seus documentos
de identidade, colocando a questão: “Como é possível o conhecimento?
Como é que o sujeito encontra o objeto? Como são possíveis a ciência
matemática e suas aplicações ao real objetivo, como a física, etc.?”
Eram precisamente essas as questões colocadas pelo metafísico Kant.
Nesse momento, em nome do conhecimento considerado como fato prático,
histórico e social, perguntamos o inverso: “Como foi possível
metafísica?”.<br />
<br />
<div style="text-align: justify;">
Nos tempos primitivos (e mesmo atualmente, entre aquelas populações que,
por estagnação ou degenerescência, não saíram da situação de
“primitivos”), reinam algumas convicções que, até hoje, deixam marcas
entre nós. Sem conhecerem sua própria estrutura física e as leis do
mundo material que os cerca, os primitivos interpretam, a seu modo,
determinados fenômenos psíquicos ou físicos muito simples: a imagem no
espelho, a sombra, o sonho, etc. Acreditam que os seres humanos — em
particular os mortos <span class="st">— surgidos nos sonhos são almas destacadas de seus corpos.</span><span class="st"><span class="st"> O indivíduo que aparece num sonho é considerado responsável e passível de punições pelos atos, ainda que </span></span><span class="st"><span class="st">“irreais</span></span><span class="st"><span class="st">”, que sua própria aparição cometeu durante o sonho. Também o sonhador se considera responsável pelos atos que comete em sonho.</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span class="st"><span class="st"><br /></span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span class="st"><span class="st">A imagem no espelho é considerada como o </span></span><span class="st"><span class="st">“duplo</span></span><span class="st"><span class="st">”
real, vivendo a seu modo, daquele que se olha. A sombra é também vista
como uma parte da alma humana. Em certas regiões rurais, por se supor
que a alma do morto possa </span></span><span class="st"><span class="st">“voltar</span></span><span class="st"><span class="st">” nos espelhos, estes são cobertos depois de cada falecimento. Conhece-se também o célebre conto de Chamisso,<i> Peter Schlemihl</i>, o homem que perdera sua sombra, ou seja, que vendera a alma ao diabo.</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span class="st"><span class="st"><br /></span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span class="st"><span class="st">Ao
que parece, primitivamente, o indivíduo humano só tomava conhecimento
de si através de uma espécie de desdobramento material. Mas deve-se
observar que, posteriormente, o desdobramento se aprofunda; a vida
social se diferencia e se aperfeiçoa; surge a divisão social do trabalho
e, notadamente, a separação entre trabalho material e trabalho
intelectual. Um intelectual especializado, matemático ou filósofo,
ignora mais ou menos tudo aquilo que se refere à vida prática; e, quando
age praticamente, na vida cotidiana, encontra-se num outro plano e, por
assim dizer, numa outra região da consciência, diversa daquela em que
se situa quando pensa. Para ele, o desdobramento no interior de si mesmo
torna-se um fato; seu pensamento poderá muito bem esquecer os
ensinamentos de sua vida real, aliás frequentemente mutilada. Mas o
desdobramento material do primitivo, a teoria do duplo e da sombra
errante fora do corpo, vieram fornecer símbolos, uma linguagem, uma
expressão poética a esse desdobramento real <i>interior</i> que tem lugar numa consciência já mais diferenciada. Assim, Goethe </span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st">— que não acreditava no diabo pessoal </span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">— expressou os sofrimentos do intelectual moderno diante de sua vida <i>real </i>incompleta,
mutilada, desamparada pelo pensamento abstrato, através de uma lenda
antiga, segundo a qual um alquimista vendia sua alma ao diabo a fim de
reconquistar a juventude: Fausto.</span></span></span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><br /></span></span></span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">Primitivamente, supunha-se que a alma abandonava o corpo com o último respiro </span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">— <i>spiritus</i></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"> — devia sobreviver, mas apenas por um certo tempo, durante o período do ritos funerários e pós-funerários que mantinham sua </span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“vida</span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span></span></span></span></span></span></span></span></span>.
Depois, ela se perdia na sombra amorfa de todas as almas dos
ancestrais, já que era impossível, apesar dos ritos mais minuciosos,
manter todas as almas passadas! Pouco a pouco, foi se atribuindo a essas
almas passadas um resíduo de longínqua existência, inteiramente
abstrata, impessoal e ineficaz, sem relação direta com os vivos; essa
relação era reservada aos mortos recentes, salvo nos casos excepcionais
de heróis, santos, etc. Foi então que se concebeu a existência </span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“espiritual</span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”; deve-se observar, outrossim, que no início, notadamente entre os gregos, essa existência </span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“</span></span></span></span></span></span>espiritual</span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”
não aparecia como uma recompensa ou consolação, mas como uma triste
fatalidade, um tédio interminável. Ulteriormente, porém, essa
terminologia </span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">— </span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“vida espiritual</span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”, </span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“espírito</span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”, etc. </span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">—
forneceu um simbolismo para exprimir a situação das consciências e dos
pensamentos infinitamente distantes da vida real, destacados do real e
da ação.</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><br />
<span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><br /></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span>
<span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">A
questão das relações entre o ser e o pensamento, a natureza e o
espírito, o objeto e o sujeito do conhecimento, foi sempre a questão
fundamental de toda filosofia. Trata-se de saber qual das duas séries de
termos em presença foi primordial: o ser ou o pensamento, a natureza ou
o espírito, a matéria ou o conhecimento.</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><br />
<span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><br /></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span>
<span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">Mas essa questão, enquanto </span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“problema metafísico</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"> do conhecimento, tem suas raízes nas concepções dos primitivos; com efeito, a relação que se busca é algo </span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“dado</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span></span></span></span></span></span></span></span></span>; é um fato, o fato do conhecimento. <span style="background-color: #01ffff;">A separação metafísica entre sujeito e objeto</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span style="background-color: #01ffff;"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"> — que, ao mesmo tempo, coloca o problema e o torna insolúvel</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">
— reproduz e agrava, nas condições da consciência moderna, a separação
imaginária, o desdobramento fictício entre a parte lúcida de nosso ser
(a alma, o espírito) e a parte </span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“natural</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span></span></span></span></span></span></span></span></span> (o corpo, o mundo).</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><br />
<span style="background-color: #ea9999;"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><br /></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span>
Para eliminar esse problema insolúvel, basta considerar a relação como
um fato, tomando-a tal como se apresenta: o sujeito e o objeto, o
pensamento e a natureza, são <i>diferentes</i> mas <i>ligados</i>, através de um liame que é uma interação incessante.<br />
<span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><br /></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span>
<span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">O famoso </span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“problema</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span></span></span></span></span></span></span></span></span> do conhecimento alcança assim suas verdadeiras proporções. Pode-se examinar os <i>instrumentos</i>
do conhecimento com o objetivo de aperfeiçoa-los: e este é o papel, em
particular, da <i>lógica</i>. Mas não é admissível pôr em questão o próprio
conhecimento.</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></div>
</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<div style="text-align: justify;">
= = =</div>
<div style="text-align: justify;">
LEFEBVRE, H. <i><b>Lógica formal. Lógica dialética. </b></i>Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, pp. 53-56.<br />
= = = <br /></div></div>Paulo Ayreshttp://www.blogger.com/profile/05722111703766282633noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6017843677382845935.post-41510658608675739402022-11-17T17:20:00.003-08:002022-11-17T17:29:53.715-08:00Aproximações e distanciamentos entre Vigotski e Freud a respeito do conceito de inconsciente<div style="text-align: center;"><iframe allow="accelerometer; autoplay; clipboard-write; encrypted-media; gyroscope; picture-in-picture" allowfullscreen="" frameborder="0" height="315" src="https://www.youtube.com/embed/KVsu9oKbbg8" title="YouTube video player" width="560"></iframe>
<br /></div><div><br /></div><div style="text-align: right;"> por <b>Lígia Márcia Martins</b> <br /> I Ciclo de Palestras do GEPEDI<br />= = = </div>Paulo Ayreshttp://www.blogger.com/profile/05722111703766282633noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6017843677382845935.post-83563369807812517862022-11-02T19:00:00.004-07:002022-11-04T13:24:35.646-07:00Bolsonaristas fecham rodovias<div style="text-align: center;"><iframe allow="accelerometer; autoplay; clipboard-write; encrypted-media; gyroscope; picture-in-picture" allowfullscreen="" frameborder="0" height="315" src="https://www.youtube.com/embed/z4oP6ne5PQI" title="YouTube video player" width="560"></iframe>
<br /></div><div><br /></div><div style="text-align: right;">por <b>Ian Neves</b><br /><i>História Pública</i><br />= = =</div>Paulo Ayreshttp://www.blogger.com/profile/05722111703766282633noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6017843677382845935.post-48570989249204097762022-10-31T19:00:00.012-07:002022-11-04T13:34:48.187-07:00Haverá bolsonarismo sem Bolsonaro no poder?<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhpngf1OaJLB2LuOHpJ5HzgebFzqDAYLWZq4jkg9po1bFPzOd7AKBkZnkE30qTkKCHv1sJfaBSA5N58IMsCg0JcKnaWQAIQgkXe1Ov_TEEW5onh4wjun3tgYslU01wQXfxyc00jOP56wIRbkdVI9X-gXInSnhKpMfQk4DwURz5pIVy0NHvLCL_NnA/s869/Irracionalismo%20Moderno%20-%20Fascismo%20Liberal%20-%20Bolsonarismo.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="254" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhpngf1OaJLB2LuOHpJ5HzgebFzqDAYLWZq4jkg9po1bFPzOd7AKBkZnkE30qTkKCHv1sJfaBSA5N58IMsCg0JcKnaWQAIQgkXe1Ov_TEEW5onh4wjun3tgYslU01wQXfxyc00jOP56wIRbkdVI9X-gXInSnhKpMfQk4DwURz5pIVy0NHvLCL_NnA/w640-h254/Irracionalismo%20Moderno%20-%20Fascismo%20Liberal%20-%20Bolsonarismo.png" width="640" /></a> <br /></div><p style="text-align: right;">por <b>Gilberto Maringoni</b><br /><a href="https://outraspalavras.net/direita-assanhada/havera-bolsonarismo-sem-bolsonaro-no-poder/" rel="nofollow" target="_blank"><b>Outras Palavras </b></a></p><p style="text-align: justify;"><i></i></p><blockquote><i>Produto duma conjuntura especialíssima, fascismo tupiniquim foi incapaz de construir um partido ou programa claro. Fora do poder, é possível que reflua. Mas fincou raízes nas Forças Armadas e polícias. Lula precisará desarmar bomba-relógio.</i></blockquote><p style="text-align: justify;">No rescaldo da espetacular e heroica vitória que a democracia impôs sobre o fascismo brasileiro neste 30 de outubro, surgem diversas especulações sobre o futuro imediato das disputas políticas em nosso país. Boa parte delas pode ser sintetizada na frase “vencemos as eleições, mas o bolsonarismo continua firme na sociedade”. <br /><br />Não tenho segurança alguma em subscrever essa ideia. Ao contrário: minha impressão é que o bolsonarismo tenderá a se tornar uma força com reduzida capacidade de articulação nos próximos meses e sem condições de se coordenar nacionalmente. Digo impressão porque o que escreverei a seguir não é amparado por nenhuma pesquisa de campo, mas pela percepção que uma série de eventos e processos políticos podem nos mostrar. Os fatos apontam que o fascismo brasileiro só se organiza a partir do Estado. O bolsonarismo possivelmente não consegue se coordenar fora dele.</p><p style="text-align: justify;">Isso se deve principalmente ao fato de o bolsonarismo não se apresentar como um conjunto de ideias com começo, meio e fim. O bolsonarismo não tem programa claro, a não ser um nacionalismo moralista de fachada, o enunciado de poucos dogmas religiosos e de professar um ultraliberalismo sem freios. O bolsonarismo não é um projeto, mas uma torrente de sensos comuns e uma pregação ininterrupta da violência como dinâmica de intervenção social. É pobre e primário como ideário político. <br /><br />O fascismo brasileiro nunca teve relevância como fenômeno de massas. Seu melhor resultado eleitoral no século XX se deu na disputa presidencial, em 1955. Num pleito vencido por Juscelino Kubitschek, o integralista Plínio Salgado alcançou míseros 8,28% dos votos válidos. <br /><br />Nove anos depois, o golpe de 1964 – expressão política da extrema-direita militar – foi deflagrado após anos de intensa campanha reacionária dos meios de comunicação e da Igreja Católica, auxiliados pelas Forças Armadas e pela embaixada dos EUA, em tempos de Guerra Fria. A alegação da reação era a de que o povo estava majoritariamente contra o governo João Goulart. <br /><br />Uma pesquisa realizada pelo Ibope em março de 1964 em diversas cidades brasileiras – não existiam sondagens nacionais – atesta que Jango teria reais chances de vencer as eleições de 1965, caso fosse candidato. Em cinco capitais (Fortaleza, Salvador, Recife, Rio de Janeiro e Porto Alegre), o levantamento indica que entre 51% e 60% dos eleitores o apoiariam. Esses relatórios estão disponíveis online no site do Arquivo Edgard Leuenroth, da Unicamp. <br /><br />Ou seja, mesmo num clima de histeria anticomunista, com a Marcha da Família com Deus pela Liberdade realizada em São Paulo e outras capitais, a extrema direita não conseguiu hegemonizar a sociedade. Daí a necessidade do golpe. <br /><br />O fascismo nacional só voltou com força meio século depois, em uma conjuntura especialíssima que combinou opções desastrosas da centro-esquerda, uma profunda crise provocada por tais escolhas, esgarçamento do tecido social, decepção e desesperança popular. Formou-se então uma frente ampla reacionária que envolvia as Forças Armadas, o Judiciário e os meios de comunicação. Até ali, existia na sociedade a disseminação dispersa de ideias de extrema direita (racismo, elitismo, preconceitos sexuais, clamor por brutalidade policial contra os pobres, autoritarismo etc.), mas jamais com o grau de organização que se alcançou entre 2018-22. <br /><br />A decepção popular com o estelionato eleitoral cometido pelo segundo governo Dilma, entre 2014-16, se materializou em um ajuste fiscal planejado. Seus resultados foram o aumento acentuado das contas de energia no início de 2015, elevações seguidas das taxas básicas de juros, cortes orçamentários expressivos, recuo do PIB de quase 8% no período e em fazer a taxa de desemprego praticamente dobrar entre janeiro de 2015 e março do ano seguinte. <br /><br />A situação social do país de forma alguma recomendava uma aventura desse tipo. O ano de 2013 havia sido sacudido por intensas mobilizações públicas, iniciadas pela esquerda e que foram capturadas pela extrema direita nas ruas, após sérios enfrentamentos físicos e midiáticos. A ação governamental para arbitrar e solucionar as demandas foi lerda e quase irrelevante. <br /><br />Como afirma a economista estadunidense Clara Mattei, “Os economistas inventaram as políticas de austeridade e pavimentaram o caminho para o fascismo”, título de seu livro a ser lançado neste mês. A fragmentação social, o aprofundamento das dificuldades econômicas e a falta de perspectivas sempre abre caminho para discursos demagógicos e salvacionistas de extrema direita. Incapazes de apresentar alternativas no terreno social – emprego, salário, direitos etc. – as novas modalidades de fascismo valem-se de extensa pauta moral e de costumes, além do infalível discurso anticorrupção como forma de obter legitimidade. <br /><br />Em resumo, a materialização da extrema direita como ideia-força se deu numa quadra histórica situada entre o sequestro das manifestações de 2013 até a fraudulenta prisão de Lula, cinco anos depois, passando pelo desastre governamental de 2014-16 e pelo golpe que retirou Dilma do governo. É nesse processo que um deputado iletrado e medíocre se torna o condutor da frente reacionária nucleada pelo fascismo, que logra vencer o viciado pleito de 2018. <br /><br />E é a partir da condição de presidente da República, com aparato midiático, verbas infinitas e uso irrestrito da máquina estatal que o bolsonarismo monta uma inexpugnável maioria legislativa, coopta o alto-comando das Forças Armadas com prebendas e sinecuras e que impulsiona uma série de igrejas evangélicas e facilita a vida das milícias, em especial no estado do Rio de Janeiro. É a partir do aparelho de Estado que o ex-capitão se torna figura nacional, com decidido apoio dos grandes grupos midiáticos e do capital financeiro e agrário. <br /><br />A maior demonstração da falta de organicidade do fascismo bolsonarista é sua incapacidade de criar um partido político. O malfadado Aliança pelo Brasil, lançado em novembro de 2019, teve fim melancólico em abril de 2022, após a constatação de que quase 200 mil assinaturas apresentadas como suporte à sua legalização foram fraudadas. Desde sua entrada na vida pública, no início dos anos 1990, o presidente já passou por nove partidos. Em 2018, alugou o PSL, capitania de Luciano Bivar, para concorrer à presidência. No ano seguinte, desentendeu-se com o dono do negócio e permaneceu sem partido até fechar contrato com Valdemar da Costa Neto, donatário do PL. Seus candidatos pelos estados espalharam-se por outras legendas fisiológicas. <br /><br />Se compararmos sua ação com as das lideranças do nazifascismo do início do século XX, verificaremos que tanto Benito Mussolini quanto Adolf Hitler montaram sólidos partidos de massas antes de chegar ao poder, o que expressava o enraizamento popular que obtiveram. <br /><br />Bolsonaro sai do poder sem nada disso. Embora, repetindo, a extrema direita e o reacionarismo sigam em suas casamatas no Congresso, nas igrejas fundamentalistas, nas milícias e em algumas entidades associativas, pode lhe faltar um esqueleto nacional como só o Estado pode lhe fornecer. Ou seja, seguirá existindo como expressão pública, mas com menor unidade de ação. No caso dos governadores eleitos, uma incógnita se coloca: a maioria parece ser de bolsonaristas de primeira viagem. Com a forte dependência que terão do governo federal – em especial após cortes de impostos para viabilizar as bondades pré-eleitorais – é possível que tendam a um alinhamento tácito com uma Brasília sob nova administração. <br /><br />Mas o fascismo seguirá forte em alguns bolsões do Estado, em especial no aparato de segurança (Forças Armadas, Abin, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e polícias estaduais). Aqui o problema é sério e só há uma solução. Ela foi dada por Gustavo Petro, menos de um mês após assumir a presidência, em 19 de agosto último. De uma só penada, o novo presidente colombiano anunciou a passagem compulsória para a reserva de nada menos que 52 generais, abrindo 24 postos de comando na Polícia Nacional, 16 no Exército, 6 na Marinha e mais 6 na Força Aérea. Sem sutileza, o presidente avançou sobre instituições tidas como intocáveis na América Latina, ao mesmo tempo em que buscou tirar da frente potenciais ameaças ao futuro de sua administração. <br /><br />Mais do que especular se o bolsonarismo seguirá sem Bolsonaro, será necessário que o novo governo Lula tome a iniciativa de desativar as bombas-relógio colocadas à sua frente pela ameaça fascista, retirando-a de qualquer alavanca de comando do Estado. O mais provável é que em poucos meses tais correntes percam boa parte da relevância que exibem hoje e o bolsonarismo seja uma tendência marginal na sociedade.<br /><br />= = = <br /></p><p></p>Paulo Ayreshttp://www.blogger.com/profile/05722111703766282633noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6017843677382845935.post-83131930391031105622022-10-15T17:47:00.010-07:002022-10-27T13:08:30.454-07:00Como o bolsonarismo manipula o senso comum? <div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgy1Kq_xqnhyD-plTTFEwJP47uMMuFN73glnazMBJzjX0AZYsmAoEJ6BiCHHKr-8TqIek5ScdCCC867mfUXqkDRCiUzFYUb8GWxNqLhgdlPGdYUoVZqzJgJenVoSnvpjtLXznPwNAqcXSLA-5MMnmI5lpPzFEXylSZT-hU6uXgRPbIsA61M4wL1Kw/s824/Modern%20Irrationalism%20-%20Fascism%20-%20Bolsonarism.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="254" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgy1Kq_xqnhyD-plTTFEwJP47uMMuFN73glnazMBJzjX0AZYsmAoEJ6BiCHHKr-8TqIek5ScdCCC867mfUXqkDRCiUzFYUb8GWxNqLhgdlPGdYUoVZqzJgJenVoSnvpjtLXznPwNAqcXSLA-5MMnmI5lpPzFEXylSZT-hU6uXgRPbIsA61M4wL1Kw/w640-h254/Modern%20Irrationalism%20-%20Fascism%20-%20Bolsonarism.png" width="640" /></a></div><div style="text-align: right;"> <br /></div><div style="text-align: right;">por <b>Golbery Lessa</b><br /><a href="https://opoderpopular.com.br/como-o-bolsonarismo-manipula-o-senso-comum/" rel="nofollow" target="_blank"><b>O Poder Popular </b></a><br /></div><div style="text-align: justify;"><i><blockquote>O senso comum torna viável a vida cotidiana, mas suas dimensões irracionais são estimuladas e usadas pelo fascismo. Como entender e dar combate a essas estratégias?</blockquote></i>O pensamento cotidiano, conhecido como senso comum, é parte insuperável da subjetividade das pessoas e se relaciona intimamente com as outras formas de compreender o mundo: a religião, a ciência, a filosofia e a arte. O fascismo, por ser necessariamente irracionalista, faz a apologia do senso comum como tipo superior de representação da realidade social. Essa característica determina a hostilidade fascista contra o meio artístico erudito ou popular, a Universidade, as igrejas progressistas e outros polos de produção cultural. Portanto, para fazermos uma crítica teórica e prática da estratégia de propaganda bolsonarismo em geral e, em particular, na campanha do segundo turno da eleições de 2022, é fértil refletirmos mais detidamente sobre o papel do pensamento comum na disputa por hegemonia e direção política.</div><div style="text-align: justify;"><br /><b>Senso comum</b><br /><br />O senso comum teria as seguintes características, segundo G. Lukács (<i>Estética</i>, Barcelona: Grijalbo, 1966): 1) materialismo espontâneo e pragmatismo diante dos fatos imediatos 2) foco exagerado nas relações de causa e efeito aparentes, as únicas que a pessoa leiga tem condições de perceber; 3) renúncia deliberada de compreender as mediações mais densas e explicativas dos fenômenos, o que abre flanco para a aceitação de teorias incoerentes, místicas ou mitológicas; 4) abertura para a absorver os resultados da religião, da ciência, da arte e da filosofia, mas sem poder adotar os métodos próprios destas formas mais complexas de conhecimento – esta característica implica na aceitação, via reconhecimento da autoridade, de referências intelectuais fora do senso comum; 5) tendência a generalizações exageradas a partir de poucos casos particulares; e 6) instabilidade na retenção do conteúdo adquirido das outras formas de conhecimento.<br /><br />O fascismo/neofascismo/bolsonarismo busca estimular pela propaganda e a ação as propriedades irracionais do senso comum com o objetivo de hegemonizá-lo. Procura expulsar os resultados científicos/artísticos/filosóficos/religiosos progressistas presentes na mente dos indivíduos e provocar mudanças nas referências de autoridade intelectual em benefício de personalidades e grupos de extrema direita (“filósofos” alternativos, perfis fascistas nas redes sociais, igrejas conservadoras etc.). Divulga a “teoria” terraplanista, faz críticas infundadas às vacinas, tenta estigmatizar as lutas contra as opressões de gênero, defende o uso de medicamentos inúteis, entre outras “explicações” disparatadas, oferecidas como substitutos das explicações racionais sobre os mesmos fatos. Sem ter como vencer a disputa por hegemonia na Universidade, por exemplo, o fascismo instiga o irracionalismo no senso comum para desconectá-lo desta instituição.<br /><br />O assédio fascista ao senso comum é combatido por socialdemocratas, comunistas, alguns segmentos liberais e outras correntes políticas comprometidas com valores racionalistas e humanistas, apesar de entre elas, claro, existirem disputas e interpretações diferentes de “razão” e “humanidade”. O resultado do embate dependerá de duas variáveis: 1) a experiência da população com políticas públicas e formas de mobilização propostas por cada tendência; 2) o conteúdo das mensagens e a estratégia de comunicação dos partidos. Como já tratamos da primeira variável em <a href="https://revistaoipe.org/2022/10/04/a-resiliencia-do-bolsonarismo-nas-eleicoes-2022/" rel="nofollow" target="_blank">artigo anterior</a>, e desejamos focar na estratégia discursiva antifascista para o segundo turno das eleições 2022, vejamos a segunda variável.<br /> </div><div style="text-align: justify;"><b>Combate ao uso fascista do senso comum</b><br /><br />As tendências políticas racionalistas e humanistas não devem estimular as dimensões irracionais do senso comum. Por princípio, mas também por uma questão prática: quanto mais se instigar as dimensões obscuras do pensamento cotidiano (por exemplo, a partir de uma campanha de “<i>fake news</i> de esquerda”), mais ele será suscetível ao fascismo, na medida em que o materialismo espontâneo estará mais submetido a “teorias” absurdas.<br /><br />No segundo turno das Eleições de 2022 e na luta contínua contra o fascismo/neofascismo/bolsonarismo, além de continuar a fazer discurso racional, focado na transmissão em linguagem popular da produção da ciência, da arte, da filosofia e da religião progressista, a esquerda precisa promover, por meio de mensagens e ações políticas, a autoridade intelectual das instituições produtoras de discursos racionais, no campo da erudição, como as Universidades públicas, bibliotecas e laboratórios estatais (Fiocruz, Butantã etc), e no campo da cultura popular, como as escolas de samba, os movimentos sociais e os grupos de esquerda da periferia. Sem deixar, evidentemente, de disputar hegemonia nestas instituições.<br /><br />Não é razoável defendermos uma batalha da ciência/filosofia/arte contra o pensamento cotidiano, como se ele fosse um hóspede indesejado e o vilão da história da mente. Sem o senso comum, a humanidade não teria sobrevivido nos milhares de anos da chamada Pré-história e nem se diferenciado da natureza. Mesmo contemporaneamente, a inexistência deste tipo de pensamento tornaria inviável a vida cotidiana, pois não temos tempo para considerações científicas diante das centenas de decisões que somos obrigados a tomar durante um dia.<br /><br />O melhor caminho é entendê-lo, respeitá-lo e lhe transferir os melhores resultados das formas racionais de entendimento (entre os quais está o pensamento religioso progressista, pois ele junta a fé com resultados da ciência/filosofia/arte). Em síntese: para combater o fascismo no campo das ideias, precisamos agir para reconectar o senso comum com as referências racionais de autoridade intelectual.</div><div style="text-align: justify;"> </div><div style="text-align: justify;">= = = <br /></div>Paulo Ayreshttp://www.blogger.com/profile/05722111703766282633noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-6017843677382845935.post-68867167995524267952022-10-07T19:35:00.005-07:002022-12-22T13:52:01.747-08:00Karl Jaspers: irracionalismo filosófico e conservadorismo político<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhwVsFyywgdcTAnz92v17_5ve9BT4xdks0J_vUiLu6ZqTtWitZjtCJFDBotwRFqPlt0p1ZWfImnd2BkhoKwpxG6gtLHcLwZIZjo2J3edW2zwsM2MP9VtR3wa7CPrARBLLT584VGFaiqrRXwcbVD_4SgAJRVEA59E2_NBEyAKhUho_JEl8-lniswnA/s1188/Modern%20Irrationalism%20-%20Conservatism%20-%20Existentialism%20-%20Karl%20Jaspers%20-%20Kriegsideologie.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="256" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhwVsFyywgdcTAnz92v17_5ve9BT4xdks0J_vUiLu6ZqTtWitZjtCJFDBotwRFqPlt0p1ZWfImnd2BkhoKwpxG6gtLHcLwZIZjo2J3edW2zwsM2MP9VtR3wa7CPrARBLLT584VGFaiqrRXwcbVD_4SgAJRVEA59E2_NBEyAKhUho_JEl8-lniswnA/w640-h256/Modern%20Irrationalism%20-%20Conservatism%20-%20Existentialism%20-%20Karl%20Jaspers%20-%20Kriegsideologie.png" width="640" /></a></div><div style="text-align: justify;">
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div><div style="text-align: justify;"><br /></div></div><div style="text-align: justify;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
<div style="text-align: right;">
por <b>Ronaldo Gaspar</b>[1]<br />
<b><a href="http://www.verinotio.org/conteudo/0.8434004912557085.pdf" rel="nofollow" target="_blank">ensaio em PDF</a></b>/2016<br /></div>
<b> </b></div><div style="text-align: justify;"><b>Jaspers e o canto de sereia do nacionalismo conservador e do nazismo </b><br />
<br />
Muito conhecido por suas obras sobre filosofia e psicologia, Karl Jaspers também foi um pensador político importante, tendo tratado de temas que gozam de grande relevância até os dias atuais, como a ascensão/participação das massas na política, a democracia e o socialismo. Muitas ideias das quais tratou – e o modo como o fez – continuam, sob novas ênfases e roupagens, presentes em escritos e discursos políticos da atualidade. Não bastassem suas influentes reflexões, seu trabalho como professor também merece destaque, pois, afinal, ele foi o orientador (para a elaboração da tese de doutorado), exerceu forte influência e, ainda, cultivou longa e profunda amizade com uma das mais importantes pensadoras da política do século XX, Hannah Arendt. <br />
<br />
Num comentário sobre a importância de Jaspers para Arendt, Young-Bruehl, a principal biógrafa da pensadora alemã, embora salientando com justeza o predomínio da influência filosófica de Martin Heidegger, afirmou: <br />
<blockquote class="tr_bq">
<blockquote class="tr_bq">
</blockquote></blockquote><div style="margin-left: 80px; text-align: justify;">
<span style="font-family: verdana;"><span face=""verdana" , sans-serif" style="font-size: small;">O método com que Arendt entrelaçava diversos e frequentemente contraditórios contextos conceituais, sua maneira de sistematizar, procede de Jaspers (...). Entretanto, tanto a maneira com que Arendt combinou em sua obra as orientações de Jaspers, como a linguagem com que expressou suas ideias, ela as deve muito mais a Heidegger. (YOUNG- BRUEHL, 2006, p. 140) </span></span></div><blockquote class="tr_bq"><blockquote class="tr_bq">
</blockquote>
</blockquote>
Mesmo que considerasse Heidegger “o filósofo mais importante da modernidade ocidental” (ADLER, 2007, p. 118), por conseguinte, Arendt contou com o auxílio de Jaspers para, em política, tentar um afastamento – nem sempre frutífero – dos conceitos da filosofia heideggeriana. <br />
<br />
O traço característico da apropriação arendtiana de Heidegger é o de que, ao deslocar conceitos filosóficos heideggerianos para o âmbito da reflexão política, Arendt revela tanto o seu potencial para a renovação da compreensão da política quanto elucida as deficiências e fragilidades políticas do pensamento de seu antigo mestre, das quais ela se afasta na medida em que as pensa como inseridas no campo da hostilidade tradicional da filosofia em relação à política. (DUARTE, 2000, pp. 320-1) <br />
<br />
Num testemunho eloquente acerca dessa importância que a pessoa, a filosofia e as ideias políticas de Jaspers exerceram em sua trajetória pessoal e intelectual – especialmente em sua abertura para a reflexão e a ação políticas –, a própria Hannah Arendt, na dedicatória à edição alemã de seu livro <i>Sech essays</i> (1942), escreveu:</div><div style="text-align: justify;"><br />
<div style="margin-left: 80px;"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">O que aprendi com você, e que me ajudou nos anos seguintes a encontrar meu caminho na realidade sem lhe vender minha alma, como antes as pessoas vendiam a alma ao demônio, é que a única coisa importante não é a filosofia, e sim a verdade, que a pessoa tem de viver e pensar em campo aberto, e não dentro de sua pequena concha, por mais confortável que seja, e que a necessidade, sob qualquer forma, é apenas um fogo-fátuo que tenta nos seduzir para desempenhar um papel, em vez de tentarmos ser seres humanos. (ARENDT, 2008a, p. 241) </span></span></span><br /></div></div><div style="text-align: justify;">
<br />
E mais:</div><div style="text-align: justify;"><br />
<div style="margin-left: 80px;"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">Naqueles tempos [i.e., antes da ascensão do nazismo – RG], algumas vezes senti a tentação de imitá-lo, mesmo em sua maneira de falar, porque essa maneira, para mim, simbolizava um ser humano que lidava com o mundo de um modo aberto e direto, um ser humano sem segundas intenções (...). E, em todo caso, sua vida e sua filosofia nos oferecem um modelo do tipo de diálogo que os seres humanos podem travar, apesar das condições dominantes do dilúvio. (ARENDT, 2008, pp. 242; 244) </span></span></span><br /></div></div><div style="text-align: justify;">
<br />
Os “anos seguintes”, nos quais Arendt não pôde mais contar com o auxílio de Jaspers para encontrar seu caminho, foram os anos da dominação nazista, o que a obrigou, em razão de sua condição de judia, a abandonar a Alemanha e, posteriormente, com o início da guerra, a França, onde ficou exilada por sete anos. <br />
<br />
Essa apreciação amplamente favorável de Arendt torna-se ainda mais sedutora e (quase) indubitável quando lembramos que, nos terríveis anos do governo de Hitler, enquanto Heidegger – outrora grande amigo e companheiro da “comunidade de luta” de Jaspers (HOLZAPFEL, 2007) – inscreveu-se como membro do partido nazista, aderiu ao regime e tornou- se reitor da Universidade de Freiburg, o também eminente filósofo Jaspers nunca ocupou nenhum cargo ou tomou parte em qualquer organização ou movimento do nacional-socialismo. Ao contrário, embora não tenha sido obrigado a deixar a Alemanha, foi empurrado ao ostracismo intelectual por vários anos pelo fato de ser esposo de uma judia. “Desde 1933 fora-lhe retirado o direito de tomar parte na administração da Universidade; em 1937, o de ensinar; em 1938, o de fazer publicações. Em 1945, graças a uma indiscrição, foi informado de que seria deportado com a mulher, no dia 14 de abril.” (HERSCH, 1982, p. 8) Com a intervenção aliada, o casal Jaspers foi salvo pelas tropas americanas. <br />
<br />
Pois bem, nesses breves e econômicos traços, sem que os fatos sejam esmiuçados, a perseguição sofrida por Jaspers e a consequente perda de direitos civis a que foi submetido revelam uma figura avessa ao nazismo e de reputação ilibada. No entanto, tal brevidade e economia resultam numa versão da história demasiadamente linear, coesa, a qual, infelizmente, não corresponde à realidade. Isso porque, se as relações do filósofo com o regime nacional-socialista não atingiram, de maneira alguma, o nível do envolvimento de Heidegger, elas foram muito mais contraditórias do que uma versão de peremptória não adesão permite transparecer – uma versão, inclusive, de cuja autenticidade, ao fim da guerra, Jaspers procurou convencer as autoridades aliadas (LOSURDO, 2003, p. 49). E, a bem da verdade, análises de textos e documentos da época revelaram que a relação de Jaspers com o nazismo não foi de inquestionável rechaço, pois, se nunca aderiu <i>praticamente </i>ao regime ou apoiou o racismo e outras ideias segregacionistas, o modelo de ser humano “sem segundas intenções” que Arendt tanto admirava teve, nos anos iniciais da Chancelaria de Hitler, uma atitude bastante ambígua em relação ao regime, ao <i>Führer </i>e às expectativas nacionais por ele despertadas. <br />
<br />
Domenico Losurdo, em suas investigações sobre as origens da <i>Kriegsideologie</i><b>[2]</b> e as relações da filosofia de Heidegger com ela, mostra-nos como, às vésperas de Hitler ascender ao poder, Jaspers ainda endossava plenamente os juízos nacionalistas de Max Weber<b>[3]</b>, pensador que, apesar de suas concepções liberais – veementemente repudiadas por Heidegger –, apoiou a “grande e maravilhosa guerra, (...) independente do resultado final” (LOSURDO, 2003, p. 9). Nesse endosso, um prefácio de 1932 aos escritos de Weber, intitulado “Max Weber, deutches Wesen im politischen Denken im Forschen und Philosophieren” [“Max Weber, a essência alemã no pensamento político, na pesquisa e na filosofia”], Jaspers utilizou-se de conceitos muito característicos da <i>Kriegsideologie</i>, tais como historicidade, povo, “essência alemã”, “destino comum”, “vontade de destino”, “comunidade de solo”, “culpa a respeito do ser” etc. (LOSURDO, 2003, pp. 41-56), os quais eram também muito presentes no ideário nazista<b>[4]</b>. Sua defesa do pronunciado nacionalismo de Max Weber foi tão enfática que ele se indispôs até mesmo com sua discípula dileta, Hannah Arendt, recriminando-a por sua recusa a identificar-se com o nacionalismo germânico. “Jaspers reafirma a Hannah seu orgulho em ser alemão nesse momento [3 de janeiro de 1933] e diz entender essa juventude nacionalista alemã que, é claro, se exprime num discurso confuso, mas manifesta boa vontade e um impulso autêntico para renovar o país.” (ADLER, 2007, p. 131) Arendt não concorda com tal nacionalismo e recusa a recriminação de Jaspers, respondendo: “para mim, a Alemanha é a língua materna, a filosofia e a criação literária” (ARENDT apud ADLER, 2007, pp. 130-1). E obtém, por sua vez, a seguinte tréplica do seu mestre: “quando invoca a língua materna, a filosofia e a poesia, bastar-lhe-ia acrescentar o destino político e histórico e, então, [entre nós] já não haveria qualquer diferença” (JASPERS apud COURTINE-DÉNAMY, 1999, p. 18). Segundo Adler, o entusiasmo de Jaspers é tal que ele “pretende dar um conteúdo ético à palavra ‘alemão’” (ADLER, 2007, p. 131). De um modo mais explicativo, a mesma informação encontra-se em Courtine-Dénamy, segundo a qual “Jaspers surpreendia-se por Arendt, enquanto judia, desejar distinguir-se da essência alemã e justificava o seu subtítulo, explicando que, para além dos abusos do adjetivo ‘alemã’, tentara restituir-lhe um conteúdo ético, através da estatura de Max Weber” (1999, p. 18). <br />
<br />
Além desse nacionalismo às vésperas da ascensão de Hitler ao poder, Jaspers, em abril de 1933, congratulou Heidegger pelo reitorado e, ainda que com ressalvas, aprovou seu famoso discurso pronunciado na posse (“A autoafirmação da universidade alemã”). Em suas próprias palavras: <br />
<blockquote class="tr_bq">
<blockquote class="tr_bq">
</blockquote></blockquote><div style="margin-left: 80px; text-align: justify;">
<span face=""verdana" , sans-serif"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;">Seu discurso tem substância genuína. E eu não falo de estilo nem de densidade, a qual – como a distância eu posso ver – faz desse discurso o documento único nesses dias, e que continuará como tal, de uma vontade singular na universidade atual (...). Em suma, estou realmente feliz que alguém possa falar assim, alcançando as origens e os limites autênticos. (JASPER in BIEMEL; SANER, 2003, p. 149)</span></span> </span></div><blockquote class="tr_bq"><blockquote class="tr_bq">
</blockquote>
</blockquote>
No verão de 1933, ou seja, coetâneo ao período da reforma universitária promovida pelo regime nazista, Jaspers, mesmo após ter vedada sua participação na administração da universidade, elaborou suas próprias teses para a reforma, as quais eram bastante convergentes com as oficiais. Por isso, em 23 de agosto, ele escreveu a Heidegger e considerou “a nova organização do ensino superior, recém-decretada pelo Ministério da Cultura de Baden, cujo cerne era a introdução do <i>Princípio do Führer </i>e a retirada de poder dos órgãos do colegiado, um ‘passo extraordinário’”. Com isso, esperava que seu amigo sensibilizasse “os líderes do governo para que se pusessem em contato com ele, Jaspers”, pois, afinal, suas “próprias ideias de reforma não estão em ‘discordância’ com os princípios até agora ouvidos da parte do governo’, mas que ‘são unas’ com eles”. Seu desejo, portanto, era participar da reforma, dado que, “no diagnóstico, ele coincide em tudo com Heidegger” (SAFRANSKI, 2000, p. 300). Também por isso se lamenta, dizendo: “não posso fazer nada sem ser solicitado, pois me dizem que como não-membro do partido e como esposo de uma mulher judia sou meramente tolerado, e não posso gozar de confiança” (JASPERS apud SAFRANSKI, 2000, p. 300). Lamento que mereceu de Losurdo um comentário incisivo: “nesse momento, mais do que rechaçar o regime, o filósofo se lamenta de que o regime o rechace injustamente” (LOSURDO, 2003, p. 52). <br />
<br />
Esse conjunto de informações nos permite, então, dizer que a admiração de Hannah Arendt não parecia ancorar-se numa avaliação distanciada e justa da conduta de Jaspers ante o regime nazista. Do mesmo modo, também não procede a afirmação de Jeanne Hersch, segundo a qual o “seu rompimento [de Jaspers] com o Reich radicalizara-se desde 1933” (HERSCH, 1982, p. 8). Na verdade, numa carta a Heidegger, datada de 10 de julho de 1949, o próprio Jaspers indicou a data de sua ruptura: “isto era claro desde 1934, quando meu velho pai de 84 anos me disse: ‘Meu garoto, nós perdemos a pátria!’” (JASPERS in BIEMEL; SANER, 2003, p. 167). Portanto, pelo relato tardio, foi a partir de 1934 que ele se afastou de modo mais contundente do regime. E mesmo assim não o fez integralmente, pois, “ao continuar profundamente ligado aos motivos da <i>Kriegsideologie</i>, Jaspers não pôde proceder a uma ruptura ou tomar distância clara a respeito do III Reich, que havia herdado tal ideologia” (LOSURDO, 2003, p. 56). Essa afirmação de Losurdo tanto é verdadeira que, em 1935, ou seja, dois anos após a ascensão de Hitler e a instauração plena da perseguição a comunistas e judeus – e, também, um ano após a data que o próprio Jaspers atribui como a de sua ruptura com o regime –, ele ainda advogava em favor do nacionalismo alemão. Assim, em suas reflexões sobre a distinção weberiana entre a ética da responsabilidade e a ética da convicção, Jaspers ponderava que assumir esta última significaria “constranger os meus à mesma situação dos mais débeis no que diz respeito às relações do ser, dos impotentes, dos destinados à derrota” (JASPERS apud LOSURDO, 2003, p. 55). Por conseguinte, depreende-se daí que, naquele momento, ele “não só não deseja a derrota e a ocupação militar da Alemanha, mas que possui uma precisa crítica filosófica a todos aqueles que, provavelmente, deveriam desejá-la” (LOSURDO, 2003, p. 55). <br />
<br />
Lapso de memória ou ocultação consciente? Pelo visto, sem menosprezar as tensões e críticas que efetuou ao nazismo, Jaspers omitiu para a posteridade as suas simpatias iniciais pelo regime de Hitler, pois, até 1935, ainda advogava em nome do nacionalismo alemão, que, naquele momento, estava consubstanciado no governo nacional-socialista. <br />
<br />
Essas considerações acerca de suas relações com o nacionalismo conservador e o nazismo nos levam, obrigatoriamente, ao conteúdo das ideias filosóficas e políticas de Jaspers. <br />
<br />
<b>Filosofia e política </b><br />
<br />
Dentre as muitas características da filosofia e do pensamento político de Jaspers, algumas, de modo explícito, permeiam amplamente suas reflexões. Na esfera estritamente filosófica, sobressaem a crítica à pretensão totalizante da razão<b>[5]</b>, a presença de certo “mistério” que emerge no limiar do conhecimento e a <i>angústia</i> como – e as situações-limite criadoras de um – estado de espírito favorável à conquista do “ser-si-próprio”. Na esfera política, obviamente perpassada pela anterior, predominam os sentimentos de uma <i>ruptura histórica</i> – e, típicos da filosofia conservadora, seus pares integrados,<i> historicidade</i> e <i>destino </i>–, uma <i>nostalgia aristocrática</i> das formas de viver e das produções espirituais e personalidades do passado, um arraigado <i>pavor à ascensão das massas populares à esfera pública</i>, um <i>repúdio sistemático ao socialismo </i>e, especialmente no pós-guerra, frisando as reservas de praxe (monopólios, desigualdade, concentração do poder), um <i>leve apreço pela democracia burguesa</i>. Destarte, na abordagem desse complexo de questões, comecemos, por sua posição na articulação conceitual de seu pensamento filosófico e político, pelas críticas jasperianas à pretensão totalizante da razão<b>[6]</b>. <br />
<br />
Nessas críticas, Jaspers trata os resultados da pretensão totalizante da razão como “conhecimento dogmático” (absoluto) dotado de “objetividade rigorosa” – suporte da expectativa de prever e controlar o próprio curso da história<b>[7]</b> – e, na senda de Kierkegaard, nulificador do indivíduo. Numa assertiva em que, ao pretender repeti-lo, radicaliza o gérmen irracionalista no pensamento de Kant, o filósofo escreve: “se existe a unidade da vida (que permitiria compreender como a vida brota do inerte), essa unidade permanece inatingível, no infinito. Realizando surpreendentes descobertas <i>in partibus</i>, a ciência de nossos tempos não faz senão adensar o mistério <i>in totum</i>” (JASPERS, 1971, p. 20). Para Jaspers, pela pretensão e pelos resultados, “<i>esta perspectiva de conjunto</i>, este querer conhecer em que consiste, histórica e atualmente, a totalidade, é erro de base; o ser da totalidade é ele próprio problemático”. Daí que, para que alcance um conhecimento justo e, nos parâmetros que ele define, verdadeiro, é fundamental que o pensador “não se arrogue o conhecimento da totalidade” (JASPERS, 1968, pp. 44-5). E uma das causas desse erro está na incompreensão de que “a totalidade nunca é (...) pura e simplesmente o todo” (JASPERS, 1968, p. 132). Sendo o próprio transcendente parte integrante da totalidade, “o saber total é impossível porque o todo que nos envolve não é um objeto” (JASPERS, 1965, p. 239). A totalidade “é a tensão entre valores incompatíveis. Não constitui para nós objeto concreto, mas, num vago horizonte, <i>o espaço de encontro do homem com a transcendência</i>, realização das obras humanas, glorificação do sobrenatural ao nível da natureza, predestinado, embora, a submergir no abismo, reduzido a nada” (JASPERS, 1968, p. 171). Não há, portanto, resolução racional para esta questão: “quanto mais conhecemos, tanto maior nos parece o mistério da totalidade” (JASPERS, 1965, p. 179). Para Jaspers, isso não significa que não exista unidade dos objetos do mundo. Há, mas esta unidade não é unidade <i>em-si</i>, pois a ciência apreende os objetos deslocados do todo e, ao fim, a razão efetua, <i>para-nós</i>, a unidade rompida pelo intelecto, que, em sua tarefa analítica, deslocou os objetos do “abrangente” (“englobante”). Encontramo-nos aqui em pleno coração do idealismo subjetivo, haja vista que, no limiar do salto para a transcendência,</div><div style="text-align: justify;"><br />
<div style="margin-left: 80px;"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">é a razão que impõe e instaura a unidade, ligando entre si as modalidades do englobante, bem como os fenômenos que nele se produzem. Trata-se de uma necessidade cuja existência se eleva das raízes da própria razão. A unidade requerida pela razão é <i>condição de sentido</i>. Mas é a existência vivente que acredita no sentido e põe a razão em movimento. É ela que dá à razão a eficácia de um englobante que está aberto a tudo e quer unir todas as coisas (HERSCH, 1982, p. 39). </span></span></span><br /></div></div><div style="text-align: justify;">
<br />
Outrossim, para Jaspers, a tentativa de apreensão da realidade (social ou natural) como totalidade constitui, além de um equívoco teórico, um sinal de presunção intelectual e de imperdoável arrogância. O tom místico, a nota pessimista e a repreensão moral que ecoam dessas assertivas explicitam que, para ele, há sempre uma dimensão misteriosa, transcendental – nas origens, no futuro, para além do homem e seu mundo –, que é incomensurável e incognoscível à existência humana<b>[8]</b>, e qualquer tentativa de conhecê-la merece reprovação intelectual e moral. <br />
<br />
Em benefício do filósofo da existência, se é que podemos dizer assim, essas críticas à totalidade não eram exclusividade da sua filosofia, mas comuns a muitos teóricos que, em oposição ao fascismo (e ao nazismo), viam nesta categoria uma das fontes filosóficas da <i>planificação total </i>e, com ela, uma ameaça às liberdades burguesas. Para Lukács, dentre as muitas definições de totalidade, a mais influente, radical e caricatural foi a formulada por Othmar Spann. Nela, “a sociedade, enquanto totalidade, significa (...) a supremacia absoluta da ordem e da hierarquia, o que quer dizer que a totalidade exclui a causalidade e, mais ainda, a evolução” (LUKÁCS, 1979a, pp. 238-9). Devido a essas características, mesmo que Spann não tenha sido um fascista, suas ideias eram perfeitamente compatíveis com a perspectiva de constituição de uma sociedade hierárquica e organicamente estruturada, como apregoava o mito fascista da superação da própria história com o advento de uma sociedade imutável e eterna. Não é casual, portanto, que sejam numerosos “aqueles que acreditam que ela [a categoria de totalidade] provém do vocabulário do fascismo” (LUKÁCS, 1979a, p. 238) e, ao mesmo tempo, também aqueles que, na crítica à categoria de totalidade formulada por Spann, suprimiram “toda ideia de totalidade”. Para efeito de uma compreensão mais adequada do problema, cabe sublinhar que essas críticas não se dirigiam apenas às ideias fascistas e suas aspirações sociopolíticas, mas, de um modo geral, também àquelas filosofias que, muito distantes do fascismo, advogam um conhecimento objetivo da realidade: a filosofia hegeliana e o marxismo. <br />
<br />
Lembremos que na época em que Jaspers desenvolveu suas reflexões sobre o tema, anos 1920, a União Soviética e suas experiências de planificação econômica já constituíam uma realidade e, pelos efeitos sobre a consciência e a luta proletária de outros países, um exemplo ameaçador à sociedade burguesa<b>[9]</b>. Nesse sentido, suas críticas à categoria de totalidade visavam, afora a tentativa de resolução de um problema eminentemente filosófico, a atingir tanto o fascismo quanto o comunismo, como podemos ver nessa afirmação: “é pois compreensível que <i>quase todos fracassem</i> [na busca pela organização racional da existência]. Como fugas para soluções de facilidade surgem o bolchevismo e o fascismo” (JASPERS, 1968, p. 142). Procedendo assim, além da comum arbitrariedade de subsumir ideários <i>radicalmente distintos</i> sob a mesma formulação abstrata – equívoco que, diga-se, também está presente em certas ideias de Hannah Arendt –, ele recusou, sob o pretexto de que uma ação desse tipo pressupõe o “conhecimento total” da realidade, a intervenção consciente dos homens na história. Em sua concepção, tal fato ocorre porque os adeptos dessa intervenção esquecem-se de que “há um outro limite da história: não percebemos o conjunto da história como um todo lógico. A ciência empírica da história sempre se põe frente ao azar. Tal é a característica essencial de seu objeto” (JASPERS, 1971, p. 29). <br />
<br />
Com essa exclusão da categoria da totalidade da ciência da história – isto é, do conhecimento científico do homem sobre si mesmo –, Jaspers assevera que sua assunção no<i> corpus </i>de qualquer pensamento filosófico- científico somente pode ser o resultado de uma profunda incompreensão da própria natureza da história humana, incompreensão que impulsiona o homem a querer conduzir sua história à maneira das coisas do mundo da técnica. Diz ele: “pode-se planejar na esfera do mecânico e racional, não na esfera do vivo e espiritual”. Sendo que a crítica a essas arbitrárias tentativas de planejamento passaria pela compreensão de que “a tendência à planificação total tem essas duas fontes principais: o exemplo da técnica e a sedução do suposto saber da história em sua totalidade” (JASPERS, 1965, p. 240). Desse modo, devido tanto ao caráter idealista e politicista de sua filosofia como, certamente, à influência sofrida pelos caminhos – e descaminhos – do desenvolvimento da União Soviética, Jaspers identifica comunismo e fascismo à “planificação total”, e esta, por sua vez, ao totalitarismo. Resultado: <i>sua vinculação da categoria de totalidade ao totalitarismo é, ao mesmo tempo, uma refutação do comunismo</i><b>[10]</b>. E, assim como tantos outros pensadores do seu (e do nosso) tempo, ele utiliza, ante o rol das correntes de pensamento, o marxismo como objeto <i>privilegiado</i> de sua crítica à totalidade<b>[11]</b>. <br />
<br />
Um considerável exemplo de como, em larga medida, Jaspers efetua o combate ao marxismo e ao comunismo por meio da crítica à pretensão totalizante da razão pode ser lido em seu livro <i>Vom Ursprung und Ziel der Geschichte</i> (<i>Origem e meta da história</i>), de 1949, no qual esta crítica ocupa por inteiro o subcapítulo intitulado <i>Sozialismus</i>. Nele, logo após reconhecer o socialismo<b>[12]</b> como “o traço fundamental de nossa época” (JASPERS, 1965, p. 225), o filósofo estabelece uma cadeia de relações na qual vincula a referida pretensão à dialética, ao marxismo, à inexorabilidade do processo histórico, à planificação – especialmente a plenitude desta, a<i> planificação total</i> – e ao comunismo. Por isso, após frisar que o “socialismo moderno” não se resume ao marxismo, afirma que ele,</div><div style="text-align: justify;"><br />
<div style="margin-left: 80px;"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">na forma do marxismo (comunismo), parte também de um conhecimento total do curso das coisas humanas. Em virtude do método da dialética histórica, que se pretende científica, concebe-se a realização do comunismo como fatal e inexorável. A verdadeira ação do comunista descansa na certeza desta força que ele não faz mais do que acelerar (JASPERS, 1965, p. 225). </span></span></span><br /></div></div><div style="text-align: justify;">
<br />
O raciocínio de Jaspers sobre o tema é relativamente simples. De modo sintético, ele sustenta que a planificação é uma característica básica da existência humana, pois “qualquer necessidade é a origem da planificação”; e ainda, que a necessidade bélica “é a fonte da planificação total”. O comunismo, que nasce no interior dos conflitos sociais e por meio da violência (revolucionária), constitui o ideal de uma sociedade totalmente planificada, e esta, por sua vez, exige um conhecimento total da realidade e um poder estatal absoluto. Diante disso, os problemas resultam do fato de que “ninguém pode ver claramente o entrelaçamento das realidades econômicas” e “nem é possível uma vontade e nem um conhecimento de conjunto” (JASPERS, 1965, pp. 229; 238). Igualmente, que “não se pode refrear a planificação total econômica limitando-a à esfera da economia, pois se torna universal para a vida dos homens. A regulação da economia leva à regulação de toda a vida pelas consequências das formas de vida que engendra” (JASPERS, 1968, p. 232). Por isso, o comunismo, que pretende converter o homem “em Deus”<b>[13]</b>, em artífice de sua própria história<b>[14]</b>, só pode ser a imputação arbitrária de uma visão unilateral e monocausal<b>[15]</b> acerca da realidade, e que, na prática, só pode assumir a forma de uma sociedade totalitária. Nesse sentido, sua concretização, longe de realizar as intenções originárias dos “princípios socialistas”, resulta no oposto delas. Isso porque,</div><div style="text-align: justify;"><br />
<div style="margin-left: 80px;"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">enquanto as pretensões socialistas se mantêm no concreto, são válidas, sempre dentro de certos limites. Só quando se perde de vista o concreto e se supõe possível a fantasia de um mundo humano feliz, se tornam abstratas e absolutas. O socialismo se converte, então, de ideia em ideologia (JASPERS, 1965, pp. 246- 7). </span></span></span><br /></div></div><div style="text-align: justify;">
<br />
De facílima compreensão, as suas críticas à totalidade e a sua conceituação de ideologia receberão, mais adiante, um tratamento adequado. Por ora, lembremos apenas que, na linha da <i>apologia indireta </i>da sociedade burguesa, a leitura de Jaspers não desqualifica os “princípios socialistas” de modo absoluto e, publicamente – em privado a situação era diferente, pois, como demonstram as cartas trocadas com Arendt, as críticas eram veementes e, em alguns casos, até mesmo vulgares –, nem o próprio Marx, a quem, eventualmente, reconhece conquistas intelectuais<b>[16]</b>. Ela, ao contrário, implica uma postura conciliatória em relação a esses princípios, mas somente naqueles aspectos que, a seu ver, não afetam a essência da sociedade burguesa<b>[17]</b>. É isso que, a partir do que vimos acima, permite-nos entender a seguinte afirmação do filósofo:</div><div style="text-align: justify;"><br />
<div style="margin-left: 80px;"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">Na <i>economia de livre mercado</i> não há modo de progredir sem uma ampla planificação – ainda que neste caso limitada –, na qual está incluído o<i> laissez-faire </i>e o restabelecimento das condições sob as quais pode existir a concorrência como método de seleção e crédito. O plano de não planejar cria marcos e possibilidades pela virtude das leis. (JASPERS, 1965, p. 233) </span></span></span><br /></div></div><div style="text-align: justify;">
<br />
O planejamento, então, deve ser implementado para garantir a concorrência e não para suprimi-la,</div><div style="text-align: justify;"><br />
<div style="margin-left: 80px;"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">pois somente na luta da concorrência, livre de prescrições legais, se pode esperar de modo confiante o desenvolvimento e o progresso, a busca e o ensaio de inovações, a perspectiva de novas oportunidades; somente nela se alcança o êxito pela virtude da completa tensão de todas as forças espirituais, porque, quando falham, em seguida ameaça a bancarrota (JASPERS, 1965, p. 230). </span></span></span><br /></div></div><div style="text-align: justify;">
<br />
Apesar de afirmar, por conseguinte, que “as <i>velhas oposições</i> quanto a perspectivas do mundo, como o individualismo e o socialismo, o liberalismo e o conservantismo (...) não correspondem já ao nosso tempo, embora sirvam ainda, por toda a parte, de emblema ou de motivo de insulto” (JASPERS, 1968, p. 225), Jaspers não faz nada mais do que subscrever com traços keynesianos o ideário liberal. E, também aqui, nas esferas econômica e política, não produziu nenhuma alternativa, nenhum “terceiro caminho”, mas apenas respaldou ideias preexistentes. <br />
<br />
Em alguns excertos de seus textos – os quais indicam tanto seus desdobramentos irracionalistas como o entrelaçamento de sua filosofia com a<i> Kriegsideologie</i> –, é bastante ilustrativo esse descrédito jasperiano acerca das capacidades da razão. Num deles, em nítidas tonalidades kantianas, o filósofo expôs assim as suas negativas acerca da possibilidade de um conhecimento objetivo e totalizante da realidade: </div><div style="text-align: justify;"><br />
<div style="margin-left: 80px;"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">Vivemos na realidade como em um mundo de enigmas que se conflitam. Desmistificando os fenômenos, o conhecimento científico só consegue, por contraste, tornar mais clara e mais rica a ação desses enigmas (...). Uma realidade incognoscível precede a possibilidade do conhecer e não é alcançada pelo conhecimento. Para o tipo de conhecimento de que dispomos, o mundo é insondável (...) O mundo não é aparência, mas realidade. Realidade que é manifestação, fenômeno. Enquanto fenomenalidade, “possibilidade de manifestar-se” [<i>Erscheinungschaftingkeit</i>] o mundo encontra apoio na realidade, no abrangente que, de sua parte, jamais se manifesta como realidade no mundo, como objeto passível de estudo (...). O mundo real [<i>Realität</i>] é manifestação da realidade e não a realidade [<i>Wirklichkeit</i>]. (JASPERS, 1971, pp. 22; 24; 38; 41) </span></span></span><br /></div></div><div style="text-align: justify;">
<br />
No contexto histórico da decadência burguesa, esse limite inexpugnável exprime o fracasso do conhecimento frente ao mundo e ao transcendente e, com isso, alimenta o absurdo pessimismo da redução do homem ao nada, pois as ações humanas efetuam-se, cada vez mais, assentadas na incerteza<b>[18]</b>. Isso ocorre tanto no âmbito individual quanto no coletivo – que, na sociedade burguesa, exprime-se na forma da política<b>[19]</b>.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br />
Entende-se, assim, a resignação de Jaspers que, ancorado nesse solo fértil para o niilismo e o intuicionismo filosófico e religioso, escreve: aquilo “que à divindade cabe saber não cabe ao homem querer saber”. Como sem o conhecimento não cabe ação coerente, mais adiante, apensa: “o que mais valha [fazer] ante a transcendência a ninguém cabe saber” (JASPERS, 1968, pp. 48; 153). E ainda, como se não bastasse a resignada assunção da incognoscibilidade do mundo e da história – isto é, o fracasso do conhecimento científico – e a identificação (mas não resolução) dos “mistérios da existência”[20], Jaspers atribui às pretensões científicas o próprio fundamento da infelicidade humana. Em seus termos, “começa a infelicidade do gênero humano quando se identifica o cientificamente conhecido ao próprio ser e se considera como não-existente tudo quanto foge a essa forma de conhecimento” (JASPERS, 1971, p. 23). No entanto, longe de extrair plenamente todas as consequências de sua asserção, Jaspers, numa atitude típica dos pensadores que se inserem no caminho do irracionalismo moderno<b>[21]</b>, extrai aspectos surpreendentemente positivos destes limites inexpugnáveis do conhecimento. Um exemplo: “a dignidade do homem reside no fato de ele ser indefinível. O homem é como é porque reconhece essa dignidade em si mesmo e nos outros homens” (JASPERS, 1971, p. 54). Como em Heidegger, não são os aspectos positivos da existência que impulsionam o indivíduo a desenvolver uma postura consciente acerca de si e do mundo, pois a vida não ganha sentido e “não encontra sua realização verdadeira” senão nas situações-limite<b>[22]</b> (especialmente na maishistórico que fomenta a cadência das ações de poder político, sem, todavia, ser, como totalidade, abrangível.” (JASPERS, 1968, p. 141) incontornável delas, a morte), que são as experiências pessoais – por ele consideradas – autoesclarecedoras. Por isso que, em suas palavras,</div><div style="text-align: justify;"><br />
<div style="margin-left: 80px;"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">uma dominação total da organização da existência destruiria o homem como existência e exigência face</span></span></span><br /></div></div><div style="text-align: justify;">
<br />
Pouco importa, aqui, discutir se as filigranas de suas elucubrações sobre uma suposta “dominação total da organização da existência” – não é difícil compreender que, para ele, trata-se de uma sociedade comunista – encontram algum lastro teórico ou prático, dado que elas se assentam numa clara incompreensão do que, para o marxismo, é a totalidade e o próprio comunismo. Importa, isto sim, salientar como, no espírito dos teóricos que alimentam a <i>Kriegsideologie</i><b>[23]</b>, Jaspers exalta situações problemáticas – desde a insegurança e a angústia[<b>24</b>] até as diversas “situações-limite”, como o nascimento, “as limitações particulares de minha existência, (...) a morte, o sofrimento, a luta, o erro” (JASPERS apud HERSCH, 1982, p. 65) – como motivações fundamentais para a consciência e a autoconsciência<b>[25]</b>.</div><div style="text-align: justify;"><br />
<div style="margin-left: 80px;"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">Estas situações-limite abrem (...) uma perspectiva sobre a condição empírica: esta é questionada na sua totalidade; perguntamo-nos se ela é possível, ou impossível, ou possível de uma outra maneira. A condição empírica em geral é compreendida como um limite, experimentada na situação- limite que torna manifesto <i>o caráter problemático do ser no mundo e do meu ser nele.</i> (JASPERS apud HERSCH, 1982, p. 65) </span></span></span><br /></div></div><div style="text-align: justify;">
<br />
Para o entendimento adequado desse aspecto do pensamento de Jaspers, é de suma relevância compreender que a consciência acerca da sua situação e do mundo que o indivíduo alcança por meio das perspectivas abertas pelas situações-limite nunca é uma apreensão racional – isto é, passível de expressão pelo discurso científico ou filosófico. Ela é o resultado de uma experiência, de uma percepção religiosa. E para essa experiência, ao contrário do que se possa imaginar, o intelecto não constitui um obstáculo, mas uma espécie de “abre-alas” <i>racional</i> para que aquela <i>experiência intuitiva </i>possa genuinamente ocorrer<b>[26]</b>. Segundo ele,</div><div style="text-align: justify;"><br />
<div style="margin-left: 80px;"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">a unidade da natureza universal, do Um-Total que repousa em si mesmo é experiência possível para uma percepção religiosa do mundo. Considerando ao mesmo tempo, todas as coisas e tudo o que é particular e individual, essa percepção religiosa descobre no mundo uma linguagem cifrada. Os caracteres enigmáticos dessa linguagem nada são para a ciência, que não os pode provar nem refutar (JASPERS, 1971, p. 24). </span></span></span><br /></div></div><div style="text-align: justify;">
<br />
Se, como vimos, para Jaspers, não há objeto sem sujeito e nem sujeito sem objeto, essa unidade da natureza que, ao mesmo tempo, engloba sujeito e objeto, ultrapassa a ambos e torna possível ao sujeito apenas uma apreensão do objeto <i>para-si</i>, jamais <i>em-si</i>, ele denomina das <i>Umgreifende </i>(<i>abrangente, oniabrangente </i>ou <i>englobante</i>)<b>[27]</b>. “Reconhecê-lo, nenhuma importância tem para o conhecimento científico ligado a objetos (...). É impossível o salto do intelecto até ele. Ele se vale do intelecto para o transcender, sem perdê-lo.” Como dissemos, o intelecto – isto é, as ciências – abre o caminho para “um tipo diverso de pensamento” (JASPERS, 1971, p. 44), ou seja, à intuição. Nesse salto reflexivo, a negatividade é novamente metamorfoseada em positividade: “é pelo fato de o homem <i>não poder conhecer-se em nenhuma das diferentes espécies de conhecimento </i>e que ele integra após o conhecimento objetivo ao seu processo filosófico, que ele <i>abrirá caminho através</i> da situação, superando-se a si próprio” (JASPERS, 1968, p. 229). Para as indagações que os conhecimentos filosófico e científico não podem responder, e que, por essa irresolução, enredam o indivíduo num beco sem saída intelectual, só podem brotar respostas, “por estranho que pareça, de uma decisão”. Qual? A de experienciar a plenitude da existência (expor-se aos golpes do destino, assumir sua liberdade e as situações-limite), assumir o abrangente e, pela apreensão das cifras, “ouvir” a “fluida linguagem dos enigmas (...), a linguagem da Transcendência” (JASPERS, 1971, pp. 41; 43; 113). Pois, “uma vez tomada a sério a existência, <i>o elemento que a ultrapassa virá ao seu encontro</i>” (JASPERS, 1968, p. 230). Em suma, não é o pensamento que, pelo intenso trabalho de prospecção executado pelo sujeito, reproduz o objeto como totalidade objetiva<b>[28]</b> sob a forma conceitual<b>[29]</b>, mas é o sujeito-objeto (abrangente) que, nos limites do pensamento, pela <i>decisão existencial</i><b>[30]</b> do sujeito, virá ao encontro deste pelas vias da intuição<b>[31]</b>. <br />
<br />
Lukács, em sua longa reflexão sobre o moderno irracionalismo alemão, demostra que as raízes da proeminência da intuição sobre o pensamento discursivo estão fincadas nas antinomias kantianas e na resistência/incapacidade do filósofo de Königsberg de resolvê-las dialeticamente (cf. LUKÁCS, 1970, pp. 5-23). Nas décadas posteriores, o valor filosófico da intuição ascendeu sob o influxo das obras do velho Schelling, Schopenhauer, Kierkegaard e dos adeptos dessa tradição que, em diversos casos, levaram a filosofia a desaguar violentamente nos mares da teologia, com sua pletora de enigmas, sinais, revelações etc<b>[32]</b>. Demonstra também que, dentre os inúmeros problemas relacionados à via intuitiva do conhecimento, os principais são seu<i> caráter aristocrático</i><b>[33]</b> e, devido à revelação imediata e à impossibilidade de comprovar racionalmente suas “aquisições”<b>[34]</b>, sua promoção da <i>ideia de eleição</i><b>[35]</b>. De um modo ou de outro, ambos fomentam o – e, ao mesmo tempo, nutrem-se do – desprezo pelas massas populares e pela democratização radical das formas de participação política. Para seus aristocráticos adeptos, o Iluminismo, a Revolução Francesa e a ascensão das massas populares, com suas aspirações, exigências e sublevações, constituem uma ameaça aos seus privilégios e à sua distinção social. Uma pequena, mas consistente, demonstração da correção da análise lukacsiana pode ser encontrada logo no início de <i>Die geistige Situation der Ziet </i>(<i>A situação espiritual do nosso tempo</i>), um livro no qual, sem o esmaecimento de floreios exagerados, Jaspers franqueia seus sentimentos:</div><div style="text-align: justify;"><br />
<div style="margin-left: 80px;"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">O tempo (...) foi abalado no século passado por um sentimento de perigo: o homem sente-se ameaçado (...). O sentimento de uma ruptura histórica é geral. A novidade, porém, não é já a revolução social a implicar destruição, transferência da propriedade, desaristocratização (...). Como traço específico da época moderna, temos, desde Schiller, a consciência da <i>dessacralização do mundo</i> (...). Essa dessacralização não é a do indivíduo descrente, mas a consequência de um desenvolvimento espiritual que neste caso conduz ao nada. (JASPERS, 1968, pp. 24; 31-4)</span></span></span><br /></div></div><div style="text-align: justify;">
<br />
</div>
<div style="text-align: justify;">
E mais adiante, num tom saudosista típico da aristocracia:</div><div style="text-align: justify;"><br />
<div style="margin-left: 80px;"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">Nota-se hoje uma <i>perda da insubstituível substância </i>contínua, impossível de estancar. Os caracteres fisionômicos das gerações parecem, de há um século para cá, abastardar-se regularmente (...). A decadência tem uma causa espiritual. A <i>autoridade</i> fora o estilo dos vínculos humanos numa base de confiança; conferia ela um elemento legal e reatava o indivíduo à consciência do ser. Esta forma dissipou-se definitivamente no século XIX sob o fogo da crítica. (JASPERS, 1968, pp. 126-7) </span></span></span><br /></div></div><div style="text-align: justify;">
<br />
Baseado nessa compreensão da crise, nutrindo sentimentos nostálgicos diante da dessacralização – isto é, do avanço da razão ante a fé –, negando a possibilidade de uma apreensão racional e totalizante das contradições e problemas da realidade e, ainda, transtornado pelo declínio da autoridade aristocrática e religiosa<b>[36]</b>, Jaspers não pode encontrar saída nas ações conscientes dos homens voltadas para o futuro. Ele volta-se, então, para o passado, no qual avalia encontrar o solo, o fundamento e a origem incorrupta do homem. “Urge, assim, um regresso às origens, ao ser humano, de que o estado e o espírito extraem sentido e realidade.” (JASPERS, 1968, p. 129) Nesse refúgio original, o mundo do seu (e do nosso) tempo se apresenta como o<i> locus</i> da degeneração, por isso o ir adiante virtuoso é, inevitavelmente, um retorno ao passado<b>[37]</b>. E não há dúvida, o fundamento dessa degeneração é a emersão das massas populares, pois, do mesmo modo que “o estado, na sua qualidade de aliado dos homens, é passível de degeneração, assim [ocorre com] o espírito, desde que não viva a partir das suas próprias origens uma vida autêntica, mas falseada ao serviço das massas numa mera mediatidade pragmática” (JASPERS, 1968, p. 177). Ressaltemos que, também como em Heidegger, essa jasperiana “glorificação romântica do passado”<b>[38]</b> (LUKÁCS, 1959, p. 424) é ambígua, tendo em vista que oscila entre a singularidade do povo<b>[39]</b> e a da Antiguidade ocidental<b>[40]</b>. E mais, para não deixarmos escapar o fio de Ariadne das afinidades, tal glorificação romântica, assim como o desprezo pelas massas e pela ameaça por elas representada (o jacobinismo)<b>[41]</b>, constitui um dos temas centrais da <i>Kriegsideologie</i>. Mas, enfim, as (muitas vezes) ríspidas palavras que se seguem adensam nossa compreensão acerca dos sentimentos de Jaspers, tendo em vista que tratam de dois fenômenos educacionais protagonizados pelas massas no século XX: a universalização da educação escolar básica e a ampliação do acesso ao ensino superior. Segundo ele:</div><div style="text-align: justify;"><br />
<div style="margin-left: 80px;"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">Os valores do espírito decrescem na razão inversa da sua expansão às massas (...). Com a organização aplanante da massa <i>desaparece a classe culta</i>, que graças a uma instrução continuada desenvolvera uma disciplina de pensamento e de sentimento que lhe permitiu ser fiel ressonância de criações do espírito (...). A divulgação às massas do saber e da sua expressão leva ao desgaste das palavras e das frases. Neste caos da cultura, tudo se pode dizer sem que, contudo, o que se diga signifique (...). <i>O acesso das massas às universidades</i> tende a destruir a ciência como tal (...). No fundo a ciência é o <i>domínio aristocrático </i>daqueles que por ela optam. A vontade original de conhecimento, única capaz de evitar uma crise da ciência, cabe exclusivamente ao indivíduo e ao risco que a si mesmo se impõe. (JASPERS, 1968, pp. 180; 211-2). </span></span></span><br /></div></div><div style="text-align: justify;">
<br />
Se as massas populares são constituídas por uma imensa gama de indivíduos desqualificados em termos humanos (sentimentos, intelectualidade, moralidade), milhões de Midas às avessas que espalham a degradação e a corrupção dos saberes e dos costumes, não se pode conceber uma atuação resolutiva em relação aos problemas políticos pela virtuosidade de sua participação nessa esfera da vida humana. Sobretudo quando se acredita, como são os casos de Jaspers e Arendt, que “a política é o mais importante dos instrumentos no que diz respeito à nossa coexistência no mundo”, supondo-se que seu objetivo é tornar o homem “autenticamente ele próprio, livre para ordenar os negócios internos da nação e para afirmar- se face ao exterior” (JASPERS, 1971, pp. 67; 69). Porém, como avalia que as democracias – isto é, as democracias das sociedades capitalistas – expressam mais o nivelamento humano promovido pelo aparato técnico que nos reduz a mera função<b>[42]</b> do que a profunda educação política de todos, Jaspers sustenta que “a liberdade política dos homens é rara, inclusive excepcional (...). E a exceção maior, mais eficiente, mais considerável, é a Inglaterra, junto com os Estados Unidos da América”<b>[43] </b>(JASPERS, 1965, p. 221). Mas mesmo esta exceção deve ser matizada, pois, seja onde for, a democracia é um regime político muito contraditório: ao mesmo tempo em que “trata de promover a eleição justa para que se expresse a verdadeira, permanente e essencial vontade do povo” (JASPERS, 1965, p. 219), ela deve excluir “o domínio das massas (a oclocracia) que está sempre enlaçado à tirania”. Isso significa que “liberdade política é democracia, mas por virtude de <i>formas </i>e graus”; daí, para que não ocorra sua degeneração, a necessidade da “primazia de uma camada aristocrática que continuamente está se formando e substituindo, saída da população total em virtude do rendimento, do mérito, do êxito, na qual o povo se reconhece a si mesmo” (JASPERS, 1965, pp. 212-3). E, em conformidade com os outros aspectos de sua filosofia, a política também é (e deve continuar sendo), em seus postos fundamentais, acessível a um número reduzido de indivíduos e dependente da excepcionalidade destes para a consecução de seus objetivos. Enquanto na filosofia são os <i>homens autênticos</i> que, “estando na origem dos voos mais altos possíveis no mundo de hoje, só eles, no fundo, são suscetíveis de exprimir valores autenticamente humanos” (JASPERS, 1968, p. 299); na política, tais homens são os “grandes estadistas”. Todos, então, que vivem ou almejam viver numa democracia dependem deles, podendo-se dizer que “o mundo da liberdade estará perdido se não aparecerem, a cada geração e por meio da educação de homens livres, os grandes estadistas”. Por via de consequência, como poucas pessoas “percebem para que destino as está conduzindo a liberdade” (JASPERS, 1971, pp. 71-2), a democracia é, ao fim e ao cabo, mesmo que muitos participem, um regime político no qual poucos decidem acerca do “destino do estado”. E para Jaspers isto não é um problema; ao contrário, tem de ser assim<b>[44]</b>. Inclusive porque avalia que a democracia (burguesa) também é necessária como regime político adequado à contenção dos movimentos proletários em prol do socialismo<b>[45]</b>. Por fim, cabe apenas apontar a profunda contradição que há no discurso jasperiano entre a sua compreensão da natureza da história humana – e, em específico, da esfera política – e o seu incentivo à intervenção dos homens na condução de seus destinos individuais e coletivos. Para Jaspers, o estado constitui a culminância existencial da coletividade: “a vontade ao encontro do estado é <i>a vontade do homem ao encontro do seu destino</i>”. Por conseguinte, não é em nada estranho que ele tenha atribuído à “consciência política” que anima os indivíduos em suas atividades nos negócios de estado uma função de grande relevo na história, pois, com ela, “pôde o homem alcançar o conhecimento da força como função executiva do poder que, sempre presente, decide da estática e da dinâmica das coisas” (JASPERS, 1968, pp. 132; 134). Em tempos de crise sociopolítica e humana aguda, porém, o homem perde-se na indecisão da vida inautêntica e, com isso, “o destino político de todos se afigura ser a própria <i>ausência de destino</i><b>[46]</b>, porquanto ele só é possível onde o ser-si- próprio abranja a existência e pela sua atividade se comprometa a arriscá- la e realizá-la” (JASPERS, 1968, p. 156). Mas essa ação da qual depende o destino de todos não pode ser orientada por uma consciência política portadora de uma visão totalizante e objetiva das contradições que permeiam e convulsionam a vida social. Ao contrário, porque “a atividade política processa-se, antes, a partir de uma situação histórica concreta dentro de uma<i> ininteligível totalidade</i>” (JASPERS, 1968, p. 167), o indivíduo que compromete a sua existência nessa atividade o faz às cegas. Nem mesmo a filosofia, segundo Jaspers, teria capacidade de ascender a esta visão, pois “o homem não é aquilo que conhece nem conhece aquilo que é”. Seu ser é insondável. Por isso, “em lugar de conhecer a própria existência em função do transcendente, [o homem, por meio da filosofia] limita-se, pois, a introduzir um processo de clarificação” (JASPERS, 1968, p. 251). Nesse sentido,</div><div style="text-align: justify;"><br />
<div style="margin-left: 80px;"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">resta ao homem, pois, o fato auditivo de uma língua que lhe dá acesso à concreta humanidade e através da qual, durante a sua vida, comunicará com o futuro. A consideração da totalidade histórica, pelo contrário, desvia do plano no qual a história se realiza, indizível e secreta. Qualquer tentativa de previsão a partir da história indica apenas um horizonte dentro do qual o indivíduo age (JASPERS, 1968, p. 314). </span></span></span><br /></div></div><div style="text-align: justify;">
<br />
Esse horizonte individual aberto pela decisão e a “escuta” de uma linguagem cifrada pode, no máximo, permitir ao indivíduo comungar com a transcendência o destino da humanidade, dado que esta “tem uma origem única e uma meta final. Mas não conhecemos, em absoluto, nem esta origem e nem esta meta” (JASPERS, 1965, p. 18). Submisso a uma meta que o transcende, o ser humano apenas assume, altivo, que a “Sua consciência de ser se realiza com base em algo que ele jamais compreende, mas de que acredita participar uma vez que seja ele mesmo” (JASPERS, 1971, p. 48). Como vimos, o que lhe permite essa participação altiva num incógnito destino é a filosofia, pois ela é, “hoje, a única possibilidade que resta ao indivíduo conscientemente desabrigado”. E mais, “no modo da sua vida filosófica se inscreve o futuro do homem” (JASPERS, 1968, pp. 220; 304). Isto significa que à filosofia está vinculado o futuro do homem, a mesma filosofia que é para poucos – pois são poucos os dotados de nobreza suficiente para efetuar os esforços sobre-humanos exigidos para se desprender da “dispersão” –, incapaz de ascender a uma visão concreta e total da realidade humana e que, inclusive, é mais uma questão de fé do que de razão<b>[47]</b>, haja vista que seu mais importante resultado é clarificar os limites da existência e possibilitar ao homem assumir o seu destino e abrir- se para “escutar” a linguagem não-racional da transcendência. <br />
<br />
Por trás dessas concepções tão diversas, oculta-se uma herança teológica (que se torna ainda mais oculta com o passar do tempo): a essência seria captável tão só por um pensamento divino, enquanto ao pensamento humano caberia apenas o mundo das aparências e dos fenômenos. (LUKÁCS, 1979b, p. 82) <br />
<br />
Como a ação <i>política</i> ou <i>humanamente</i> emancipatória – uma ação necessariamente coletiva – exige uma leitura coerente e racional da realidade, inclusive das metas a serem alcançadas, só pode ser bastante limitado – ou reacionário –, portanto, o horizonte de uma ação norteada por uma filosofia que não nos orienta acerca do que, coletivamente, podemos almejar e não nos permite construir, mas apenas assumir, o nosso “destino”. <br />
<br />
<b>Considerações finais </b><br />
<br />
Como vimos, as ambiguidades de Jaspers na relação com o regime de Hitler foram bastante tensas e contraditórias, passando de um relativo entusiasmo inicial à crítica e ao rechaço. Inexistentes para Hannah Arendt ou Jeanne Hersch, que viam em Jaspers um intransigente opositor ao nazismo, essas ambiguidades do relacionamento do filósofo não foram expressões de uma escorregadela ou equívoco prático, sem qualquer comprometimento de suas ideias. Ao contrário, sob muitos aspectos, suas ideias filosóficas e políticas eram bastante concernentes àquelas da <i>Kriegsideologie</i>, que, como foi assinalado, constituiu um dos principais mananciais ideológicos dos quais se nutriu o nazismo. Em suas obras percebe-se, então, um intenso nacionalismo e, num determinado momento, uma exaltação dos valores da guerra e do povo, ambos aliados à desconfiança acerca das potencialidades da razão e à valorização da intuição (de conotação religiosa). E, de modo distinto dos nazistas, que fundavam a legitimação político-ideológica e o controle das instituições políticas na participação/mobilização permanente das massas populares, Jaspers, mais identificado com os antigos valores aristocráticos, desconfiava dessa participação, propugnando uma democracia com predomínio prático (nas instituições político-culturais) dos homens com qualidades forjadas nas situações-limite (ou ao menos aptos a extrair força e esclarecimento delas) e, por meio da intuição, capazes de ouvir as “cifras do transcendente”. <br />
<br />
Comungando, enfim, com ideias filosóficas antitéticas à razão – especialmente, como ficou explícito em seu tratamento da categoria da totalidade, à razão dialética – e aos valores da burguesia do período revolucionário, bem como ao pensamento marxista e ao movimento comunista, a defesa da democracia efetuada por Jaspers, sobretudo no pós- guerra, não poderia ser vigorosa e consistente, dado que lhe faltavam os necessários pressupostos teóricos. Por isso, de modo semelhante a muitos críticos atuais, que rejeitam o secundário para fortalecer o essencial da ordem prevalecente, Jaspers, em seu tempo, nos termos de Lukács, fazia uma apologia indireta da sociedade burguesa. Ou seja, se atentarmos para o conteúdo e o tom de muitos discursos/textos “críticos” à ordem que vicejam em nossos dias, veremos que, pelas avessas – isto é, pela crítica a ele –, Jaspers ainda tem muito a nos ensinar.<br />
<br />
= = =<br />
<b>Notas</b><br />
<blockquote class="tr_bq">
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[1]</b> Professor do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina (UEL). <br /><b>[2] </b>A <i>Kriegsideologie</i> (“ideologia da guerra”) é um conjunto de ideias e valores forjados no contexto da “Grande Guerra” (I Guerra Mundial) que, em oposição aos valores iluministas (e racionalistas) da burguesia liberal e – de modo peculiar – dos socialistas, exaltava o sangue, a terra, o povo, a morte na guerra; enfim, ideias e valores que, de inspiração romântica, eram francamente irracionalistas. <br /><b>[3] </b>Segundo Laura Adler, em seu nacionalismo, Max Weber chegou ao nível de afirmar que “liberdade rima com germanidade” (ADLER, 2007, p. 131). Ainda sobre esta questão, cabe assinalar que as conclusões de Losurdo se opõem àquelas de Young-Bruehl, para quem “Jaspers não compartilhou o ‘sentimento de grandeza prussiana’ ou o ‘espírito militar’ de Weber, apesar de tudo, e depois da morte deste chegou à conclusão de que tanto o nacionalismo político como a mentalidade militar no terreno político eram sumamente perigosos para a Alemanha” (YOUNG-BRUEHL, 2006, p. 134). Para essas informações, a biógrafa de Arendt se baseou na <i>Autobiografia filosófica </i>de Jaspers, publicada em 1967; enquanto Losurdo, para as suas, em textos e correspondências de Jaspers escritos na própria época dos acontecimentos.<br /><b>[4] </b>Note-se que não estamos aqui denunciando Jaspers como nazista, mas apenas apontando a presença de elementos conceituais similares entre seu pensamento e o dos nazistas, pois, com suas muitas diferenças, ambos nutrem-se da <i>Kriegsideologie</i>.<br /><b>[5]</b> Sobre esse e outros aspectos de sua filosofia, Jaspers foi bastante influenciado por Max Weber. Segundo Young-Bruehl, “à medida que Jaspers adentrava na filosofia, a pedra angular de sua técnica de pensamento foi o método que aprendeu em suas conversas com o sociólogo Max Weber”. Mesmo após enveredar pelos caminhos de sua própria filosofia, em sua obra <i>Filosofia</i>, “a presença de seu amigo e mentor é evidente em cada página (...) e vai mais além de uma mera influência intelectual, constituindo um exemplo humano. Quando, em 1920, Max Weber morreu, Jaspers recordava, ‘sentia como se o mundo houvesse mudado. O grande homem que, em minha opinião, o havia justificado e animado já não estava entre nós’” (YOUNG-BRUEHL, 2006, pp. 127-8). <br /> <b>[6]</b> Essas críticas, inclusive, foram retomadas por Arendt. <br /><b>[7]</b> “Não se pode moldar o destino a fórmulas ideais.” (JASPERS, 1968, p. 169) <br /><b>[8]</b> “O conhecimento do homem cessa, ao alcançar, face ao transcendente, os seus próprios limites.” (JASPERS, 1968, p. 251)<br /><b>[9]</b> Como demonstraram as Revoluções de 1919 e 1923 na Alemanha. <br /><b>[10]</b> Nos anos 1930, lembra Losurdo, “‘totalitário’ ou ‘totalitarismo’ não eram termos gratos aos representantes e ideólogos do III Reich que, em suma, os utilizavam para designar polemicamente a União Soviética” (2003, p. 199). <br /><b>[11]</b> Segundo Jaspers, “o <i>marxismo</i>, a <i>psicanálise</i> e a<i> teoria das raças </i>são hoje em dia a mais espalhada camuflagem do homem (...). Os mais relevantes, todavia, são os juízos particulares enunciados pelo marxismo” (JASPERS, 1968, pp. 242-3). Ou ainda, numa outra versão: “psicanálise e marxismo não passam de caricaturas de filosofia (...) o marxismo, a psicanálise e o racismo (...) são – desde o momento em que perdem o caráter científico para se tornarem concepções do mundo – os três grandes adversários espirituais do homem de nossa época” (JASPERS, 1971, p. 92). Portanto, o marxismo, que Jaspers identifica como o cerne da sociologia, deveria restringir-se a uma análise científica e deixar o caminho livre à filosofia, pois somente “o conhecimento [<i>Einsicht</i>] filosófico pode nos liberar da prisão neste mundo” (JASPERS, 1971, p. 41). Não é casual, portanto, que, ao recuperar essa ideia, Arendt tenha considerado Marx o “pai do método sociológico” (ARENDT, 2008, p. 394). <br /><b>[12] </b>“Se pode caracterizar o comunismo, em sua diferença com o socialismo, como a absolutização de tendências verdadeiras em princípio.” (JASPERS, 1965, p. 245) <br /><b>[13]</b> “Quando o homem crê abarcar o todo, em lugar de perseguir no mundo os fins concretos alcançáveis, se converte, por assim dizê-lo, em Deus. Perde a relação com a transcendência, coloca-se antolhos, em virtude dos quais perde a experiência da origem e fundamento das coisas em favor de uma aparência: o mero movimento do mundo, o estabelecimento da justa organização do mundo para sempre.” (JASPERS, 1965, p. 249) Nessa visão demiúrgica há uma crítica velada ao marxismo, crítica que sua mais conhecida discípula incorporou às próprias ideias filosóficas e políticas. <br /><b>[14]</b> Sob esse aspecto, assim como muitos outros pensadores de sua época, Jaspers atribui à técnica (ao controle racional das ações incidentes sobre o objeto) uma das fontes do anseio por uma “planificação total” da sociedade. Diz ele: “é como se o homem que planeja pudesse ver ao homem com plena sapiência, como se quisesse produzi-lo à maneira que o artista extrai do material dado sua obra de arte; uma petulância em que o homem se coloca sobre o homem” (JASPERS, 1965, p. 244). Ou ainda, anteriormente: “é a superstição científica de um poder fazer universal o que impulsiona pelo caminho da planificação total” (JASPERS, 1965, p. 240). <br /><b>[15]</b> “O erro da concepção total fica patente no pensamento monocausal.” (JASPERS, 1965, p. 242) Crítica de Weber a Marx, recuperada por Jaspers e, envolta na crítica à ideologia, anunciada por Arendt sob a denominação de “chave explicativa” da história. <br /><b>[16]</b> Em suas palavras, “Marx não é a sociologia. Freud não é a psicologia” (JASPERS, 1971, p. 91). Ou, então, sobre o papel da técnica na revolução de nossas formas de viver desde fins do século XVIII: “Karl Marx foi o primeiro a reconhecê-lo em grande escala” (JASPERS, 1965, p. 134). <br /><b>[17]</b> De acordo com Lukács, referindo-se às filosofias burguesas do período imperialista: nelas, “não são construções utópicas que faltam, visando à transformação da cultura, mesmo pelos meios revolucionários, (...) mas a intangibilidade da base social e econômica do capitalismo é sempre respeitada” (LUKÁCS, 1979a, p. 39). No caso de Jaspers, até mesmo as exigências democrático-burguesas, no que elas têm de mais progressista, são praticamente inaceitáveis. Por exemplo, tratando da igualdade, ele afirma: “a noção de igualdade, na medida em que se afasta da sua possibilidade original, concebida metafisicamente, e propende para o simples existir de fato, torna-se inautêntica, sendo, por isso, quase sempre, tacitamente recusada” (JASPERS, 1968, p. 302). Para quem, <i>especificamente</i>, ela “torna-se inautêntica” e quem a recusa Jaspers não diz, como se o reconhecimento da inautenticidade e a recusa fossem efetuados pelo próprio “homem”, e não pelos homens de uma ou mais classes sociais historicamente determinadas. <br /><b>[18]</b> Lukács tem razão ao afirmar que, devido ao “total repúdio do valor de um conhecimento filosófico objetivo (...), Jaspers vai mais além do que todos seus predecessores pelo caminho de um relativismo radical da filosofia da vida” (LUKÁCS, 1959, p. 421). <br /><b>[19]</b> “Não há lugar para o definitivo conhecimento da essência do estado, nem mesmo como o de um monstro sob forma de estrutura legal. É, antes, a imensa, inextrincável teia da atividade e da vontade humanas nas suas situações concretas inseridas no seu processo.<br /><b>[20]</b> Em diversos momentos, Jaspers insiste em afirmar a existência de mistérios para o homem. Entenda-se: não se trata de mistérios que, pelo nosso nível de desenvolvimento cognitivo e material, ainda não conseguimos desvendar, mas que, de qualquer modo, são abertos ao desvendamento racional. Ao contrário, em suas reflexões, os mistérios são entendidos como elementos da história e do Ser que, em razão de sua natureza, são insondáveis à cognição humana. Um exemplo: “a palavra transforma-se e, no entanto, é o misterioso elemento com que o ser humano autêntico tateia no tempo” (JASPERS, 1968, p. 304). Outro: “o primeiro estágio da história foi de liberdade apolítica, viva (...). Como se teria originado essa liberdade ainda inconsciente de si mesma é mistério incompreensível” (JASPERS, 1971, p. 70). E mais um: “porque se tem produzido a nova ciência [isto é, a ciência moderna] é uma coisa que, por acaso, pode-se iluminar sob diversos pontos de vista, mas que, em última instância, não pode ser explicado. Como tudo o que é espiritualmente criado, pertence ao mistério da história” (JASPERS, 1965, p. 122). <br /><b>[21] </b>De acordo com Lukács, o irracionalismo “converte o problema mesmo em solução, proclamando a suposta impossibilidade de princípio de resolver o problema como uma forma superior de compreender o mundo em solução”, esse é o seu “traço característico decisivo” (LUKÁCS, 1959, p. 83). Uma clara inversão irracionalista do problema em solução pode ser encontrada, em Arendt (1972; 2008), na negação da causalidade na história. <br /><b>[22]</b> De acordo com a esclarecedora explicação de Hersch, “quando ele [Jaspers] fala de limite, não se trata nunca de um limite provisório, suscetível de ser transposto. O termo possui para ele um valor definitivo: todo o limite merecedor de tal nome é essencial para a condição humana, pois determina a estrutura; é, por definição, intransponível. Em compensação, todo limite implica a ideia daquilo de que separa, do que fica mais além (...).Um obstáculo humanamente definitivo, implicando aquilo que impede de alcançar, oposto a uma subjetividade que o desejaria transpor, tal é o limite em Jaspers. Limite é o lugar de um <i>malogro</i>. Fracassa aí a existência. Mas, no fracasso, ela distingue o que está mais além do limite: a transcendência” (1982, p. 22).<br /><b>[23] </b>Em certos casos, inclusive, sua referência à guerra e sua capacidade de despertar as mais elevadas virtudes humanas é explícita. Diz ele: “ao indivíduo abandonado ao seu próprio vazio resta, por ora, como puro primeiro passo, um compromisso real com o outro, numa base de fidelidade. As comoventes notícias acerca de como, no fim da guerra, em frentes de combate movendo-se em retirada, soldados alemães resistiram dispersos, tendo-se por indivíduos numa atitude de autoafirmação e de autossacrifício, conseguindo o que nenhuma ordem de comando adregara conseguir, a saber, a desesperada tentativa de subtrair à completa destruição a sua terra natal mesmo nos últimos momentos, e de apagar na memória dos alemães a consciência de uma inexpugnabilidade, manifestam uma realidade, noutras circunstâncias, a bem dizer, inatingível como símbolo das virtudes do presente, símbolo de um ser humano que, perante o nada, na sua queda vertical, não podendo realizar o seu mundo como tal, se aposta a concretizar as exigências do futuro” (JASPERS, 1968, pp. 306-7). <br /><b>[24] </b>“Temos que afirmar a angústia. Ela é uma base para a esperança.” (JASPERS, 1965, p. 198) <br /><b>[25]</b> Para ele, “enquanto não experimentou a sensação de ver-se soterrado e não optou por ‘passar além’, em direção à transcendência, o homem não é verdadeiramente ele próprio” (JASPERS, 1971, p. 53). É esclarecedor notar que, com essa exaltação, Jaspers comporta- se de modo muito distinto daqueles pensadores do período da ascensão burguesa, que, sem jamais exaltá-las, apenas as compreendem como situações integrantes do curso da existência, como demonstra a seguinte afirmação de Spinoza: “o homem livre pensa muito mais em qualquer outra coisa do que na morte; sua sabedoria é meditação não sobre a morte, mas sobre a vida.” (SPINOZA apud LUKÁCS, 1979a, p. 87) Ou seja, ao contrário de Jaspers, não era o pessimismo – e nem o cândido otimismo –, mas o otimismo crítico que permeava as ideias dos filósofos do período da ascensão burguesa e, também, daqueles que, há quase dois séculos, vêm ao encontro dos impulsos objetivos das forças revolucionárias do trabalho. <br /><b>[26]</b> Em suas próprias palavras, “o sentido da atividade filosófica é, hoje em dia, o de assegurar, por meios próprios, uma fé independente” (JASPERS, 1968, p. 219). <br /><b>[27] </b>“O abrangente, que aflora na manifestação da dicotomia, não é nem sujeito, nem objeto. À sua captação denominamos conhecimento fundamental, distinguindo-o do conhecimento da natureza e do conhecimento da história.” (JASPERS, 1971, p. 45) <br />[28] Para o marxismo, como se sabe, essa reprodução conceitual jamais implica conhecimento absoluto do concreto. <br /><b>[29] </b>Tanto que, em sua análise da produção artística, o desprezo jasperiano pela elaboração conceitual explicita-se numa frase exemplar acerca do romance: “procurar alcançar a realidade à maneira realista é devorar em si próprio o arrojo de tentá-lo”. Em contraposição, “a arte no passado, <i>plástica</i>, <i>musical</i> ou <i>poética</i>, assumia o homem na sua totalidade, de modo que, por ela, se atualizava ele na sua transcendência” (JASPERS, 1968, pp. 201; 200). Ou seja, as artes aparentemente “mais intuitivas”, não-racionais, permitiriam um acesso ao divino que o romance, à sua maneira realista, não proporciona. Encontra-se aqui, então, um claro paralelo com o valor atribuído por Heidegger à poesia. <br /><b>[30]</b> Por seu turno, “a <i>indecisão</i> torna-se forma de apaziguamento, fomentado pelo interesse geral das estruturas da existência”. Na condição de ser indeciso, o homem é inautêntico. E mesmo que decida, “a decisão só é absoluta ao nível do destino pessoal e parece sempre relativa quanto ao destino do gigantesco mecanismo do mundo atual” (JASPERS, 1968, p. 269). Ocorre, porém, que “o homem não pode desistir de si próprio. Como potência de liberdade ele é, ou a autêntica conversão dela, ou a sua <i>inversão </i>em que nunca encontrará a paz”, pois “o instinto vital reclama, embora no nada, permanecer si-próprio” (JASPERS, 1968, pp. 257-9). Por conseguinte, vê-se como um irracional “instinto vital” e uma “decisão”– isto é, um “elemento subjetivo” – constituem o fundamento da <i>autenticidade </i>do indivíduo num mundo que, carcomido pela técnica e pelas massas, é profundamente <i>inautêntico</i>. <br /><b>[31] </b>Para Jaspers, “a independência absoluta é impossível. No pensamento, dependemos da intuição, que tem que ser-nos dada” (JASPERS, 1991, p. 95). Com clareza, Hersch explica assim esta intuição jasperiana: “a existência situada, aplicando-se a uma ‘leitura’ verdadeira, receberá da escrita cifrada uma instância absoluta, incondicionada. Esta leitura, diz Jaspers, é ‘ação interior’ [‘<i>inneres Handeln</i>’], um processo pelo qual cada um decide o que quer ser e se torna ele mesmo, e que é, ao mesmo tempo, escuta da transcendência” (HERSCH, 1982, p. 28). <br /><b>[32]</b> Nesse sentido, cabe um reconhecimento a Kant que, apesar das antinomias em que se enredou, “à diferença de seus contemporâneos e sucessores reacionários, ele não quer fazer com que a finalidade desemboque aberta e diretamente na teologia” (LUKÁCS, 1970, p. 17).<br /><b>[33]</b> “Não se trata hoje já de uma aristocracia sob a forma do <i>primado de uma minoria</i> na qualidade de<i> privilegiada hereditariamente</i> pelo poder, bens, educação ou realização de um ideal cultural, camada social posta à testa dos homens comuns, tendo-se tida por comunidade dos melhores (...). O problema da nobreza humana é, hoje, o de salvar a ação dos melhores que são em menor número (...). Os melhores do ponto de vista da nobreza do homem (...), os que são eles próprios diferentes, pois, daqueles que, no fundo, sentem apenas o vazio, nada conhecem salvo o que lhes é peculiar e fogem a si próprios (...). Começa nos nossos dias a última campanha contra a nobreza, dirigida não só no campo político ou sociológico, mas nas próprias almas. Querer-se-ia anular certo desenvolvimento (...), o da personalidade. A seriedade do problema (...) conduz à revolta do plebeísmo existencial por parte de cada um de nós contra o ser-si-próprio que a divindade misteriosamente nos exige (...). Esta revolta visa a destruir a nobreza do homem (...) levada a cabo, destroçará a humanidade nas suas próprias bases (JASPERS, 1968, pp. 293-6). <br /><b>[34]</b> Segundo Jaspers, “como ‘existências’, estamos em relação com Deus – a transcendência – mediante a linguagem das coisas, que a transcendência converte em cifras ou símbolos” (JASPERS, 1991, p. 28). Ou ainda, nas palavras esclarecedoras de Hersch: “se autêntica, esta linguagem cifrada não se deixa ‘traduzir’ em ‘linguagem ordinária’: isso equivaleria a separar o símbolo do simbolizado” (1982, p. 28). <br /><b>[35]</b> Em tons heideggerianos, Jaspers, ao tratar das dificuldades enfrentadas pelo indivíduo disperso na vida cotidiana, com seus afazeres e distrações, para dedicar-se à criação espiritual, atesta: “reencontrar-se a partir da dispersão exige força, a bem dizer, sobre- humana (...). Porque a nobreza só existe no voo em que o ser como tal se realiza, não pode, só por si, predicar-se. Não é, pois, uma categoria em que alguém possa inscrever ou não, mas o próprio homem ao nível das suas possibilidades de promoção. Dado que o indivíduo tende a achar satisfação no puro e simples existir, a força impulsiva da promoção só em poucos existe e, assim mesmo, nunca definitiva” (JASPERS, 1968, pp. 197; 302). Tal afirmação vem ao encontro daquilo que Lukács identificou já no velho Schelling: “ao novo irracionalismo se incorpora, assim, um motivo gnosiológico tomado da maioria das concepções religiosas do mundo, sob uma forma burguesa e laica: o conhecimento da divindade se acha reservado aos eleitos por Deus” (LUKÁCS, 1959, p. 120). <br /><b>[36]</b> Para o entendimento desse transtorno, lembremos que, para Jaspers, a Igreja é a fiadora dos valores espirituais e da liberdade. Em seus próprios termos, “a tensão entre liberdade e autoridade é tal que uma não pode subsistir sem a outra; se assim não fosse, de resto, cairia a liberdade no caos, e no despotismo a autoridade. Por isso o ser-si-próprio exige os poderes conservadores contra que se opõe, a fim de se realizar como indivíduo. Exige a tradição que só adquire existência duradoura quanto aos valores espirituais sob a forma de autoridade. Embora a Igreja não radique, no fundo, em valores de liberdade é, contudo, condição de existência da liberdade que a si mesma se produz. Conserva a dimensão espiritual, o sentido da inexorabilidade do real em face do transcendente, a profundidade das exigências impostas ao homem (...). Sem a religião nascida na tradição eclesiástica desaparecerá do mundo o ser-si-próprio e na ausência deste, como adversário e incentivo, uma verdadeira religião” (JASPERS, 1968, pp. 293; 323). <br /><b>[37]</b> Com variações que, para aquilo que estamos tratando, são de pouca relevância, podemos dizer que essa crítica ao progresso constitui uma característica, dentre tantos outros, das filosofias de Heidegger, Jaspers e Arendt. Aliás, para esta, o progresso é um “mito” (ARENDT, 2008, p. 225). Isso ocorre porque, fundados numa visão idealista subjetiva, o critério por meio do qual avaliam progresso ou declínio é sempre arbitrário e relativista. <br /><b>[38] </b>“Só a memória como integração é suscetível de criar a realidade do ser-si-próprio do homem atual.” A salvação do homem exige, portanto, sua “recriação consequente forjada na memória do passado a partir da sua própria origem” (JASPERS, 1968, pp. 186; 305). <br /><b>[39]</b> Em termos muito semelhantes àqueles utilizados por Heidegger para a exaltação do enraizamento do destino individual – mas não na comunidade, no povo, e sim no estado –, Jaspers assevera que “a verdade (...) que, na sua essência, institui a comunidade, é afinal uma fé histórica que nunca poderá ser a de todos. A verdade de um juízo razoável é única para todos, mas a verdade do que seja o próprio homem, e que a sua fé lhe manifesta, separa os homens (...). A unidade do todo só é abrangível como perspectiva unitária relativa a um estado concreto, o espírito como vida ligada ao seu sedimento original, o homem como entidade única e insubstituível”. Daí que “a vontade histórica [do indivíduo] só poderá efetivar-se numa identificação com o seu estado. Ninguém abandona, sem dano, o seu país. No caso de a tal ser forçado, não perde, com efeito, a possibilidade de ser ele próprio, tampouco a sua consciência de destino, mas sim a plenitude de uma participação na totalidade como fundamento seu e seu mundo autêntico” (JASPERS, 1968, pp. 130; 145). <br /><b>[40] </b>“A Antiguidade deu origem, de fato, ao que, no Ocidente, o homem é suscetível de se tornar (...). Todos os grandes movimentos impulsionadores da cultura ocidental tiveram lugar num novo contato ou uma nova ruptura com a Antiguidade. Onde quer que ela seja esquecida, abrem-se as portas à barbárie (...). O nosso fundamento, embora sempre diverso, é a Antiguidade e só em segunda linha, e sem energia formativa, autônoma, o passado do respectivo país. Somos ocidentais no sentido de pertencermos a uma nação que é o que é ou se tornou por um fenômeno de metabolismo original da Antiguidade.” (JASPERS, 1968, p. 179) <br /><b>[41]</b> Lukács afirma que, “em Jaspers, palpita um ódio verdadeiramente zoológico contra as massas, um medo pavoroso ante elas, ante a democracia e o socialismo” (LUKÁCS, 1959, p. 424). <br /><b>[42] </b>Como o maquinismo nivela a todos, “a estrutura política deste aparato de produção torna-se necessariamente uma democracia sob uma ou outra forma” (JASPERS, 1968, p. 53). Mas isso não é propriamente uma virtude histórica, pois, com isso, “o estado se coloca ao serviço da organização das massas, perdendo qualquer relação com o destino autêntico”. Quando isso ocorre, “impõe-se ao homem, como ser-em-si, opor-se, intimamente, ao próprio estado” (JASPERS, 1968, p. 175). <br /><b>[43] </b>Nesse aspecto, assim como o credo na excepcionalidade inglesa e estadunidense, o entusiasmo de Jaspers por essas democracias é amplamente compartilhado por Arendt, que considera seus regimes políticos as únicas democracias modernas bem-sucedidas e, portanto, as mais protegidas contra a ameaça do totalitarismo. “Onde ainda existem e funcionam sociedades e corpos políticos livres, e razoavelmente a salvo de um perigo imediato – e onde funcionam, a não ser nos Estados Unidos e talvez na Grã-Bretanha? –, devem sua existência aos hábitos, costumes e instituições formados num grande passado e cultivados ao longo de uma grande tradição.” (ARENDT, 2008, p. 306) Não deveria, aqui, se perguntar qual a relação disto com o pujante desenvolvimento do capitalismo industrial, o deslocamento das contradições por meio do imperialismo, o relativo isolamento geográfico ante as outras potências, a relativa fragilidade – por conta disto – dos movimentos socialistas, dentre tantos outros fatores? Ocorre que, dado o fundamento idealista de sua filosofia, a resposta para essas excepcionalidades só pode ser encontrada nas esferas da consciência e da política.<br /><b>[44] </b>“São as minorias que escrevem a história (...). Só exclusivas minorias, na consciência de sua nobreza, sob o nome de vanguarda ou progressismo, voluntarismo ou partidarismo, ou sob a forma de primazia de sangue historicamente herdado, são capazes de unir-se, a fim de, por esse meio, assumirem o poder do estado.” (JASPERS, 1968, p. 300) <br /><b>[45] </b>Para Arendt, por exemplo, que identifica comunismo e totalitarismo, a democracia – que em momento algum é qualificada como burguesa – é o grande baluarte político que protege o mundo livre contra o comunismo. E mais, para ela, a grande divisão que havia no mundo durante o período da guerra fria não era entre formações sociais distintas, mas entre totalitarismo e mundo livre. <br /><b>[46] </b>Eis, aqui, um explícito ponto de convergência com as ideias de Heidegger. <br /><b>[47]</b> “À nobreza do ser humano pode chamar-se, outrossim, vida filosófica. O homem enobrece-se ao situar-se na verdade de uma fé.” (JASPERS, 1968, p. 303)</span></span></span></blockquote>
= = =<br />
<b>Referências bibliográficas </b><br />
ADLER, L. <i>Nos passos de Hannah Arendt.</i> São Paulo: Record, 2007.<br />
ARENDT, H. <i>Compreender: </i>formação, exílio e totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras, 2008. <br />
BIEMEL, W.; SANER, H. (Org.). <i>The Heidegger-Jaspers correspondence (1920-1963)</i>. Nova York: Humanity Books, 2003. <br />
COURTINE-DÉNAMY, S. <i>Hannah Arendt. </i>Lisboa: Instituto Piaget, 1999. <br />
DUARTE, A. <i>O pensamento à sombra da ruptura:</i> política e filosofia em Hannah Arendt. São Paulo: Paz e Terra, 2000. <br />
HERSCH, J. <i>Karl Jaspers. </i>Brasília: Editora da UnB, 1982. <br />
HOLZAPFEL, C. La “comunidad de lucha” Jaspers-Heidegger: auge y caída de una amistad. <i>Revista de filosofía</i>, Santiago, Editorial Sudamericana, 2007. <br />
JASPERS, K. <i>Razão e anti-razão em nosso tempo.</i> Rio de Janeiro: MEC, 1958. <br />
______. Origen y meta de la historia. Madri: <i>Revista de Occidente</i>, 1965. <br />
______. <i>A situação espiritual de nosso tempo.</i> São Paulo: Moraes Editores, 1968. <br />
______.<i> Introdução ao pensamento filosófico. </i>São Paulo: Cultrix, 1971. <br />
______. <i>La filosofia. </i>México: Fondo de Cultura Económica, 1991.<br />
LOSURDO, D. <i>La comunidad, la muerte, Occidente: </i>Heidegger y la “ideología de la guerra”. Buenos Aires: Losada, 2003. <br />
LUKÁCS, G. <i>El asalto a la razón: </i>la trayectoria del irracionalismo desde Schelling hasta Hitler. México: Fondo de Cultura Económica, 1959. <br />
______. <i>Introdução a uma estética marxista:</i> sobre a particularidade como categoria da estética. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. <br />
______. <i>Existencialismo ou marxismo? </i>São Paulo: Ciências Humanas, 1979a. <br />
______. <i>A falsa e a verdadeira ontologia de Hegel.</i> São Paulo: Ciências Humanas, 1979b. <br />
SAFRANSKI, R. <i>Heidegger:</i> um mestre da Alemanha. São Paulo: Geração Editorial, 2000. <br />
YOUNG-BRUEHL, E. <i>Hannah Arendt: </i>una biografía. Barcelona: Paidós, 2006. <br />
= = =<br />
<blockquote class="tr_bq">
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>Resumo: </b>Nas primeiras décadas do século XX, sob o influxo da fenomenologia e da revalorização do existencialismo kierkegaardiano, Karl Jaspers produziu uma obra influente em diversos campos do conhecimento: filosofia, psicologia e política. Em sua avaliação desta obra, Lukács a inscreveu na grande vertente filosófica do moderno irracionalismo alemão, que, na teoria e na prática, atingiu seu ponto culminante no regime de Hitler. Neste artigo, objetiva-se analisar a controversa relação de Jaspers com este regime, bem como algumas de suas ideias filosóficas e políticas convergentes com uma das principais fontes ideológicas deste: a <i>Kriegsideologie</i>. Portanto, avalia-se que, mesmo que esta não fosse a intenção de Jaspers, suas ideias contribuíram para o adensamento do ambiente sociocultural propício ao fortalecimento do irracionalismo filosófico e do conservadorismo político, ambos componentes fundamentais do nazismo.</span></span><br />
<br />
<span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>Palavras-chave: </b>Karl Jaspers; filosofia política; irracionalismo; conservadorismo</span></span><br />
<br />
<span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><i>Karl Jaspers: </i></span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><i>philosophical </i></span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><i>irrationalism and political conservatism </i></span></span><br />
<br />
<span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>Abstract:</b> In the first decades of the twentieth century, under the influence of phenomenology and Kierkegaard’s existentialism revaluation, Karl Jaspers produced an influential work in various fields of knowledge: philosophy, psychology and politics. In his assessment of this work, Lukacs entered in the great philosophical slope of modern German irrationalism, which, in theory and in practice, reached its culmination in Hitler's regime. This article aims to analyze the controversial Jaspers relationship with those arrangements as well as some of his philosophical and policies ideas that are convergent with a major ideological sources of this: the <i>Kriegsideologie</i>. Therefore, it is considered that even if this was not the intention of Jaspers, his ideas contributed to the consolidation of the socio-cultural environment conducive to strengthening the philosophical irrationalism and political conservatism, both key components of Nazism.</span></span><br />
<br />
<span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>Keywords:</b> Karl Jaspers; political philosophy; irrationalism; conservatism.</span></span></span></blockquote>
= = =<br />
GASPAR, R. F. S. “Karl Jaspers: irracionalismo filosófico e conservadorismo político”. In: <i><b>Verinotio</b></i>. Ano XI, n. 22, out./2016, pp. 209-234.</div>
<div style="text-align: justify;">
= = =</div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
</div>
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"> </span>Paulo Ayreshttp://www.blogger.com/profile/05722111703766282633noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6017843677382845935.post-90157093404518233922022-09-11T11:40:00.005-07:002022-09-11T11:45:56.029-07:00Adorno: uma abordagem metafísica da coisificação<div class="separator"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgxEqlAHN-IMEpJBiN3vYwql8VYFAXz1XVNI-ZFSub1QkuAeatDhjW_ih_ETMSdpIwJS96R299RXOAeMVy-IrS2G_Ntlhlw4VUzoUR3Ov-9aQShlW3l_IbNBHZfsGKCMlKQC0nGaA-Iib4DpBe9lu9XZF_j-uSUVStkF0Vsg6n7GEglYo970913yw/s1311/Modern%20Irrationalism%20-%20Protomarxism%20(Philosophy)%20-%20Adorno%20-%20Metaphysical%20Ontology%20-%20Reification.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="254" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgxEqlAHN-IMEpJBiN3vYwql8VYFAXz1XVNI-ZFSub1QkuAeatDhjW_ih_ETMSdpIwJS96R299RXOAeMVy-IrS2G_Ntlhlw4VUzoUR3Ov-9aQShlW3l_IbNBHZfsGKCMlKQC0nGaA-Iib4DpBe9lu9XZF_j-uSUVStkF0Vsg6n7GEglYo970913yw/w640-h254/Modern%20Irrationalism%20-%20Protomarxism%20(Philosophy)%20-%20Adorno%20-%20Metaphysical%20Ontology%20-%20Reification.png" width="640" /></a></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><div style="text-align: right;">por <b>István Mészáros</b></div>
<br />
Certa vez o grande democrata revolucionário russo Belinski declarou que todo o movimento ao qual pertencia nascera de <i>O capote </i>[1842], de Gogol. Poder-se-ia descobrir uma conexão similar entre <i>A teoria do romance</i> [1916] e <i>História e consciência de classe </i>[1923], de Lukács, e os primeiros representantes da Escola de Frankfurt. Entretanto, a principal diferença era igualmente notável. Pois, ao contrário dos democratas revolucionários russos, que representaram uma forte tendência radicalizante na história intelectual da Rússia, vinculando-se, através de Tchernichevski, até com Plekhanov e Lenin, a Escola de Frankfurt moveu-se na direção oposta. À medida que o tempo passava, seus membros (com exceção de Walter Benjamin, que morreu prematuramente, e de Herbert Marcuse durante algum tempo, como veremos na próxima seção) cada vez mais se separavam do agente social da emancipação, optando em vez disso pelos termos mais abstratos e genéricos da oposição e da negação, cujo alvo mal podia ser identificado.<br />
<br />
Assim, Lukács pôde observar acertadamente, em seu prefácio de 1962 a <i>A teoria do romance</i>, que a mistura de <span style="background-color: #f4cccc;">“ética de esquerda com epistemologia e ontologia de direita”</span>, característica daquela obra (escrita em 1914-15 e muito idealizada, particularmente por Adorno), conduzia a um beco sem saída intelectual e político, produzindo em seus seguidores alemães um “conformismo disfarçado de não-conformismo”.<b>[1]</b><br />
<br />
<div style="text-align: justify;">
<i>A teoria do romance </i>foi concebida por Lukács “em estado de ânimo de permanente desespero em relação à situação do mundo”,<b>[2]</b> identificando sua perspectiva com a definição de Fichte do presente como “a era da pecaminosidade consumada”.<b>[3]</b> Este estado de ânimo de intenso pessimismo cultural se mostrou influente no Ocidente. Além disso, quando os principais pontos da teoria da<i> </i>“<i>reificação</i>” de Lukács em <i>História e consciência de classe</i> foram a ele acrescentados, podemos ver o surgimento de alguns dos mais importantes <i>leitmotivs</i> da teoria crítica. No entanto, <span style="background-color: #f4cccc;">o problema era que a genuína crítica social da abordagem de Lukács fora diluída até ficar irreconhecível por causa do acréscimo de categorias sem significado, como “mercadoria absoluta”<b>[4]</b> e “reificação absoluta”<b>[5]</b>, que substituíram a crítica socialmente tangível pelo radicalismo verbal vazio.</span></div>
<br />
Assim, grande parte da “teoria crítica” se tornou tão “crítica” quanto era “grande” o “grande compromisso histórico” do eurocomunismo. Lukács caracterizou muito bem essa situação, dizendo:</div><div style="text-align: justify;"><br />
<div style="margin-left: 80px;"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">Uma parte considerável da <i>intelligentsia</i> alemã, inclusive Adorno, fixou residência no </span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">“Grande Hotel do Abismo</span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">”, que descrevi em minha crítica de Schopenhauer como um belo hotel, equipado com todas as comodidades, à beira de um abismo, do nada, do absurdo. E a contemplação diária do abismo entre as excelentes refeições ou os entretenimentos artísticos só pode aumentar o gozo das sutis comodidades oferecidas.<b>[6]</b></span></span></span><br /></div></div><div style="text-align: justify;">
<br />
Naturalmente o compromisso político tinha de ser estritamente banido, até retrospectivamente, do Grande Hotel. Nesse sentido, Walter Benjamin foi censurado por sua suposta <i>naïveté </i>com estas palavras:</div>
<blockquote class="tr_bq">
<blockquote class="tr_bq">
</blockquote></blockquote><div style="margin-left: 80px; text-align: justify;">
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">Em seu íntimo contato com o material que estava à mão, em sua afinidade com ele, seu pensamento, apesar de toda a singularidade e perspicácia, estava sempre acompanhado de um elemento inconsciente característico, de um toque de <i>naïveté</i>. Esta<i> naïveté</i> permitia-lhe simpatizar às vezes com grupos de política de participação, os quais, como ele bem sabia, teriam liquidado sua própria substância, sua experiência intelectual não arregimentada.<b>[7]</b></span></span></span></div><blockquote class="tr_bq"><blockquote class="tr_bq">
</blockquote>
</blockquote>
<div style="text-align: justify;">
O mesmo se podia dizer de Picasso e Sartre,<b>[8]</b> e também de Bertolt Brecht, que segundo Adorno, só se iludia ao pensar que suas intenções políticas poderiam produzir frutos através da literatura:</div>
<blockquote class="tr_bq">
<blockquote class="tr_bq">
</blockquote></blockquote><div style="margin-left: 80px; text-align: justify;">
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">A obra de Brecht, embora voltada para a mudança desde <i>Santa Joana dos Matadouros </i>(1929), talvez fosse <i>politicamente impotente</i>; [...] Seu impacto pode ser caracterizado como uma forma de <i>pregação aos convertidos</i>.<b>[9]</b></span></span></span></div><blockquote class="tr_bq"><blockquote class="tr_bq">
</blockquote>
</blockquote>
<div style="text-align: justify;">
Na verdade, Adorno elevou sua acomodação ao nível de um princípio filosófico-estético da mais alta ordem — o da política misteriosamente “participatória” do <span style="background-color: #f4cccc;">apoliticismo</span> <span class="st">— ao dizer que a arte </span><span class="st">“participa da política, mesmo que seja <i>apolítica</i></span>”<span class="st"><b>[10]</b> e que </span><span class="st">“a ênfase no nexo entre arte e sociedade é válida, <i>desde que evite o partidarismo direto</i>, como aquele que encontramos no que hoje em dia se chama de </span>ʽcompromissoʼ”<span class="st">.<b>[11]</b> As tentativas de escritores e artistas de alcançar mudança social por meio de </span><span class="st">“intervenções políticas</span><span class="st">” significativas eram condenadas por Adorno como </span><span class="st">“dúbias</span><span class="st">” porque, segundo ele, faziam que seus autores se encontrassem </span><span class="st"><span class="st">“</span>regularmente envolvidos em uma <i>falsa consciência social</i>, pois tendem a simplificar excessivamente entregando-se a uma práxis míope para a qual não contribuem com nada além de sua própria cegueira</span><span class="st">”.<b>[12]</b></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span class="st"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="background-color: #f4cccc;"><span class="st">Assim como </span>“<span class="st"><i>ideologia</i></span><span class="st">”, também </span>“<span class="st"><i>coletividade</i></span><span class="st">” se tornou um palavrão na filosofia de Adorno. A própria época foi definida como </span><span class="st">“a época da <i>coletividade repressiva</i></span><span class="st">”, do que parecia resultar, de acordo com as regras da curiosa lógica de Adorno, que </span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“</span></span></span>o poder de resistência às maiorias compactas reside no <i>produtor de arte, solitário e exposto</i></span></span><span class="st"><span style="background-color: #f4cccc;"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span></span></span>.</span><b>[13]</b> A ideia de que a constituição de <i>coletividades não-repressivas</i> pudesse ser a melhor solução simplesmente não fazia parte do horizonte conceitual de Adorno. Mas, para lhe fazer justiça, se a </span><span class="st">“época</span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span></span></span> em si era </span><span class="st"><span class="st">— por definição </span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st">— identificada com a </span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st">“coletividade repressiva</span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st">” como tal, qualquer tentativa de se contrapor a seu poder pela ação de uma </span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st">“coletividade não-repressiva</span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st">” seria condenada ao fracasso desde o início, e não passaria de uma manifestação da </span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st">“falsa consciência social simplificadora</span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st">”.</span></span></span><br />
<br />
<div style="text-align: justify;">
<span class="st"><span class="st"><span class="st">Entretanto, o problema era o fato de </span></span></span>tanta coisa ter de ser estabelecida por <i>definição</i> e constante <i>redefinição</i>, na ausência de um fundamento viável<span class="st"><span class="st"><span class="st"> (dos pseudo-agentes postulados e de suas personificações de entidades abstratas) na própria realidade. Assim, ficamos sabendo que, </span></span></span>“<span class="st"><span class="st"><span class="st"><i>por definição</i>, as obras de arte são socialmente culpadas</span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span>.<b>[14]</b> Esta afirmação era imediatamente seguida por outra que dizia; </span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st">“mas aquelas <i>que têm valor</i> tentam<i> reparar sua culpa</i></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span>; afirmação esta que adquire seu significado, mais uma vez por definição, da primeira definição. Do mesmo modo, declarava-se categoricamente que </span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st">“uma das características básicas da <i>ideologia</i> é que ninguém jamais acredita inteiramente nela, e que ela passa do autodesprezo à autodestruição</span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span>;<b>[15]</b> outra afirmação totalmente arbitrária que não apresenta a mínima prova que confirme as várias características supostas</span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"> — e, para dizer o mínimo, extremamente controvertidas</span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"> —, simplesmente as impondo,<i> por definição</i>, à <i>ideologia</i> (e ao leitor desavisado).</span></span></span></span></span></span></span></div>
<br />
<div style="text-align: justify;">
<span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">Naturalmente, depois que o leitor se acostuma com o modo de Adorno resolver tudo com definições que apenas afirmam a si mesmas, já pode aceitar quase tudo, inclusive as proposições mais desconcertantes, como, por exemplo: </span></span></span></span></span></span></span>“<span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><i>a realidade empírica como tal</i> [...] tornou-se <i>uma ideologia que duplica a si mesma</i></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span>.<b>[16]</b> Dessa maneira, qualquer coisa que Adorno quisesse rejeitar poderia ser posta de lado em grande escala, por definição, sem levar em conta sequer o contexto histórico. Por isso, não nos surpreendemos ao saber que </span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“com efeito, a doutrina [aristotélica] da <i>catarse</i> já inaugurava, em princípio [isto é, pela definição característica de Adorno], a <i>dominação manipuladora da arte</i>, que se consumou com o advento da </span></span></span></span></span></span></span><i>indústria cultural</i><span class="st">”</span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">.<b>[17]</b></span></span></span></span></span></span></span></div>
<span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><br /></span></span></span></span></span></span></span>
<span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">O método adorniano de estabelecer as questões por definição se conjugava à busca constante de paradoxos e frases agudas. Isso se ajustava à substância ideológica e à </span></span></span></span></span></span></span>postura sociopolítica evasiva<span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"> de sua obra. Se era realmente verdade que a <i>época</i> em si estava ligada à </span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“coletividade repressiva</span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span>; que a </span></span></span></span></span></span></span>“<span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><i>realidade empírica como tal</i></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span> se tornara uma </span></span></span></span></span></span></span>“<span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><i>ideologia que se duplica a si mesma</i></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span>; que a </span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“estrutura social se tornara total e <i>completamente amalgamada</i></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span>;<b>[18]</b> que a catarse aristotélica já inaugurara </span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“em princípio</span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span> a sociedade da </span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“reificação total</span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span> e a concomitantemente dominação manipuladora da arte pela </span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“indústria cultural</span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span>; que </span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“no </span></span></span></span></span></span></span><i>mundo administrado</i><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"> a neutralização se tornou <i>universal</i></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span>;<b>[19] </b>que </span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“a totalidade é a sociedade como uma coisa em si, com toda a culpa da <i>reificação</i></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span>;<b>[20]</b> que </span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“a mutilação do homem que é a atual racionalidade particularizada é o estigma da </span></span></span></span></span></span></span>irracionalidade total<span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span>;<b>[21]</b> que </span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“o aparato calculado e distributivo da indústria, a comercialização da cultura, culminam no absurdo. <i>Completamente subjugada, administrada</i>, absolutamente </span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">ʽcultivada</span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">ʼ em certo sentido, ela <i>morre</i></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span>;<b>[22]</b> que </span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“a luta contra a ilusão trabalha a favor do <i>terror puro e simples</i></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span>;<b>[23]</b> que </span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“a vida se transforma na ideologia da reificação</span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span> </span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">—</span></span></span></span></span></span></span> uma </span></span></span></span></span></span></span>“<span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><i>máscara mortuária</i></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span>;<b>[24] </b>etc., nesse caso não se poderia esperar que </span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“o produtor de arte, solitário e exposto</span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span>, fosse capaz de produzir o menor arranhão no poder maciço de todas essas negatividades.</span></span></span></span></span></span></span><br />
<br />
<span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">Em consequência, as dificuldades e contradições identificadas tiveram de ser metamorfoseadas no curso da articulação da teoria de Adorno, para que o poder das definições (e das redefinições adequadas), em conjunto com paradoxos cuidadosamente formulados e trabalhados, pudesse oferecer a promessa de uma </span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“solução</span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span>, embora nenhuma pudesse de fato ser indicada em termos dos desenvolvimentos sócio-históricos reais.</span></span></span></span></span></span></span><br />
<span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><br /></span></span></span></span></span></span></span>
<span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">Adorno presenteava constantemente o leitor com lampejos verbais e uma espécie de </span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“malabarismo conceitual</span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span> que davam a <i>ilusão</i> de uma solução depois de insistir </span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">— em virtude da negação vaga e genérica das várias </span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“totalidades</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span> (irracionalidade, reificação, administração, cálculo, integração totais, etc.) e </span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“absolutos</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span> </span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">— que era <i>impossível </i>encontrar uma solução; e que, na verdade, a própria tentativa de buscá-la seria desesperadamente ideológica: manifestação da </span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“falsa consciência social</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span>, digna apenas de condenação. Assim, o leitor era falsamente tranquilizado com afirmações como: </span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span>“<span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><i>rejeitando </i>a realidade [...] a arte <i>vinga</i> a realidade</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span>;<b>[25]</b> a <i>irracionalidade</i> da arte está se tornando <i>racional</i>, [...] a arte<i> internaliza</i> o princípio repressor, isto é, a </span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span>condição irredimível (<i>Unheil</i>)<span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"> do mundo, em vez de apenas expor <i>inúteis protestos </i>contra ela</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span>;<b>[26]</b> </span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“obras de arte são <i>mercadorias absolutas</i></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span>; [...] Uma mercadoria absoluta <i>liberta-se</i> da <i>ideologia</i> inerente à forma de mercadoria</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span>;<b>[27]</b> a arte </span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“participa da política mesmo quando é <i>apolítica</i></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span>;<b>[28]</b> é este <i>fetichismo</i> </span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">— a cegueira da obra de arte em relação à realidade de que faz parte</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"> — que permite a obra de arte romper o encanto do <span style="background-color: #01ffff;"><i>princípio da realidade</i></span> e se transformar em uma <i>essência espiritual</i></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span>;<b>[29]</b> a arte é <i>semelhança</i>, mesmo em seus picos mais elevados; mas sua semelhança [...] lhe é proporcionada pelo que <i>não é semelhante</i>. [...] A <i>semelhança </i>é uma promessa de <i>não semelhança</i></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span>,<b>[30]</b> etc. etc. Adorno chega a encontrar um modo de resgatar parcialmente a ideologia (embora via de regra ele a rejeite categoricamente) sob a forma de um </span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“dever ser</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span>, dizendo, no contexto que lhe convém, que </span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“a ideologia é uma ilusão socialmente necessária, o que significa que, se ela é necessária, <i>deve ser</i> uma forma de verdade, por mais <i>distorcida </i>que seja</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span>.<b>[31]</b>.</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><br />
<span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><br /></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span>
<span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">Frequentemente tem-se dito que </span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“não há como negar que uma longa viagem pela mata cerrada da prosa de Adorno dá a impressão de se estar passando pelos mesmos lugares com incômoda frequência [...] vemo-nos aparentemente andando em círculos, repassando os contornos de um sistema latente, apesar dos protestos de Adorno em contrário</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span>.<b>[32]</b> Entretanto, a tentativa de justificar esta situação dizendo que a </span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“uniformidade repetitiva que Adorno tanto detestava no mundo moderno não deixou de permear seu próprio pensamento</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st">”</span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><b>[33]</b> é bem pouco convincente. Afinal, muitos outros intelectuais viveram no mesmo mundo sem se tornarem vítimas de sua suposta </span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“uniformidade repetitiva</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span>. Além disso, havia uma boa razão para Adorno proceder desta maneira. Pois o que era de fato característico, e altamente revelador, do método apolítico de Adorno de produzir definições paradoxais, articuladas por variações intermináveis e <i>não cumulativas</i> sobre temas recorrentes, com significado convenientemente <i>mutável</i> </span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">— o que constituía o princípio estruturador fundamental e mais ou menos consciente do seu método</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"> —, era que (em contraposição a Marcuse) a </span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“fatia social</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span></span></span> tinha de ser sistematicamente retirada das questões que ele examinava, mesmo quando suas </span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“negações</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span></span></span> soavam </span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“totais</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span></span></span>, </span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“absolutas</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span> e </span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“categóricas</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">”</span>.</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
= = =</div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Notas:</b></div>
<blockquote class="tr_bq">
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[1]</b> Lukács, <i>The Theory of the Novel</i>, Londres, Merlin Press, 1978, p. 22.</span></span></span></div><span style="font-family: verdana;">
</span><div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[2]</b> Ibid., p. 12.</span></span></span></div><span style="font-family: verdana;">
</span><div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[3] </b>Ibid., p. 18.</span></span></span></div><span style="font-family: verdana;">
</span><div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[4]</b> Ver, por exemplo, Adorno, <i>Aesthetic Theory</i>, Londres, Routledge & Kegan Paul, 1984, p. 336.</span></span></span></div><span style="font-family: verdana;">
</span><div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[5]</b> Cf. Adorno, <i>Prisms</i>, p. 34.</span></span></span></div><span style="font-family: verdana;">
</span><div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[6]</b> Lukács, <i>The Theory of the Novel</i>, p. 22.</span></span></span></div><span style="font-family: verdana;">
</span><div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[7]</b> Adorno, <i>Prisms</i> (ensaio </span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span>A Portrait of Walter Benjamin</span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">”, p. 227-42), p. 237. E Adorno acrescentou em outro contexto:</span></span><br /></span>
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st"><span class="st">“</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span>No que diz respeito ao próprio Benjamin, sua recusa em levar a sério a vanguarda estética, a menos que esta estivesse de acordo com o programa do Partido Comunista, talvez tenha sido influenciada pela <i>hostilidade de Brecht aos intelectuais Tui</i>.<i> A segregação elitista da vanguarda não é culpa da arte, mas da sociedade.</i> Os padrões estéticos inconscientes das <i>massas</i> são precisamente aqueles de que a <i>sociedade necessita </i>para se perpetuar e perpetuar seu domínio sobre as massas" (<i>Aesthetic Theory</i>, p. 360).</span></span></span></div><span style="font-family: verdana;">
</span><div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[8] </b>Ibid., p. 362. </span></span></span></div><span style="font-family: verdana;">
</span><div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[9]</b> Ibid., p. 344.</span></span></span></div><span style="font-family: verdana;">
</span><div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[10]</b> Ibid., p. 362.</span></span></span></div><span style="font-family: verdana;">
</span><div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[11] </b>Ibid., p. 440. </span></span></span></div><span style="font-family: verdana;">
</span><div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[12]</b> Ibid., p. 324. </span></span></span></div><span style="font-family: verdana;">
</span><div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[13] </b>Ibid., p. 328. </span></span></span></div><span style="font-family: verdana;">
</span><div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[14]</b> Ibid., p. 333. </span></span></span></div><span style="font-family: verdana;">
</span><div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[15]</b> Ibid., p. 334. </span></span></span></div><span style="font-family: verdana;">
</span><div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[16]</b> Ibid., p. 362. </span></span></span></div><span style="font-family: verdana;">
</span><div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[17]</b> Ibid., p. 339. </span></span></span></div><span style="font-family: verdana;">
</span><div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[18]</b> Ibid., p. 362. </span></span></span></div><span style="font-family: verdana;">
</span><div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[19]</b> Ibid., p. 325. </span></span></span></div><span style="font-family: verdana;">
</span><div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[20]</b> Adorno, Introdução a <i>The Positivist Dispute in German Sociology</i>, Londres, Heinemann, 1976, p. 12.</span></span><br /></span>
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[21]</b> Adorno, <i>Prisms</i> (ensaio "Cultural Criticism and Society", p. 17-34), p. 24.</span></span><br /></span>
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[22]</b> Ibid., p. 25.</span></span><br /></span>
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[23]</b> Ibid., p. 26.</span></span><br /></span>
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[24]</b> Ibid., p. 30. </span></span><br /></span>
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[25]</b> Ibid., p. 34. </span></span><br /></span>
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[26]</b> Adorno, <i>Aesthetic Theory</i>, p. 2.</span></span><br /></span>
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[27]</b> Ibid., p. 27. </span></span><br /></span>
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[28] </b>Ibid., p. 336.<b> </b></span></span><br /></span>
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[29]</b> Ibid., p. 362. </span></span><br /></span>
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[30]</b> Ibid., p. 468. </span></span><br /></span>
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[31]</b> Adorno, <i>Negative Dialectics</i>, Nova York, The Seabury Press, 1973, p. 404-5.</span></span><br /></span>
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[32]</b> Adorno, <i>Aesthetic Theory</i>, p. 331.</span></span><br /></span>
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[33] </b>Martin Jay, <i>Adorno</i>, Londres, Fontana Paperbacks, 1984, p. 162. </span></span></span></div>
</blockquote>
<div style="text-align: justify;">
= = =</div>
<div style="text-align: justify;">
MÉSZÁROS, I. <i><b>O poder da ideologia</b></i>. Trad. Magda Lopes e Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 156-160.</div>
<div style="text-align: justify;">
= = =</div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
Paulo Ayreshttp://www.blogger.com/profile/05722111703766282633noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6017843677382845935.post-60283828541839873292022-09-09T17:22:00.007-07:002022-09-12T17:27:31.844-07:00Ecofascismo: movimento que prega xenofobia e limpeza étnica<div style="text-align: center;"><iframe allow="accelerometer; autoplay; clipboard-write; encrypted-media; gyroscope; picture-in-picture" allowfullscreen="" frameborder="0" height="315" src="https://www.youtube.com/embed/5g7-38Eb3ok" title="YouTube video player" width="560"></iframe>
<br /></div><div><br /></div><div style="text-align: right;">por <b>Ian Neves</b><br /><i>História Pública</i><br />= = =</div>Paulo Ayreshttp://www.blogger.com/profile/05722111703766282633noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6017843677382845935.post-48705576109319028232022-08-06T13:10:00.007-07:002022-11-17T17:27:26.846-08:00O elitismo romântico de Adorno contra o jazz<div class="separator"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi4niLoRPvru3HoFo5ocnJA8pC-JsVh59ASi-PaTR7jnr8c_NrXs9uZPbBSRH6FKgE_uJXytM6fmpcBykgg1A4JYjLyBeiS-cYSTvxcc8KKC6agHOAXK0VP6wF-Eybvw1NHn0gxcgbDna8hj1axI7Tx7xCZNl5PZRjLvSD8RuF-Jp2OsQ75b3uGGw/s822/Modern%20Irrationalism%20-%20Protomarxism%20(Philosophy)%20-%20Adorno%20-%20Pansexualism%20-%20Jazz.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="254" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi4niLoRPvru3HoFo5ocnJA8pC-JsVh59ASi-PaTR7jnr8c_NrXs9uZPbBSRH6FKgE_uJXytM6fmpcBykgg1A4JYjLyBeiS-cYSTvxcc8KKC6agHOAXK0VP6wF-Eybvw1NHn0gxcgbDna8hj1axI7Tx7xCZNl5PZRjLvSD8RuF-Jp2OsQ75b3uGGw/w640-h254/Modern%20Irrationalism%20-%20Protomarxism%20(Philosophy)%20-%20Adorno%20-%20Pansexualism%20-%20Jazz.png" width="640" /></a></div><br />
<div style="text-align: right;">
por <b>István Mészáros</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br />
Analisado superficialmente, o alinhamento da “teoria crítica” com a perspectiva weberiana foi muito mais surpreendente. No entanto, havia importantes pontos de contato entre essa perspectiva e o pensamento geral da Escola de Frankfurt, apesar das diferenças entre seus membros individuais.<br />
<br />
<div style="text-align: justify;">
É fato que esta escola corresponde a um conjunto muito heterogêneo de pensadores. Sua diversidade incluía desde as esperanças de Walter Benjamin de participação direta na práxis política de esquerda<b>[1]</b> até o ativismo político “voltado para os excluídos” de Marcuse; desde o não-envolvimento sociopolítico de Adorno até o extraordinário ecletismo teórico<b>[2] </b>e, apesar de seus protestos verbais, o oportunismo político tecnocrático de Jürgen Habermas. Há uma certa ironia na elevação desses intelectuais ao<i> status</i> de uma instituição cultural venerável, porque a constituição de uma “escola” sobre a grande diversidade de indivíduos que foram finalmente classificados sob o rótulo de “teoria crítica” tinha tanto a ver com as necessidades da “indústria cultural” e da “comunicação de massas manipuladora" — dois dos alvos mais frequentes das denúncias mordazes de Adorno — quanto com a coerência intelectual de suas ideias.</div>
<br />
Entretanto, para além das diferenças significativas, a origem weberiana da crítica da “burocracia” e da “razão instrumental” — compartilhada por praticamente todos os membros da Escola de Frankfurt — é bastante óbvia. E, mais importante ainda, encontramos uma forte tendência <i>elitista</i> nos escritos teóricos de todos os “teóricos críticos”, qualquer que seja o ponto particular do espectro político em que estejam situados.</div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
<br />
Em relação a Adorno, isto foi enfatizado em muitas ocasiões. Citando uma análise favorável:</div>
<blockquote class="tr_bq">
<blockquote class="tr_bq">
</blockquote></blockquote><div style="margin-left: 80px; text-align: justify;">
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">O discurso de Adorno sobre a mediação entre a práxis intelectual e a práxis política permaneceu abstrato e vago, sem explicação do agente social que poderia servir como condutor desta mediação, uma vez que o papel do partido foi rejeitado. O agente da </span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">“mediação</span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">” de Adorno permaneceu tão misterioso quanto o mediador entre os espíritos e a matéria do mundo, e a crítica de Hanns Eisler possui um inegável ponto de validade: </span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">“Esta crença metafísica e cega no 'desenvolvimento da música'. Se Adorno compreendesse pelo menos uma vez que a música é feita por pessoas e para pessoas — e se ela também se desenvolve, este desenvolvimento não é abstrato, mas de alguma forma pode ser ligado aos relacionamentos sociais! —, ele não diria este absurdo abstrato</span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">”.<b>[3]</b> Havia realmente algo de metafísico na ênfase que Adorno confere à verdade, e também em sua visão da elite intelectual como formuladora daquela verdade.<b>[4]</b></span></span></span></div><blockquote class="tr_bq"><blockquote class="tr_bq">
</blockquote>
</blockquote>
<div style="text-align: justify;">
O problema era, na verdade, até mais complicado do que está indicado nesta passagem, uma vez que não faltava apenas o “agente ou veículo social” da “mediação” programática de Adorno, mas também seu <i>terminus ad quem </i>emancipatoriamente efetivo. Isso trazia a necessidade de uma auto-orientação e de um retraimente intelectual, articulando-se na perspectiva pessimista de uma “<i>dialética negativa</i>” deliberadamente oposta à adoção de um ponto de vista social, sem deixar de buscar uma solução misteriosa dos problemas identificados, como resultado da ação a partir do campo problemático desta autocontenção desesperada.</div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
<br />
Talvez por causa do forte sentimento de desesperança prática decorrente desta <i>negação sem afirmação</i>, nascida de uma autocontenção intelectual imposta a Adorno pela lógica interior do “<i>veículo</i>” e do <i>terminus ad quem</i> ausentes, ele assumiu algumas posturas que pareciam estranhas até em seus próprios termos de referência. Assim, embora postulasse o papel de “mediação” abstrata de sua elite, Adorno também idealizava o ato de ficar imerso, em total silêncio, na leitura da partitura musical — obviamente limitada a poucos escolhidos — como a única maneira realmente adequada, “imediata” e “não-adulterada”, de usufruir a música.<b>[5]</b> Lamentavelmente, comparada a tal concepção da comunicação musical, a aristocrática afirmação de seu ídolo, Schönberg — segundo o qual o público só é necessário para melhorar a acústica da sala de concertos —, poderia soar como a manifestação do humanismo democrático orientado para as massas.<br />
</div>
<div style="text-align: justify;">
Também os ataques românticos de Adorno contra o<i> jazz</i> traíam seu extremo elitismo. Ele via e abominava no <i>jazz</i> “a atitude perene da cultura de massa”<b>[6]</b>, ridicularizando seus “apaixonados devotos” por “mal serem capazes de descrever, em <i>conceitos musicais precisos, técnicos, o que é que tanto os comove</i>”.<b>[7]</b> Ao mesmo tempo que condenava a incapacidade de tais “primitivos” para articular as ideias sobre seu objeto de admiração, Adorno dava sua opinião sobre o que estava realmente envolvido na execução e na experiência do <i>jazz</i>, opinião que parecia terrivelmente profunda: “O objetivo do <i>jazz </i>é a <i>reprodução mecânica de um momento regressivo, um simbolismo da castração</i>”.<b>[8]</b> E isso não era tudo. Ele acrescentava outra visão profunda, relacionada ao “sujeito” do jazz, definido por ele nos seguintes termos:</div><div style="text-align: justify;"> </div>
<div style="text-align: justify;">
<div style="margin-left: 80px;"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">O sujeito que se expressa, expressa precisamente isto: não sou nada, sou sujo, e mereço qualquer coisa que façam comigo. Potencialmente, este sujeito já se tornou um daqueles russos acusados de um crime e que, embora, inocente, desde o início colabora com seu perseguidor e é incapaz de encontrar um castigo severo o bastante.<b>[9]</b></span></span></span><br /></div></div><div style="text-align: justify;">
<br />
Como é tão frequente nos escritos de Adorno, suas afirmações arbitrárias só eram “substanciadas” por analogias igualmente arbitrárias. Evidentemente, os sujeitos privilegiados capazes de relatar suas experiências musicais (não corrompidas pela “indústria cultural”) em “conceitos musicais precisos, técnicos”, e que já estivessem perfeitamente sintonizados no comprimento da onda da “teoria crítica” e da negação universal abstrata (mas concretamente bem acomodados), não teriam dificuldade em aceitar as duas afirmações — sobre o “sujeito sujo do <i>jazz</i>” e sobre “aqueles russos” — sem questionamento, juntamente com sua esclarecedora contribuição à compreensão da natureza do <i>jazz</i>, que teria escapado aos simples mortais. Este procedimento é muito semelhante ao que se usa quando dois nomes são ligados com um “e” nos títulos de livros para estabelecer um elo “orgânico” entre dois campos que de outro modo nada teriam em comum. Mas, por mais problemático que seja tal procedimento, aqueles que compartilham do ponto de vista de Adorno não teriam qualquer objeção a fazer. Sem dúvida, teriam afirmado imediatamente que uma das acusações mais óbvias que se poderia levantar contra o <i>jazz</i> “primitivamente improvisado” e “monotonamente sincopado” era a de fazer muito pouco uso, se é que fazia algum, das <i>partituras musicais</i>.<br />
<br />
Tudo isso, no entanto, não altera o fato de que, em todo o ataque ressentido e arrogante de Adorno ao <i>jazz</i>, não se encontra <i>uma única linha</i> de análise musical; nem em “conceitos musicais precisos, técnicos”, nem sob qualquer forma. Em vez disso, o verdadeiro significado do <i>jazz</i> era descrito por Adorno da seguinte forma:</div><div style="text-align: justify;"> </div>
<div style="text-align: justify;">
<div style="margin-left: 80px;"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">“Desista da sua masculinidade, deixe-se castrar</span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">”, é o que proclama o som assexuado da banda de <i>jazz</i>, </span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">“e se você será recompensado, aceito em uma fraternidade que partilha com você o mistério da impotência, mistério revelado no momento do rito de iniciação</span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">”. Se esta interpretação do <i>jazz</i> </span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">— cujas implicações sexuais são mais bem compreendidas por seus oponentes chocados do que por seus apologistas </span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">—</span></span></span> parece arbitrária e rebuscada, permanece o fato de que ela pode ser constatada em incontáveis detalhes tanto da música como das letras.<b>[10]</b></span></span></span><br /></div></div><div style="text-align: justify;">
<br />
Apesar da promessa de constatar em “incontáveis detalhes” aquilo que ele mesmo reconhecia estar sujeito à acusação de arbitrariedade e rebuscamento, nem uma obra de <i>jazz</i> foi sequer mencionada, e muito menos adequadamente analisada, nesse ensaio tão parcial. Nem mesmo os nomes de alguns músicos de <i>jazz</i> foram apresentados como exemplos ilustrativos, exceto dois — Mike Riley e Louis Armstrong. Mas mesmo estes foram tomados de segunda mão de duas obras críticas norte-americanas citadas por Adorno.<br />
<br />
A referência de segunda mão a Louis Armstrong o comparava aos “grandes <i>castrati </i>do século XVIII”,<b>[11]</b> sem querer mencionar a contradição óbvia entre as afirmações genéricas da própria teoria de Adorno sobre a natureza do <i>jazz</i>, em uma “sociedade de massa totalmente integrada e reificada”, e o século XVIII; este último, nem um pouco perturbado pela “produção planejada”, a “cultura de massas”, a “reificação total” e a ubíqua “indústria cultural”, mas possuindo seus “grandes <i>castrati</i>” — que o eram não apenas simbolicamente — que, não obstante, são tomados como exemplos que esclarecem a desconcertante realidade do <i>jazz</i> e o suposto complexo de castração de todos aqueles que dele participam. Na estrutura aforística de declarações e declamações de Adorno, é suficiente apenas afirmar os preconceitos ideológicos do autor e suas negações genéricas da “sociedade em si”, sem qualquer esforço real para demonstrá-los, enquanto ao mesmo tempo desfia acusações igualmente genéricas contra a ideologia.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br />
= = =</div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>Notas:</b></span></span></div>
<blockquote class="tr_bq">
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[1] </b>Benjamin era muito amigo de Bertolt Brecht e Karl Korsch.<br /><b>[2]</b> </span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">“</span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><i>Alles was gut und teuer</i></span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">” (</span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">“tudo o que há de bom e valioso</span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">”, isto é, muito elogiado), como dizem em alemão, Ver uma excelente resenha crítica de <i>Legitimation crisis</i>, de Habermas, de autoria de James Miller, <i>Telos</i>, n. 25, outono de 1975, p. 210-20. O mesmo número da <i>Telos</i> contém um debate muito interessante entre Wolfgang Müller, Christel Neusüss, Jürgen Habermas e Claus Offe que é importante para se compreender a posição política de Habermas. Os artigos em questão são: W. Müller e C. Neusüss, </span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><span style="font-family: verdana;"></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">“</span></span></span>The illusion of state socialism and the contradiction between wage labour and capital</span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">”, p. 13-91; J. Habermas, </span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><span style="font-family: verdana;"></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">“</span></span></span>A reply to Mülller and Neusüss</span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">”</span></span></span>, p. 91-8; Claus Offe, </span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">“</span></span></span></span></span></span>Further comments on Müller and Neusüss</span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">”</span></span></span>, p. 99-111.<br /><b>[3]</b> Hans Bunge, <i>Fragen sie mehr über Brecht: Hanns Eisler in Gerspräch</i>, Munique, Rogner and Bernhand, 1970, p. 30.<br /><b>[4]</b> Susan Buck-Morss,<i> The origin of negative dialetics: Theodor W. Adorno, Walter Benjamin and the Frankfurt Institute</i>, Hassocks, Haverster Press, 1977, p. 42. Uma análise séria de Adorno e Marcuse é a de Joseph McCarney, </span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">“</span></span></span></span></span></span>What makes critical theory 'critical'?</span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">”</span></span></span></span></span></span>, <i>Radical Philosophy</i>, n. 42, inverno/primavera de 1986.<br /><b>[5] </b>Ele tentou persuadir Arnold Hauser — que era muito menos competente do que Adorno na leitura de partituras musicais, e por isso permaneceu completamente cético — da correção deste julgamento. <br /><b>[6]</b> Theodor W. Adorno, <i>Prisms</i>, Londres, Nevile Spearman, 1967 (ensaio </span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">“</span></span></span></span></span></span></span></span></span>Perennial fashion — jazz</span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">”</span></span></span></span></span></span>, p. 119-32).<br /><b>[7]</b> Ibid., p. 127.<br /><b>[8]</b> Ibid., p. 129.<br /><b>[9]</b> Ibid., p. 132.<br /><b>[10] </b>Ibid., p. 129-30.<br /><b>[11]</b> Ibid., p. 130.</span></span></span></div>
</blockquote>
<div style="text-align: justify;">
= = =<br />
MÉSZÁROS, I. <i><b>O poder da ideologia</b></i>. Trad. Magda Lopes e Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 154-156.</div>
<div style="text-align: justify;">
= = =</div>
Paulo Ayreshttp://www.blogger.com/profile/05722111703766282633noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6017843677382845935.post-13727226563905228492022-08-04T16:20:00.002-07:002022-10-06T16:20:51.963-07:00A destruição da razão (1954)<div style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjfedjqXJjPP3CvmL-b00lvXGJoUiWKtLaQaKn1ZP1-xS6V-DpHzR127rdiM0qAJfxH9M2eNimKUJI5NcVGqxAxC5twgGGk7A9MmhaiNLzp5x4lstsByTKT0oYQ4K_39qTGkHrlFUVD/s756/IL-+A+destrui%25C3%25A7%25C3%25A3o+da+raz%25C3%25A3o+-+PDF.png"><img border="0" height="486" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjfedjqXJjPP3CvmL-b00lvXGJoUiWKtLaQaKn1ZP1-xS6V-DpHzR127rdiM0qAJfxH9M2eNimKUJI5NcVGqxAxC5twgGGk7A9MmhaiNLzp5x4lstsByTKT0oYQ4K_39qTGkHrlFUVD/w486-h486/IL-+A+destrui%25C3%25A7%25C3%25A3o+da+raz%25C3%25A3o+-+PDF.png" width="486" /></a><br /></div><div style="text-align: justify;"></div><div style="text-align: justify;"></div><div style="text-align: justify;"></div><div style="text-align: justify;"> </div><div style="text-align: justify;"><b>Observação:</b> um elemento negativo desta edição — assim como os <i>Prolegômenos</i> da Boitempo — é a “Apresentação” dos chasinianos (Ester Vaisman e Ronaldo Fortes) fazendo propaganda do seu livro-guia antidialético.<br /></div><div style="text-align: justify;"> </div><div style="text-align: justify;">= = =<br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="https://46e7eb6b-866a-4277-a8cb-e20bf85ff46b.usrfiles.com/ugd/46e7eb_38a0c6edfea14005b5716095b30cdc64.pdf" rel="nofollow" target="_blank"><b>livro em PDF</b></a><br />= = =</div>Paulo Ayreshttp://www.blogger.com/profile/05722111703766282633noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6017843677382845935.post-44811770902763973092022-07-24T09:00:00.003-07:002022-07-24T14:25:47.343-07:00A rebeldia romântica e a atitude mental da adolescência
<div style="text-align: justify;">
</div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjVz3kXnN1B9IPNY9eFAQJBQx7kv201WJvmE2oYF8FeP41bf95CUmHL7vyEcY8JpBJ_2o9jwaWDyglDzsat-_smRwO-tNIGrhrIpUepm4L2gIYz6VgBSQvIlhBzmgJYZjvk6m9vqTCmOD5Oc79819uOTmgC3y9VZt1sMJn-Cy0SzN-hStmRNXSspw/s1000/Modern%20Irrationalism%20-%20Libertarian%20Socialism%20-%20Trotskyism%20-%20Teen%20Spirit.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="254" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjVz3kXnN1B9IPNY9eFAQJBQx7kv201WJvmE2oYF8FeP41bf95CUmHL7vyEcY8JpBJ_2o9jwaWDyglDzsat-_smRwO-tNIGrhrIpUepm4L2gIYz6VgBSQvIlhBzmgJYZjvk6m9vqTCmOD5Oc79819uOTmgC3y9VZt1sMJn-Cy0SzN-hStmRNXSspw/w640-h254/Modern%20Irrationalism%20-%20Libertarian%20Socialism%20-%20Trotskyism%20-%20Teen%20Spirit.png" width="640" /></a></div><div style="text-align: justify;"><br /><div style="text-align: right;">
por <b>György Lukács</b><br /></div>
<br />
<div style="text-align: justify;">
Eis-nos enfim em presença de uma tomada de posição nítida. Após tudo o que foi dito sobre o escândalo da violência, essa tomada de posição deveria logicamente levar ao tolstoísmo, ou antes à ideologia da não-violência de certos expressionistas alemães. Mas S. de Beauvoir não quer — e isto é honra — tirar todas as consequências que se imporiam. Prefere prender-se num fio de contradições insolúveis do que optar resolutamente por uma renúncia, sublime em aparência e covarde na realidade. Infelizmente, os motivos por meio dos quais tenta justificar suas inconsequências tão honráveis, são perfeitamente ilusórios. Invoca o exemplo da Resistência na França.</div><div style="text-align: justify;"> </div><div style="margin-left: 80px; text-align: justify;"><span style="font-size: small;"><span style="font-family: verdana;">A Resistência — diz ela — não tendia a uma eficácia positiva. Era negação, revolta, martírio; e nesse movimento negativo, a liberdade era positiva e absolutamente confirmada.<b>[1]</b></span></span></div><blockquote class="tr_bq"><blockquote class="tr_bq">
</blockquote>
</blockquote>
É um mito. Fazendo saltar trens, matando agentes da Gestapo, libertando prisioneiros, até organizando batalhas de guerrilheiros, a Resistência realizava atos políticos muito concretos e tendia — é evidente — à maior eficácia possível, tanto na conduta de cada ação, como no seu conjunto, no objetivo de libertar a França. Os traçados respectivos das frentes políticas eram então, sem dúvida, mais simples que após a Libertação, ainda que a simplicidade seja, nesse domínio, igualmente um mito. É humanamente muito compreensível ver alguns — Simone de Beauvoir não é a única — darem as costas aos problemas complexos e prosaicos do presente (sobretudo quando não estão à altura de assimilá-los, filosófica e politicamente) para refugiar-se na simplicidade poética do tempo da Resistência.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br />
Essa nostalgia, dizíamos, é humanamente compreensível. Sua generalização teórica dá entretanto a nascimento de mitos, sem falar desses casos em que se erige em valor absoluto, o que é uma fonte de erros fatais. É entretanto o que acontece com S. de Beauvoir, quando declara que “somente a revolta é pura”<b>[2]</b>. Essa afirmação apenas dissimula — S. de Beauvoir não tarda a confessá-lo — o medo de ver triunfar “a revolta”, o temor de ver esse triunfo chegar a uma “degenerescência” da pureza original dos princípios e do entusiasmo romântico dos inícios. O humanismo revolucionário — prossegue S. de Beauvoir — “criou uma Igreja, onde a salvação é comprada por uma inscrição no partido, como é comprada alhures pelo batismo e pelas indulgências”<b>[3]</b>. Aqui, o existencialismo mostra de novo seu verdadeiro aspecto: o do niilismo anarquista, próprio aos intelectuais que não têm, certamente, senão desprezo pelo capitalismo imperialista dos trustes, mas aos quais a revolução real inflige um terror pânico. Isto não significa necessariamente que sejam covardes: o que temem é ver transformar-se o caráter de isolamento de sua “existência”.<br />
<br />
As considerações de S. de Beauvoir são interessantes na medida em que desvendam um traço muito importante da caracterologia de um certo tipo social que tem medo da maturidade no plano da existência histórico-social. Entretanto a prosa da objetividade deve suceder à poesia da subjetividade juvenil; a prosa da realização na matéria dura, resistente e, apesar de tudo, sempre dócil da realidade, deve tomar o lugar da poesia nebulosa dos estados indefiníveis obscuros. Na sua <i>Tipologia das idades</i>, que leva a marca sentimental da lembrança de Hölderlin, Hegel descreve da maneira seguinte a atitude mental do adolescente:</div><div style="text-align: justify;"><br />
<div style="margin-left: 80px;"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">A <i>adolescência</i> dissolve de tal maneira a ideia realizada no mundo que se atribui a si mesma a definição do substancial que pertence à natureza da ideia </span></span><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">— o verdadeiro e o bom </span></span><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">— enquanto atribui a definição do fortuito e do acidental ao mundo.</span></span></span><br /></div></div><div style="text-align: justify;">
<br />
<span style="background-color: #f4cccc;">A existência da maior parte dos românticos está marcada pelo selo da vontade tragicômica de eternizar essa atitude mental da adolescência. Trata-se, em particular, daqueles que tiveram a ocasião de viver, no decorrer da sua juventude, um período heroico, “mítico” da história. Os românticos recusam-se a envelhecer e morrer — e a política romântica recusa dobrar-se à necessidade que quer que à poesia da subversão ou da clandestinidade heroica suceda a prosa da realização, da execução.</span> No seu escrito que acabamos de citar, Hegel sublinha a repulsa que experimentaram numerosos adolescentes no limiar da maturidade, em se ocupar dos problemas precisos que a realidade tende a lhes impor. Simone de Beauvoir faz-se nitidamente intérprete dessa tendência, porque considera “mais autêntica” a juventude revoltada de Goethe que sua maturidade de “servidor do Estado”. Sem querer discutir com S. de Beauvoir a “autenticidade” do <i>Segundo Fausto</i> ou a da <i>Trilogia das paixões</i>, permitimo-nos notar que é uma abstração muito juvenil querer caracterizar toda a maturidade de Goethe pela definição de “servidor do Estado”. Tão “juvenil” aliás como o paralelo que estabelece entre a evolução de Goethe, de Barrès e de Aragon. Tudo isso é, em suma, profundamente falso, mas psicologicamente compreensível, porque na noite escura do medo juvenil diante de qualquer conformismo, todas as vacas — como dizia Hegel — parecem negras, todas as realizações, individuais ou sociais, parecem degenerescências verdadeiras (Barrès, por exemplo).<br />
<br />
É portanto perfeitamente lógico ver, à guisa de apólogo, este velho adágio que S. de Beauvoir coloca no termo de seu escrito: “Faça o que deve, aconteça o que acontecer!”. Destrói assim o fruto de todas as suas considerações e de todos os seus raciocínios, às vezes cheios de interesse, para restabelecer a moral da intenção abstrata de <i>L’être et le nant</i>, na sua pureza integral, abstrata e perfeitamente estéril. Para chegar a uma tal conclusão, o que procede não era indispensável e guarda apenas um valor de sintoma da crise do existencialismo. caráter incognoscível do futuro, pela relatividade e subjetividade de tudo o que se pode enunciar sobre o futuro.</div><div style="text-align: justify;"></div><div style="text-align: justify;"></div><div style="text-align: justify;"><br />
* * *</div><div style="text-align: justify;"></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Certamente Merleau-Ponty
rejeita resolutamente algumas das asneiras mais grosseiras do
trotskismo, como por exemplo, a afirmação segundo a qual a Segunda
Guerra Mundial formaria a pedra de toque absoluta do marxismo: se não
conduzisse ao socialismo, o marxismo provaria ser uma utopia. Admite
igualmente que a vida política tornara-se impossível<b>[4]</b> para Trotski, mas,
apesar de tudo, seu pensamento sofre, frequentemente, a influência
decisiva do trotskismo. Aliás, a melhor prova disso é que julga útil — a
despeito de sua vasta cultura e de seu instinto crítico robusto —
repetir certas calúnias mil vezes ouvidas sobre a União Soviética,
quando não faltam assalariados do nível de Koestler para desincumbir-se
dessa tarefa. Não temos lugar nem tempo para nos deter neste gênero de
problemas, porque em primeiro lugar propomo-nos esclarecer problemas
teóricos. Citaremos, portanto, apenas uma das objeções de Merleau-Ponty,
a título de exemplo. Forja, com efeito, um argumento da luta staliniana
contra o nivelamento em matéria de salários, para declarar que o
bolchevismo está bastante afastado das teorias clássicas do marxismo e
frisa seu pragmatismo a partir de então. Ora, não é necessário ser um
grande conhecedor dos textos clássicos, para saber que, desde 1875,
Marx caracterizava a diferenciação dos salários como uma tendência
econômica fundamental da primeira fase do socialismo.</div><div style="text-align: justify;"> </div><div style="text-align: justify;">Seria, no entanto, inútil determo-nos em detalhes de segunda ordem. O essencial é a influência profunda que o trotskismo exerce em Merleau-Ponty. A História, desde há muito tempo, fez justiça a todas as afirmações concretas de Trotski e, no entanto, os efeitos de suas teorias fazem-se ainda sentir em certos meios. <span style="background-color: #f4cccc;">O efeito de que falamos manifesta-se antes de tudo pelo desvio de atenção das questões essenciais e concretas do presente, e, ao mesmo tempo, por uma camuflagem do niilismo teórico e prático por meio de uma demagogia revolucionária. A intenção original de Trotski, sem dúvida, não era desviar quem quer fosse dessas questões; apenas forneceu respostas totalmente falsas, construindo arbitrariamente um antagonismo insolúvel entre os interesses camponeses e os interesses operários. Mas esse primeiro erro teve por consequência inevitável a negação da possibilidade de construir o socialismo em um só país e essa negação torna-se, por sua vez, o verdadeiro sinal de união da contrarrevolução. Devia fornecer a plataforma sobre a qual certos intelectuais e elementos operários deveriam agrupar-se contra a URSS.</span> A evolução econômica, política e cultural sublinha a importância do socialismo enquanto única perspectiva do futuro, e a atitude individual em relação à União Soviética torna-se a pedra de toque não somente de todas as questões políticas, mas também dos problemas da ideologia. Com efeito, a questão da perspectiva não deve somente ser colocada politicamente, mas também no plano ideológico. Só uma perspectiva de futuro concreto está em condições de superar teoricamente o niilismo ideológico. Ora, nossa própria evolução não produziu outra perspectiva a não ser o socialismo.<br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Afirmamos que o homem moderno, se não está desprovido da necessidade de honestidade intelectual, deve escolher entre a perspectiva do socialismo e o niilismo filosófico. Esta escolha impõe-se hoje muito mais imperiosamente do que há cento e cinquenta anos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Enquanto a filosofia era apenas um prelúdio teórico à Revolução Francesa, a preparação ideológica, de alguma maneira, do “Império da Razão”, não tinha a necessidade de fazer diretamente apelo à História para evitar o escolho do niilismo. A realidade que fornecia à filosofia suas bases nada mais era do que o combate da sociedade burguesa em gestação contra o feudalismo caduco. Em termos filosóficos, isto se chamava então de combate da razão contra o irracional e o caos. A filosofia do século XVIII podia permitir-se tomar como ponto de partida de suas especulações (epistemológicas, ontológicas, psicológicas, pouco importa) o indivíduo isolado e criar, a seu bel prazer, mito sobre mito em torno do tema de Robinson, sem no entanto, perder seu caráter social, sua historicidade implícita e, portanto, sua perspectiva. Os pensadores mais evoluídos anteriores à Revolução Francesa embalavam-se, com efeito, na ilusão de ver surgir, espontânea e inevitavelmente, uma sociedade baseada na razão e harmonia, a partir da ação do indivíduo egoísta e isolado. Poder-se-ia quase dizer, sob uma forma um pouco paradoxal, que a concepção econômica de Adam Smith dava enfim um fundamento aos grandes sistemas filosóficos anteriores à Revolução Francesa.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Essa base objetiva da filosofia devia entretanto sofrer uma metamorfose profunda, devida ao triunfo da Revolução Francesa e ao término da revolução industrial na Inglaterra. Antes de mais nada, a historicidade do mundo e, em primeiro lugar a da humanidade, impôs-se ao pensamento. Isto significa concretamente que o pensamento teve de reconhecer o “império da razão” — de que Engels havia dito tão espirituosamente que, uma vez realizado, mostrar-se ia como o império da burguesia — como um estado passageiro da humanidade. Toda filosofia que tende a esconder esse caráter historicamente transitório do capitalismo, condena-se a perde toda perspectiva. Só a resignação total, a aceitação da impotência da razão, pode aceitar o capitalismo como perspectiva da evolução da humanidade. No estágio do imperialismo, um niilismo desesperado ou cínico junta-se a esse niilismo resignado e a ausência de toda perspectiva lhes serve de base comum. Não é mais necessário, estamos convencidos, determo-nos para demonstrar que, desde Nietzsche até o fascismo, passando por Spengler, os mitos históricos da reação são apenas tentativas falaciosas, com vistas a camuflar esse niilismo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Mas a evolução econômica e social, desde metade do século XIX, não somente privou a filosofia de todo fundamento especulativo supra-histórico, como também tornou-lhe sensível a impossibilidade de tomar como ponto de partida o indivíduo isolado e seus estados de consciência. A evolução econômica real provou concretamente o erro das concepções de Smith e de Ricardo, demonstrando que em lugar de fazer nascer a harmonia social, a soma dos atos individuais só pode dar lugar a um caos feito de crises e de guerras que tenderia cada vez mais para a instauração de uma barbárie universal. Assim, o indivíduo isolado, enquanto ponto de partida do pensamento filosófico (gnosiológico, ontológico ou psicológico, pouco importa) terminou por perder sua base implícita, amparada ainda há pouco por uma ilusão historicamente justificada.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Esse estado de coisas está ainda bem longe de ter entrado na consciência, e também no pensamento filosófico. A existência social, que se impõe cada vez mais à vida do homem, age no entanto cada vez mais sobre o pensamento humano e mesmo sobre o dos filósofos, nos quais entretanto as tradições seculares da metodologia criam sobrevivências ideológicas muito tenazes. A presença da categoria do ser-com (<i>Mitsein</i>) na ontologia heideggeriana é uma das provas desse evolução inconsciente. A crise do existencialismo francês, por nós descrita, reflete nitidamente a distância que subsiste entre os problemas que a existência social lhe impõe e as sobrevivências ideológicas que embaraçam sua metodologia. As tentativas de Merleau-Ponty, no sentido de apreender a realidade social atual, ofereceram-nos, em razão da sensibilidade particularmente aguda do autor para problemas novos, a melhor ocasião de estudar essas sobrevivências.<br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Resta-nos apenas demonstrar a ligação íntima que existe entre essas sobrevivências do existencialismo e dos resíduos de opiniões e atitudes trotskistas. Aqui, algumas notas de ordem histórica impõem-se. Merleau-Ponty estaria talvez inclinado a se reconciliar com o que ele chama de marxismo clássico: dirige objeções somente contra a forma atual do marxismo, a que os partidos comunistas representam. Ocupando essa posição, Merleau-Ponty toma sob sua responsabilidade e conserva (se bem que rejeite numerosas opiniões concretas de Trotski e de seus partidários) duas atitudes trotskistas, estreitamente ligadas uma à outra. A primeira é sua desconfiança a respeito da política seguida pelos partidos comunistas, desde o VII Congresso da Internacional Comunista, isto é, desde 1935. Já falamos da primeira questão, analisando a título de exemplo, a incompreensão de Merleau-Ponty a respeito da desigualdade de salários na União Soviética. Considera igualmente a possibilidade de um ataque da URSS contra a Europa e conclui que essa ameaça não é para hoje. Não é portanto por princípio que Merleau-Ponty rejeita uma tal possibilidade, admitindo assim uma teoria que é a de toda contrarrevolução e que considera a União Soviética como um Estado imperialista: julga somente que o problema de uma agressão soviética não é de atualidade. A diferença entre sua posição e a da contrarrevolução antissoviética e portanto somente de ordem tática e não de princípios. É igualmente muito significativo que não faça jamais menor alusão à luta pela democracia nova na França ou em outros países, enquanto que a solução dessa luta decidirá para nós da sorte da evolução e mesmo da sorte da perspectiva socialista. Parece ante que, segundo ele, é precisamente aí que se encontraria a base da pretensa evolução antiteórica do marxismo: essa <i>Realpolitik</i> “pragmatista” é, a seus olhos, responsável pelo afastamento do “marxismo clássico”.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O marxismo clássico coincide certamente para Merleau-Ponty (ele o diz aliás abertamente) com a concepção trotskista que negava, desde 1905, na Rússia, a transição real, se bem que complexa, da revolução até o socialismo. Mais tarde, na época de Brest-Litovsk, os representantes dessa tendência combateram, em nome da “frase revolucionária” (Lênin sobre Trotski), as medidas eficazes para salvar a revolução e para intensificar seu surto. Todo marxista sabe que esse reino da “frase revolucionária” alia-se perfeitamente bem com um oportunismo desprovido de todo princípio. (Cf. o papel de Trotski na realização do bloco de Agosto dos oportunistas em 1910). Lênin, em <i>Que fazer?</i>, desmascara aliás a íntima afinidade ideológica que liga o oportunismo político ao terrorismo individual (a frase revolucionária) dos SR. Essa afinidade íntima encontra uma definição muito feliz num dito que teve um SR numa conversa com Asev, o célebre agente provocador — que não tinha ainda sido desmascarado na época — e pretenso organizados de grandes atentados: “Em suma, Asev vós sois apenas um cadete (liberal) ordinário, mais as bombas...”.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Temos certeza de não caluniar o existencialismo, colocando-o sob este prisma, porque o próprio Merleau-Ponty o faz. Evoca os processos de Moscou: ora, o que foram esses processos, em suma, senão a revelação da essência mesma do trotskismo, da traição em relação à revolução, uma traição que ia até a espionagem? Uma revelação que nos mostrava “o nada aniquilante”, enquanto essência mesma do mundo e da personalidade dessas pessoas, que nos provava sua falência intelectual e moral absoluta e sua “situação” “face ao nada”. Sem o querer expressamente, Merleau-Ponty não está entretanto longe de nos dar razão quando escreve: “Não se é ‘existencialista’ por gosto, e há tanto ‘existencialismo’ — no sentido de paradoxo, divisão, angústia e resolução — no relato estenográfico dos Debates de Moscou como em todas as obras de Heidegger”.<b>[5]</b> Com efeito, o universo dos Bukarin, Rakovski e outros Yagoda, é efetivamente o universo de <i>Sein und Zeit</i>, esse “teatro de fantoches da filosofia", como tão bem diz Henri Lefebvre.<br /></div><div style="text-align: justify;"> </div><div style="text-align: justify;">A condenação da frase revolucionária constitui entretanto a condição <i>sine qua non</i> da verdadeira inteligência do marxismo, da verdadeira superação das tendências niilistas do presente. Quanto mais a evolução segue seu caminho, mais é assim. Há cem, ou mesmo cinquenta anos, uma profissão de fé socialista determinava, num intelectual, uma verdadeira revolução de toda a marcha de seu pensamento. Mas numa época como a nossa, em que o socialismo tem atrás de si trinta anos de história real, uma profissão de fé abstrata pelo objetivo final do socialismo não quer dizer mais nada. <span style="background-color: #f4cccc;">A escolha diante da qual nossa realidade social coloca o pensador honesto, a “situação” na qual se encontra, é a seguinte: é necessário tomar posição face ao socialismo <i>tal como é</i>, tal como nasceu e como se desenvolve na União Soviética; é necessário tomar concretamente posição frente aos caminhos inteiramente novos que conduzem ao socialismo e que se abriram com a derrota do fascismo. Dizer: sou pelo socialismo, mas
não pelo socialismo soviético; sou unicamente por um socialismo conforme
a minha representação </span><span style="background-color: #f4cccc;">— dizer isso, mesmo sob formas “heroicas”,
“sublimes” ou “poéticas”, equivaleria à atitude da mãe que dissesse: a
chama do amor materno me consome, sou o amor materno feito mulher, mas
recuso-me a amar meu filho porque tem as orelhas descoladas.</span></div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">É assim que a frase revolucionária e suas consequências morais aparecem tal como o “<i>Urphaenomen</i>” goethiano. O que é, no plano político “frase revolucionária”, corresponde a uma mal geral dos intelectuais do estágio do imperialismo. Estudamos um dos sintomas desse mal em Simone de Beauvoir, a propósito da superestimação falaciosa, à custa da maturidade, da juventude poética e rebelde. É difícil resistir à tentação de esboçar a análise fenomenológica desse comportamento em face da realidade, mas infelizmente precisamos limitar-nos a algumas notas. Esse mal niilista foi aliás logo reconhecido e genialmente descrito por Dostoievski. Pensemos no diálogo de Ivan Karamazov com o Diabo, que lhe aparece sob a aparência de um proprietário fundiário parasita. O Diabo diz a Ivan: “Na realidade, estás furioso só porque não apareci numa luz vermelha acompanhada de raios e trovões, com asas queimadas, mas sob uma aparência mais modesta. Estás ofendido, primeiro nos teus sentimentos estéticos, mas também no teu orgulho: Perguntas: como um diabo tão ordinário pode apresentar-se diante de um tão grande homem?” A frase revolucionária representa simplesmente a defesa do psiquismo do intelectual contra as ofensas desse gênero: é o anjo de asas queimadas. Ela satisfaz o amor-próprio dos intelectuais, que se debatem como vítimas do desejo pouco consciente de sair do niilismo. Quando se crê, com efeito, ter rompido com a sociedade burguesa ou, que se levante, ao menos, um protesto intelectual contra ela, exige-se que essa atitude traga consigo toda a poesia das épocas heroicas. Não nos revoltamos contra a sociedade burguesa simplesmente para tornarmo-nos uma engrenagem no aparelho do partido e para dedicarmo-nos a estatísticas prosaicas. Tememos cair, de uma maneira ou de outra, no conformismo. Aquele que se aferra assim à frase revolucionária do trotskismo, encontra-se, por esse fato, separado do proletariado, o qual — como Merleau-Ponty vê muito bem — permanece fiel aos partidos comunistas e à União Soviética. Mas isto em nada conta, ao contrário: resta sempre o recurso de se lamentar, numa atitude de luto sublime, na solidão do não-conformista ao meio de uma época má.<br />
</div><div style="text-align: justify;"> </div><div style="text-align: justify;">= = =<br />
<b>Referências:</b><br /><blockquote><span style="font-size: small;"><span style="font-family: verdana;"><b>[1]</b> <i>Temps moderns</i>, t. XVII, p. 856.<br /> <b>[2] </b>Ibidem, p. 875.<br /> <b>[3] </b>Idem.<br /><b>[4]</b> <i>Temps moderns</i>, t. XVI, p. 690.<br /><b>[5]</b> Ibidem, p. 711.</span></span></blockquote><span style="font-family: verdana;"></span>= = =<br />
LUKÁCS, G. <i><b>Existencialismo ou marxismo? </b></i>Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Ciências Humanas, 1979, pp. 161-164; 195-203.<br />
= = =</div>
Paulo Ayreshttp://www.blogger.com/profile/05722111703766282633noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6017843677382845935.post-85236899002258994272022-07-11T11:31:00.006-07:002022-10-06T16:22:32.069-07:00A morte de Shinzo Abe: quem foi e porque você deveria celebrar! <div style="text-align: center;"><iframe allow="accelerometer; autoplay; clipboard-write; encrypted-media; gyroscope; picture-in-picture" allowfullscreen="" frameborder="0" height="315" src="https://www.youtube.com/embed/Ja9aXIcbEGk" title="YouTube video player" width="560"></iframe></div>
<p></p><p style="text-align: right;">por <b>João Carvalho</b><br />= = =</p>Paulo Ayreshttp://www.blogger.com/profile/05722111703766282633noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6017843677382845935.post-60141298395113800262022-07-10T15:00:00.001-07:002022-07-10T15:00:36.872-07:00O rei está nu: vanguardice e vigarice<p></p><p></p><div style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi9UD2aSfCG15kRWhGvgeFEYWyPBnZVrxUk_k-wGyTv1MmjvcoeG5z1_hSustgqAP6J9RGdgYSbE23A4l6Z2rU9LbgpZoYX8ufcwBUt6IUbjItbSC5bfvLyV0h1anDIbBg2gB2T7qETyeEYa0fur5Gqe9lchdTDsNwjVQayMi82jTl36vUGuHVaMQ/s744/Modern%20Irrationalism%20-%20Nihilist%20Art%20-%20Marcel%20Duchamp%20-%20Roue%20de%20bicyclette%20(1913).png"><img border="0" height="308" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi9UD2aSfCG15kRWhGvgeFEYWyPBnZVrxUk_k-wGyTv1MmjvcoeG5z1_hSustgqAP6J9RGdgYSbE23A4l6Z2rU9LbgpZoYX8ufcwBUt6IUbjItbSC5bfvLyV0h1anDIbBg2gB2T7qETyeEYa0fur5Gqe9lchdTDsNwjVQayMi82jTl36vUGuHVaMQ/w474-h308/Modern%20Irrationalism%20-%20Nihilist%20Art%20-%20Marcel%20Duchamp%20-%20Roue%20de%20bicyclette%20(1913).png" width="474" /></a><br /></div><div><div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div><div style="text-align: right;"><div class="separator" style="clear: both;">por <b>Gustavo Ramos de Souza</b><b> </b></div></div><div style="text-align: right;"><b><a href="http://avulsoaoavesso.blogspot.com.br/2011/04/o-rei-esta-nu-ou-vanguardice-e-vigarice.html" rel="nofollow" target="_blank">Avulso ao avesso</a></b>/2011</div><div style="text-align: justify;">
<br />
O termo vanguardice, sem dúvida, é uma forma pejorativa de referir-se às tendências de vanguarda. À primeira vista, pode parecer ressentimento daqueles que foram preteridos pelas novidades ou, até mesmo, assumir uma postura reacionária. Com efeito, essa aversão às novidades é ancestral e pode estar ligada à crença ou superstição do homem de que o novo traz consigo o inesperado, a incerteza e o acaso — como diz Nietzsche ao caracterizar o Mal. Por outro lado, o filósofo e crítico literário húngaro Georg Lukács afirma a tese de que a concepção de mundo subjacente à vanguarda contrapõe-se à do realismo crítico, pois, enquanto a vanguarda concebe o homem como um ser simplesmente dado, um ser-aí-no-mundo (Heidegger), em uma existência contingente, o realismo compreende o homem como um “animal social” (Aristóteles), como um ator histórico comprometido com os problemas de seu tempo. Entusiastas da <i>avant-garde</i>, como Theodor Adorno, enxergam na arte de vanguarda a única saída possível do impasse do desencantamento da arte, isto é, da arte “não-aurática”, enquanto Lukács, por exemplo, vê a vanguarda como uma solução escapista, tal como “a arte pela arte”, de indivíduos incapazes de oferecer quaisquer respostas para resolver essa questão; enfim, trata-se apenas de visões de mundo opostas.<br />
<br />
Há um conto de Hans Christian Andersen chamado <i>A nova roupa do rei</i>, que narra a história de um rei muito vaidoso, apaixonado por roupas novas, que é enganado por dois vigaristas que se passam por tecelões e roubam todo o seu ouro. O ludíbrio se dá quando eles dizem ao rei vaidoso que a roupa que lhe fariam, além de ter desenhos magníficos, teria a capacidade de fazer com que o tecido só fosse visível aos olhos de pessoas inteligentes e capazes. Os vigaristas, então, levam dias enredando um tecido que não existe, enquanto roubam o rei. E todos os convidados a olhar o tecido dizem que é belíssimo, sem, na verdade, tê-lo visto. De fato, todos do reino se apercebem da farsa, mas ninguém tem coragem de dizer ao rei que não há roupa nenhuma — pois temem ser considerados tolos e incompetentes. O próprio rei sabe que não há tecido, uma vez que também não consegue enxergá-lo; no entanto, temendo passar por estúpido, deixa a farsa seguir adiante. Finalmente, quando terminada a roupa do tecido imaginário, o rei a apresenta aos seus súditos, sem que ninguém conseguisse enxergá-la, pois “ninguém queria dar a perceber que não podia ver coisa alguma, para não passar por tolo ou por incapaz” — até que um menino diz a famosa frase: O rei está nu! Pois bem, que sentido podemos extrair dessa história para compreendermos os movimentos de vanguarda?<br />
<br />
O sentido que emana dessa parábola sobre a estupidez humana corresponde à própria visão de mundo da vanguarda, uma vez que os vanguardistas, sejam eles pintores, compositores, poetas, cineastas ou escultores, criam obras esotéricas e pernósticas, compreensíveis apenas para meia dúzia de iniciados de uma seita “artística” elitista e pretensamente intelectual, sendo considerados verdadeiros gênios, quando, na verdade, a sua “arte cabeça” nada mais é que arte “sem pé nem cabeça”. Mas ninguém tem coragem de dizer que aquilo é vazio, obscuro e sem sentido, pois teme receber a pecha de idiota e incapaz. O próprio Marcel Duchamp, paladino do vanguardismo do início do século XX, afirmou, a propósito de sua famosa <i>Roda de bicicleta</i>: “Essa máquina não tem intenção, a não ser de me livrar da aparência da obra de arte. Era uma fantasia. Eu não a chamava de uma ‘obra de arteʼ. Queria acabar com a vontade de criar obras de arte.” (apud BOURDIEU, In: <i>As regras da arte,</i> 1996) Aqui, temos a prova irrefutável de que a sua “arte” não tinha sequer a presunção de se afirmar como arte. Tratava-se tão somente de uma atitude anárquica contra os valores instituídos (aliás, sintoma típico das épocas de decadência), com o intuito de <i>épater le bourgeois</i> — tal como fazia o gênio louco Antonin Artaud. O problema é que, às vezes, o crítico quer saber mais do que o próprio artista. Buñuel, inclusive, ironizou as interpretações descabidas feitas sobre o seu curta-metragem<i> Un chien andalou</i>, de 1929, dizendo que: “Nada simboliza qualquer coisa”. O artista descobre, ao ler as análises sobre a sua obra, que ele intencionou fazer isto e aquilo, quando não intencionava fazer coisa alguma, como se dissesse: eu não sabia que quis dizer isso! Eu sei que seria ingenuidade considerar uma obra-de-arte como um produto autônomo, fruto da criatividade do seu criador — pois é inegável que arte é, acima de tudo, resultado, ou melhor, expressão, de estruturas sociais, como propõe brilhantemente Lucien Goldmann, em <i>A sociologia do romance</i>. Mas entre a questão social, o grau de abertura de uma obra e as divagações sem nexo do crítico existem fissuras impreenchíveis, pois um significante está ligado a um determinado significado, e não a qualquer significado. É no espaço que se abre entre um e outro que o hermeneuta atuará, mas nunca se esquecendo do gesto semântico proposto pela obra.<br />
<br />
É óbvio que, neste momento, os defensores da dita “arte conceitual” levantar-se-ão contra mim (caso haja algum me lendo), dizendo que o artista tentou exprimir tal ideia, simbolizando isto e aquilo. Ora, se o artista foi incompetente em sua intenção de expressar algo, ele não tem nada que querer impor a sua interpretação sobre a própria obra. Por incrível que possa parecer, tal grau de cabotinismo, em tentar explicar a própria obra aos seus “estúpidos” receptores, é comum: Mário de Andrade, por exemplo, bem como os compositores da tradição da música programática já fizeram isso. Mas o fato é que o esoterismo da vanguarda, paradoxalmente, abre um horizonte de interpretação que os próprios “vanguardeiros” não querem depois admitir. Se a obra quer dizer uma coisa ou outra, expressando um determinado conceito, isso não tem qualquer relevância. A polissemia das obras de vanguarda tem de suportar também uma interpretação que seja capaz de dizer que, na verdade, essas obras não significam nada. Segundo Flávio Kothe, “para salvar a arte ‘auráticaʼ, Adorno defendeu a mímese como não-identidade a ponto de acabar havendo uma identificação às avessas: essa arte é exatamente o contrário do mundo, é igual a ele só que tudo ao contrário.” (In: <i>Literatura e sistemas intersemióticos</i>, 1981) Assim, a arte seria o refúgio do ideal, distorcendo a realidade degradante. Com efeito, o vanguardismo na pintura nasceu como uma reação ao desenvolvimento do daguerreótipo, que captava a realidade com mais precisão do que qualquer pintura realista. Às artes plásticas só coube então escapar da realidade, abstendo-se de tentar representá-la. Nesse sentido, a arte seria o negativo da realidade, o seu avesso. É esta a concepção de mundo da vanguarda: representar a realidade em sua negatividade, ou seja, abolindo-se as noções de causalidade, de dimensão, de percepção ótica, dos modos de ouvir etc., rejeitando-se a sintaxe, a lógica formal, a temporalidade, enfim, representar a realidade em sua negação. Eis que surge o problema da vigarice intelectual: a vanguarda abraça uma visão de mundo e quer torná-la uma verdade eterna, quando, na verdade, não quer admitir a fraqueza e impotência dos próprios homens que fazem. É a diferença, segundo Lukács, em participar e observar a História. O realismo quer forçar a participação, tornar os homens conscientes de seu papel histórico, enquanto a vanguarda concebe o homem dissociado de tudo, ao “Deus dará”, inconformado com o mundo à sua volta, mas incapaz de mover uma palha para mudar alguma coisa. O primeiro tem vontade de mudar o mundo, transformá-lo, reivindicar os seus direitos; já o segundo fica trancado no quarto, sentindo pena de si mesmo. Ora, o pessimismo é apenas uma visão de mundo, não é a verdade última da humanidade. Em relação a isso, a despeito de seu ultraconservadorismo, Monteiro Lobato, em seu notório artigo sobre a Exposição de Anita Malfatti, em 1917, faz uma afirmação que merece nossa atenção:</div><div style="text-align: justify;"><br />
<div style="margin-left: 80px;"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana", sans-serif">Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que veem normalmente as coisas e em consequência disso fazem arte pura, guardando os eternos rirmos da vida, e adotados para a concretização das emoções estéticas, os processos clássicos dos grandes mestres. Quem trilha por esta senda, se tem gênio, é Praxíteles na Grécia, é Rafael na Itália, é Rembrandt na Holanda, é Rubens na Flandres, é Reynolds na Inglaterra, é Leubach na Alemanha, é Iorn na Suécia, é Rodin na França, é Zuloaga na Espanha. Se tem apenas talento vai engrossar a plêiade de satélites que gravitam em torno daqueles sóis imorredouros. A outra espécie é formada pelos que veem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. São produtos de cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência: são frutos de fins de estação, bichados ao nascedouro. Estrelas cadentes, brilham um instante, as mais das vezes com a luz de escândalo, e somem-se logo nas trevas do esquecimento.</span></span></span><br /></div></div><div style="text-align: justify;">
<br />
Obviamente, nem tudo quanto Lobato diz corresponde à verdade dos fatos — tanto que ele considera a arte de vanguarda como “anormal”, fazendo-nos lembrar do nazismo e de seu preconceito contra a “arte degenerada”; todavia, fica claro esse impasse entre visões de mundo totalmente distintas. Para nos atermos somente à literatura do século XX: de um lado, temos Roger Martin Du Gard, Romain Rolland e Thomas Mann; do outro, André Gide, James Joyce, William Faulkner, Samuel Beckett e o <i>nouveau roman</i>. Há, sem dúvida, grandeza dos dois lados. Mas o grande problema da vanguarda é que esse pessimismo transgressor, logo, tornou-se institucionalizado, perdendo toda a sua força de outrora. Quando todos se tornam transgressores, a transgressão torna-se, por conseguinte, convencional, isto é, o gesto subversivo, anárquico e demoníaco cai no lugar-comum, tornando-se unanimidade. Do mesmo modo que diziam, no início do século passado, que não fazia mais sentido ser realista; hoje, não faz mais sentido ser vanguardista. Como bem o disse Ferreira Gullar: “o que é institucional não é revolucionário, ou é uma coisa ou é outra”. A vanguarda reduziu a arte ao absurdo, em sua pura negação, porquanto em um mundo onde o não, a negação é a ordem, o<i> underground</i> torna-se <i>mainstream</i>. A consagração da transgressão é uma hipocrisia ideológica que muitos não querem admitir, pois a vanguarda é considerada o último suspiro da arte sobre a terra. Assim, temos observado o declínio da vanguardice e a ascensão da vigarice, haja vista que o ideal de que “tudo é arte” faz com que seja considerado arte qualquer coisa, desde mictórios e rodas de bicicleta até a completa ausência de tudo. Enfim, a vanguarda promove a mistificação da arte, criando falsos gênios e enredando tecidos que ninguém vê, mas finge que vê, porque pega bem gostar de arte pós-moderna, porque é ser <i>cult</i>, também, para não ser rotulado de estúpido e incapaz. Em virtude disso, o rei continua nu, e a arte deixou de ser arte.<br />
= = =</div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
</div></div></div>Paulo Ayreshttp://www.blogger.com/profile/05722111703766282633noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6017843677382845935.post-55826735892794023142022-07-04T15:59:00.000-07:002022-07-04T15:59:03.125-07:00Integralismo, estudo de caso sobre o fenômeno fascista<div style="text-align: center;"><iframe allow="accelerometer; autoplay; clipboard-write; encrypted-media; gyroscope; picture-in-picture" allowfullscreen="" frameborder="0" height="315" src="https://www.youtube.com/embed/3qNmIXaFSr8" title="YouTube video player" width="560"></iframe>
<br /></div><div><br /></div><div style="text-align: right;">por <b>Ian Neves</b><br /><i>História Pública</i><br />= = =</div>Paulo Ayreshttp://www.blogger.com/profile/05722111703766282633noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6017843677382845935.post-25667661115220133772022-06-30T13:00:00.001-07:002022-07-20T16:21:46.512-07:00O socialismo libertário do eurocêntrico Žižek<div style="text-align: justify;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiogwk042KEBm2h8TbBAzI7wnE1xA2BCVw4ddXmJxk18RIHtXHwzWanOC0J_7NJdE11q0KXUWXeIImtEwJ4LsWCR_q9pP5AimUVO0DWAVUrcE6QdjaBNkgd6tBR_GxaUpmelo9OLRxEeEZVGXw-4zq5tdLIHkG3_o7EgDKGVvjRUJ00DWr9l44pFA/s1092/Modern%20Irrationalism%20-%20Libertarian%20Socialism%20-%20Protomarxismo%20-%20Slavoj%20%C5%BDi%C5%BEek%20-%20Atlanticism.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="254" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiogwk042KEBm2h8TbBAzI7wnE1xA2BCVw4ddXmJxk18RIHtXHwzWanOC0J_7NJdE11q0KXUWXeIImtEwJ4LsWCR_q9pP5AimUVO0DWAVUrcE6QdjaBNkgd6tBR_GxaUpmelo9OLRxEeEZVGXw-4zq5tdLIHkG3_o7EgDKGVvjRUJ00DWr9l44pFA/w640-h254/Modern%20Irrationalism%20-%20Libertarian%20Socialism%20-%20Protomarxismo%20-%20Slavoj%20%C5%BDi%C5%BEek%20-%20Atlanticism.png" width="640" /></a><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<div style="text-align: right;">
por <b>Domenico Losurdo</b></div>
<br />
<b>I. O anti-imperialismo de Žižek</b><br />
<br />
Se comparado com 1989 e os anos imediatamente posteriores, e se comparado com o período em que o discurso sobre a nada pranteada morte definitiva de Marx se tornara praticamente senso comum, o quadro ideológico de nossos dias se mostra bem diferente: é claro e crescente o interesse pelo grande pensador e revolucionário, e os autores que de uma maneira ou de outra a ele se referem gozam não raro de considerável prestígio e popularidade. Devemos, então, falar de uma recuperação do marxismo ocidental?<br />
<br />
<div style="text-align: justify;">
Recentemente, o expoente mais ilustre daquele que adora se autodefinir, sedutoramente, como o “marxismo ocidental libertário” saudou 2011 como “o ano do despertar da política radical de emancipação em todo o mundo”<b>[1]</b>. Verdade seja dita, o autor não demorou a admitir a desilusão em que logo recaiu. Mas abstraiamos os desenvolvimentos sucessivos e concentremo-nos no ano de 2011, saudado em termos tão lisonjeiros: sim, era o ano em que novos movimentos de protesto (Occupy Wall Street, Indignados etc.) pareciam se alastrar como fogo, mas também o ano em que a Otan deflagrava contra a Líbia uma guerra que, depois de provocar dezenas de milhares de mortos, se encerrou com o terrível linchamento de Muammar Kadafi. O caráter neocolonial da agressão era reconhecido por respeitados órgãos da imprensa ocidental. No entanto, Hillary Clinton entregava-se a um júbilo tão excessivo (“nós viemos, nós vimos, ele morreu!”, <i>we came, we saw, he died!</i> — exclamava triunfante a então secretária de Estado), a ponto de provocar escrúpulos até num jornalista da <i>Fox News</i>: em sua opinião, esse entusiasmo por um crime de guerra era perturbador. Infelizmente, a infame empresa neocolonial aqui tratada não apenas não encontrou resistências de relevo no marxismo ocidental como, na Itália, foi legitimada por pelo menos uma figura histórica dessa corrente de pensamento<b>[2]</b>.</div>
<br />
Ainda em 2011, em Tel Aviv e em outras cidades israelenses, centenas de milhares de “indignados” acorriam às praças contra o alto custo de vida, os aluguéis exorbitantes etc., mas eram bem cautelosos quanto a discutir a persistente e acelerada colonização dos territórios palestinos: a “indignação” alertava para as crescentes dificuldades dos estratos populares da comunidade judaica, mas não julgava digna de atenção a interminável tragédia do povo submetido à ocupação militar. Assim descreve essa tragédia, numa prestigiosa revista estadunidense, um professor da Universidade Hebraica de Jerusalém: ao menos no que se refere aos territórios palestinos ocupados, Israel é uma “etnocracia”, em última instância, um Estado racial.<br />
<br />
A colonização das terras palestinas expropriadas pela força prossegue ininterrupta. Os que ousam protestar “são tratados com rigor, às vezes levados à prisão por longo período, às vezes mortos no decorrer das manifestações”. Tudo isso se insere no âmbito de “uma campanha impiedosa cujo objetivo é tornar a vida dos palestinos o mais miserável possível [...], na esperança de que eles vão embora”. É uma obra de limpeza étnica, ainda que diluída no tempo. Estamos diante de uma etnocracia tão dura que nos traz a memória os “tenebrosos precedentes da história do século passado”<b>[3]</b>. Apesar disso, os “indignados” com o alto custo de vida a que estão submetidos, mas indiferentes à cruel “etnocracia” imposta aos palestinos, foram celebrados por dois ilustres autores de orientação marxista como paladinos de uma nova sociedade, “baseada nas relações comunitárias”<b>[4]</b>.<br />
<br />
Seria 2011, então, “o ano dos despertar da política radical de emancipação em todo o mundo” (para citar Žižek), ou do despertar do ideal de uma sociedade “baseada nas relações comunitárias” (como disseram Hardt e Negri), ou ainda seria o ano em que os crimes colonialistas e neocolonialistas encontram o silêncio ou a conivência até dos ambientes tradicionais da esquerda? Ao traçarem seu balanço abstraindo completamente a sorte reservada aos povos coloniais, Žižek, Hardt e Negri reproduzem, ampliando-o ainda mais, o limite de fundo do marxismo ocidental. Desse ponto de vista, o sucesso de que sobretudo Žižek goza em nossos dias leva-nos pensar não numa recuperação, mas num último suspiro do marxismo ocidental.<br />
<br />
O recalque da questão colonial é parte integrante da plataforma teórica e política do filósofo esloveno. Para ele, o mundo existente, anos-luz distante do Outro desejado ou sonhado, é dominado integralmente pelo capitalismo; não faria sentido distinguir as potências imperialistas e colonialistas dos países que há pouco tempo se libertaram do domínio colonial e que ainda, entre tentativas e erros, tentam superar o atraso, alcançar a plena independência também no plano econômico e atribuir-se instituições políticas adequadas às próprias condições econômico-sociais, bem como à própria situação geopolítica. Žižek não é menos hostil do que Arendt à categoria de Terceiro Mundo. Aliás, ele é mais radical. É contundente sua ironia em relação àqueles países que, embora façam referência a uma ideologia revolucionária e por vezes ao marxismo, agitam a bandeira do anti-imperialismo: a luta de classes já não teria como protagonistas “os capitalistas e o proletariado de cada país”, mas se desenvolveria num quadro internacional, contrapondo os Estados mais do que as classes sociais; dessa forma, a marxiana “crítica do capitalismo enquanto tal” se reduz e se deforma em “crítica do ‘imperialismo’”, que perde de vista o essencial, isto é, as relações capitalistas de produção<b>[5]</b>.<br />
<br />
Depois de tirar do caminho as categorias de Terceiro Mundo, imperialismo e anti-imperialismo, a única distinção sensata, no que diz respeito ao presente, seria a distinção entre “capitalismo autoritário” e não autoritário. Na primeira categoria deve ser incluída a China<b>[6]</b>, mas podem ser inseridos também o Vietnã e talvez a própria Cuba, depois das recentes aberturas de mercado e à economia privada (ao menos tendencialmente capitalista). Seja como for, aqui devem ser inseridos os países da “América Latina”, marcados por um “capitalismo populista” inclinados ao caudilhismo e ao autoritarismo<b>[7]</b>. Se olharmos com atenção, de alguma maneira ressurge a distinção desprezada pelo filósofo esloveno, aquela entre Terceiro Mundo, de um lado, e Ocidente capitalista (e com tradições e persistentes tendências colonialistas), de outro. Só que agora tal distinção reaparece por glória exclusiva do Ocidente liberal, que se torna o modelo a ser seguido pelos países do Terceiro Mundo.<br />
<br />
Em conclusão: o ponto de vista de Žižek não diverge da autoconsciência das classes dominantes na Europa e nos Estados Unidos. A constatação dessa convergência não é, por si só, uma contestação. É o próprio filósofo esloveno, porém, quem nos fornece essa contestação. Ele menciona a diretiva dada por Kissenger à CIA no intuito de desestabilizar o Chile de Salvador Allende (“Façam com que a economia grite de dor”) e destaca como tal política teve continuidade contra a Venezuela de Chávez<b>[8]</b>. Evita-se, porém, uma pergunta que naturalmente se impõe: por que a Venezuela de Chávez e Maduro deveria ser considerada mais “autoritária” do que o país que pretende a todo custo desestabilizá-la e subjugá-la e que pretende exercer sua ditadura na América Latina e no mundo? Claro, do ponto de vista da autoconsciência do Ocidente liberal, o despotismo ou o autoritarismo exercido contra os povos coloniais são irrelevantes. Com base nessa lógica, em seu discurso de posse do primeiro mandato presidencial, Bill Clinton celebrava os Estados Unidos como a mais antiga democracia do mundo: a escravização dos negros e a expropriação, deportação e dizimação dos nativos não mereciam nenhuma atenção. A uma abstração semelhante e igualmente arbitrária procede Žižek, que nem sequer se pergunta se o autoritarismo de Washington não estimula em alguma medida o autoritarismo de Caracas.<br />
<br />
Pode-se fazer uma consideração de caráter geral: é muito estranha uma crítica do capitalismo que poupe os piores aspectos desse sistema, muito evidentes, segundo a lição de Marx, nas colônias. Não teria credibilidade uma crítica ao trabalho assalariado que silenciasse sobre o trabalho escravo, pois a história do trabalho escravo em suas diversas formas está em ampla medida ligada à história da opressão colonial. E certamente é enganosa uma crítica do “autoritarismo” como a de Žižek, que nos leva a menosprezar o “autoritarismo” praticado contra povos que, por decisão soberana de uma grande potência ou de uma coalizão de grandes potências, são submetidos a embargos devastadores ou a bombardeios e ocupação militar.<br />
<br />
<b>II. Žižek, o desprezo pela revolução anticolonial e a demonização de Mao </b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A desconsideração da luta entre colonialismo e anticolonialismo também se manifesta nos capítulos da história evocadas pelo filósofo esloveno. A propósito da revolução dos escravos negros de São Domingo/Haiti, ele observa que, depois da morte de Jean-Jacques Dessalinis, em 1806, esse evento sofre uma “regressão para uma nova forma de domínio hierárquico”<b>[9]</b>. A observação é correta se nos ativermos exclusivamente à política interna. No plano internacional, ao contrário, o cenário é bem diferente: mesmo sem conseguir estabilizar e superar a autocracia, o poder dos escravos ou ex-escravos continua a desempenhar uma função revolucionária: é Alexander Pétion, presidente entre 1806 e 1818, quem obtém de Simón Bolívar o compromisso com a libertação imediata dos escravos em troca de apoio à luta da América Latina pela independência da Espanha. Por outro lado, em defesa obstinada do instituto da escravidão, vemos a “democrática” república norte-americana, que, com um política de embargo ou de bloqueio naval, tenta impor a inanição ou a capitulação ao Haiti, o país que, não obstante o despotismo de seu regime político, encarna a causa do abolicionismo e da liberdade para os negros. Se quiséssemos utilizar o critério que Žižek estabelece para a leitura do presente, deveríamos dizer que o Haiti representava o “capitalismo autoritário”, ao passo que os Estados Unidos representavam o capitalismo mais ou menos “democrático". Contudo, tal leitura nos permite entender muito pouco tanto do presente quanto do passado, além de distorcer ambos.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Não menos unilateral é o juízo formulado pelo filósofo esloveno sobre a União Soviética que sucede a morte de Lênin. Limito-me aqui a reportar uma afirmação lapidar: “Heidegger erra quando reduz o Holocausto à produção unilateral de cadáveres; quem se reduziu a isso foi o comunismo stalinista, não o nazismo”<b>[10]</b>. Deixemos de lado o gosto pela provocação, tão caro a esse autor, que frequentemente parece apreciar mais pirotecnia do que os argumentos. O essencial não é isso: vimos eminentes historiadores caracterizar a agressão hitlerista do Leste como a maior guerra colonial de todos os tempos, uma guerra colonial contra a qual, já sabemos, Stálin se prepara mesmo antes da conquista do poder. Pois bem, o mínimo que se pode dizer é que o teórico do “marxismo ocidental libertário” não tem uma posição preliminarmente anticolonialista! Como ignora o papel internacional do Haiti, encarnação da causa abolicionista apesar de seu regime político despótico, também não dá nenhuma atenção ao papel internacional da União Soviética de Stálin, que, aniquilando a tentativa hitlerista de reduzir a Europa oriental a “Índias alemãs”, deu a sentença de morte para o sistema colonialista mundial (ao menos na sua forma clássica).<br />
<br />
<div style="text-align: justify;">
O mais significativo é o modo como Žižek se posiciona em relação a outro recente capítulo da história, aquele referente à China. No que concerne à gravíssima crise econômica e à terrível penúria provocadas ou seriamente aprofundadas pelo Grande Salto para a Frente de 1958-1959, ele fala com distraída desenvoltura sobre a “decisão de Mao de matar de fome dez milhões de pessoas no fim dos anos 1950”<b>[11]</b>. Quando vi essa afirmação pela primeira vez, fiquei estarrecido: a tradução italiana seria imprecisa ou muito enfática? Nada disso! A versão original também não dá margem a dúvidas e, na verdade, é ainda mais desconcertante: “<i>Mao's ruthless decision to starve tens millions to death in the late 1950's</i>”<b>[12]</b>. No original se fala não de “dez milhões de pessoas", mas de “dezenas de milhões de pessoas"; provavelmente, o tradutor tentou salvaguardar o prestígio do autor que traduziu, redimensionando seus arroubos. De qualquer modo, é preciso que fique claro: o motivo recorrente da campanha voltada a demonizar, junto com o líder que em Pequim exercia o poder por mais de um quarto de século, a República Popular da China enquanto tal, a república surgida da maior revolução anticolonial da história, tal motivo é reverberado sem nenhuma cautela crítica pelo mais famoso expoente do “marxismo ocidental libertário”!</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Todavia,a acusação em questão não obtém crédito algum entre autores mais sérios. Até <i>O livro negro do comunismo</i>, embora insistindo nas proporções colossais do desastre, reconhece que o “objetivo de Mao não era matar em massa seus compatriotas”<b>[13]</b>. Eminentes homens de Estado ocidentais também se recusavam a cavalgar o cavalo de batalha da incipiente guerra fria contra o grande país asiático. Numa entrevista ao jornal semanal <i>Die Zeit</i>, o ex-chanceler alemão Helmut Schmidt fez questão de destacar o caráter não intencional da tragédia que o Grande Salto para a Frente provocou em sua época<b>[14]</b>. De modo análogo argumentou Kissinger: de fato, tratou-se de “uma das piores crises de penúria da história humana”<b>[15]</b>. Mesmo assim, Mao se propunha acelerar ao máximo “o desenvolvimento industrial e agrícola" da China, pretendia alcançar o Ocidente em curto período e, desse modo, obter uma condição de bem-estar difuso e generalizado. Em suma, segundo o ilustre estudioso e político estadunidense, Mao “novamente chamara o povo chinês a mover montanhas, mas desta vez as montanhas não se mexeram”.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Ainda que marcada pela honestidade e seriedade intelectual, as tomadas de posição anteriormente reportadas apresentam um limite: ignoram o contexto histórico em que se insere o Grande Salto para a Frente e que remete à longa duração da luta entre colonialismo e anticolonialismo. Já conhcecemos a preocupação expressa por Mao às vésperas da proclamação da República Popular da China: o país, apesar do respaldo da gloriosa luta de libertação nacional, corria o risco de depender economicamente dos Estados Unidos e, portanto, de se tornar uma semicolônia.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Com efeito, as diretivas da administração Truman eram ao mesmo tempo claras e impiedosas: já em condições desesperadoras devido a décadas de guerra e de guerra civil, a República Popular da China, não admitida na ONU e cercada e ameaçada no plano militar, devia ser submetida a uma guerra econômica que a conduziria rumo a uma “situação econômica catastrófica”, “rumo ao desastre” e ao “colapso”. Isso também provocaria a derrota do Partido Comunista Chinês, que até aquele momento governara somente áreas rurais mais ou menos extensas e, portanto, padecia de uma total “inexperiência” no que se referia ao “campo da economia urbana". Era dessa condição de extrema fragilidade econômica e de potencial queda ou recaída numa condição de dependência semicolonial que Mao tentava escapar, recorrendo a uma mobilização de massas de tipo militar em que dezenas de milhões de camponeses, embora semianalfabetos, com seu entusiasmo revolucionário, deveriam imprimir uma prodigiosa aceleração ao desenvolvimento econômico.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Na realidade, com sua impaciência e com sua inexperiência no “campo da economia urbana”, o líder chinês acabou caindo na armadilha preparada contra ele por seus inimigos. O resultado foi a catástrofe. Um fato, porém, dá o que pensar: no início dos anos 1960, um colaborador da administração Kennedy, a saber, Walt. W. Rostow, vangloriava-se do triunfo dos Estados Unidos, que tinham conseguido atrasar o desenvolvimento econômico da China por “décadas”. Isto é, a penúria que se seguiu ao Grande Salto para a Frente de 1958-1959 não era atribuída à suposta fúria homicida de Mao, mas sim à sabedoria maquiavélica da política perseguida por Washington<b>[16]</b>.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Concluindo: Margolin, Schmidt e Kissinger erram ao não inserir claramente o desastroso experimento utopista de Mao na história da tragédia colonial iniciada com as guerras do ópio e ainda em pleno desenvolvimento nos anos do Grande Salto para a Frente. No entanto, é Žižek que, omitindo tanto a luta entre colonialismo e anticolonialismo quanto a corrida frenética de Mao para escapar da desesperada miséria de massa resultante da agressão e do domínio colonial, atribui tudo à loucura homicida do líder chinês.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
= = =</div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Notas:</b></div>
<blockquote class="tr_bq">
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[1]</b> Slavoj </span></span><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">Žižek, </span></span></span></span><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><i>In difesa delle cause perse</i> (trad. Cinzia Arruzza, Milão, Salani, 2009), p. 255 [ed. bras.: <i>Em defesa das causas perdidas</i>, trad. Maria Beatriz Medina, São Paulo, Boitempo, 2011]; e <i>Un anno sognato pericolosamente</i> (trad. Carlo Salzani, Milão, Salani, 2012), p. 163 [ed. bras.:<i> O ano em que sonhamos perigosamente</i>, trad. Rogério Bettoni, São Paulo, Boitempo, 2012].</span></span></span></span></span></span><br />
<span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[2]</b> Ver, neste volume, cap. 5, </span></span><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">§ 7.</span></span></span></span><br />
<span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[3]</b> David Shulman, </span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">“Israel in Peril</span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">”, <i>The New York Review of Books</i>, 7 jun. 2012.</span></span><br />
<span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[4] </b>Michael Hardt e Antonio Negri, <i>Questo non è un manifesto</i> (Milão, Feltrinelli, 2012), p. 66.<b> </b></span></span><br />
<span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[5] </b></span></span><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">Slavoj </span></span><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">Žižek, </span></span></span></span></span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">“Mao Tse-ting, the Marxist Lord of Misrule</span></span></span></span></span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">”, em <i>Mao. On Practice and Contradiction</i> (Londres, Verso, 2007), p. 2 e 5.</span></span></span></span></span></span><br />
<span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[6] </b>Idem, </span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">“De la démocratie à la violence divine</span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">”, em Giorgio Agamben et al, <i>Démocratie, dans quell état? </i>(Paris, La Fabrique, 2009), p. 131.<b> </b></span></span><br />
<span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[7] </b>Idem, </span></span><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><i>In difesa delle cause perse</i>, cit., p. 450.</span></span></span></span><br />
<span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[8] </b>Domenico Losurdo, <i>La lotta di classe: una storia politica e filosofica </i>(Roma/Bari, Laterza, 2011), cap. 9, </span></span><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">§ 7 [ed. bras.: <i>A luta de classes: uma história política e filosófica</i>, trad. Silvia de Bernardinis, São Paulo, Boitempo, 2015].</span></span></span></span><br />
<span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[9] </b>Slavoj Žižek, <i>Dalla tragedia alla farsa</i> (trad. Cinzia Arruzza, Florença, Ponte alle Grazie, 2010 [2009]), p. 159 [ed. bras.: <i>Primeiro como tragédia, depois como farsa</i>, trad. Maria Beatriz de Medina, São Paulo, Boitempo, 2009].</span></span></span></div><span style="font-family: verdana;">
</span><div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[10]</b> Idem, </span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">“Mao Tse-tung, the Marxist Lord of Misrule</span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">”, cit., p. 10.</span></span></span></div><span style="font-family: verdana;">
</span><div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[11] </b>Idem, <i>In difesa delle cause perse</i>, cit., p. 212.</span></span></span></div><span style="font-family: verdana;">
</span><div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[12] </b>Idem, <i>In Defense of Lost Causes</i> (Londres/Nova York, Verso, 2008), p. 169.</span></span></span></div><span style="font-family: verdana;">
</span><div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[13] </b>Jean-Louis Margolin, </span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">“Cina: una lunga marcia nella note</span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">” (1997), em Stéphane Courtois et. al.,<i> Il libro nero del comunismo. Crimini - terrore - repressione</i> (trad. Luisa Agnese Dalla Fontana, Milão, Mondadori, 1998), p. 456.</span></span></span></div><span style="font-family: verdana;">
</span><div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[14] </b>Giovanni di Lorenzo, </span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">“Verstehen Sie das, Herr Schmidt?</span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">” (entrevista a Helmut Schmidt), <i>Die Zeit</i>, 13 set. 2012.</span></span></span></div><span style="font-family: verdana;">
</span><div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[15] </b>Henry Kissinger, <i>On China</i>, (Nova York, The Penguin Press, 2011), p. 107 e 183-4.<b> </b></span></span><br /></span>
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>[16] </b>Domenico Losurdo, <i>Il revisionismo storico: problemi e miti</i> (Roma/Bari, Laterza, 2015), cap. 6, § 10 [ed. bras.<i>: Guerra e revolução: o mundo um século após outubro de 1917</i>, trad. Ana Maria Chiarini e Diego Silva Coelho Ferreira, São Paulo, Boitempo, 2017].</span></span></span></div>
</blockquote>
<div style="text-align: justify;">
<b></b></div>
= = =<br />
LOSURDO, D. <i><b>O marxismo ocidental:</b> como nasceu, como morreu, como pode renascer.</i> Trad. Ana Maria Chiarini e Diego Silveira Coelho Ferreira. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 165-172.<br />
= = =<br />
</div>
Paulo Ayreshttp://www.blogger.com/profile/05722111703766282633noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6017843677382845935.post-15523458254598982062022-06-27T14:50:00.004-07:002022-10-06T16:23:07.440-07:00O aprendiz de feiticeiro: tradição liberal e fascismo<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhcCaSFyv_Aq-1m5lC85jRHE1TYI-ee-y4homqGrZboZdZT7ASPEsh38S2N645nggTD060ZENiwZUGVTCFBkTZN_JJ88YqD-VXEARVFRjLl3iKfvH-jNVaLTrymE0WZ7U-4fFvW3OxU4oc-lSkV0pP3Oy3uzEfDZj3gmHpmbhGA8TL4IbWkCRFB8g/s1000/Modern%20Irrationalism%20-%20Conservative%20Liberalism%20&%20Fascism%20-%20the-apprentice%E2%80%99s-sorcerer.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="254" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhcCaSFyv_Aq-1m5lC85jRHE1TYI-ee-y4homqGrZboZdZT7ASPEsh38S2N645nggTD060ZENiwZUGVTCFBkTZN_JJ88YqD-VXEARVFRjLl3iKfvH-jNVaLTrymE0WZ7U-4fFvW3OxU4oc-lSkV0pP3Oy3uzEfDZj3gmHpmbhGA8TL4IbWkCRFB8g/w640-h254/Modern%20Irrationalism%20-%20Conservative%20Liberalism%20&%20Fascism%20-%20the-apprentice%E2%80%99s-sorcerer.png" width="640" /></a><br /></div><p style="text-align: right;">por <b>Guy Lancaster</b><br /><a href="https://marxandphilosophy.org.uk/reviews/7742_the-apprentices-sorcerer-review-by-guy-lancaster/" rel="nofollow" target="_blank"><b>Marx and Philosophy</b></a>/2012</p><p style="text-align: justify;">No atual discurso político americano, termos como “liberal” e “fascista” — como “comunista” e “socialista” — há muito tempo foram esvaziados de todo significado substantivo, empregados por comentaristas de direita quase de forma intercambiável para significar ideias ou pessoas que eles consideram repreensíveis. De fato, o livro de Jonah Goldberg de 2008, <i>Liberal Fascists: The Secret History of the American Left from Mussolini to the Politics of Meaning</i>, tentou formular uma taxonomia do fascismo para permitir sua ligação com desdobramentos esquerdistas como feminismo, vegetarianismo, direitos dos homossexuais e até neopaganismo. Enquanto isso, o presidente supostamente “liberal” Barack Obama tem sido frequentemente retratado como o fascista Adolf Hitler e o comunista Joseph Stálin, às vezes no mesmo painel raivoso, como se essas figuras representassem anseios ideológicos idênticos. A compreensão popular do fascismo claramente não melhorou desde o momento em que George Orwell, em “Politics and the English Language” (1946), alertou para os efeitos práticos de transformar tais termos em borrões de Rorschach ideológicos: “Desde que você não sabe o que o fascismo é, como você pode lutar contra o fascismo?” (Menos crucial, pode-se colocar a questão: se alguém acredita que o fascismo gerou os movimentos feminista e de casamento <i>gay</i>, como pode alguém entender o apoio do Vaticano a tantos governos fascistas?)<br /></p><p style="text-align: justify;"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc">Uma correção muito necessária não só para as concepções populares do fascismo, mas também para um registro acadêmico que há muito tempo deturpou o fascismo como uma “terceira via” política entre o capitalismo e o comunismo, </span></span></span><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><i>O aprendiz de feiticeiro</i> [<i>The Apprentice’s Sorcerer: Liberal Tradition and Fascism</i>], de Ishay Landa, argumenta convincentemente que o fascismo tem sua origem na tradição liberal ocidental, embora de uma maneira mais de acordo com a observação concisa de Upton Sinclair: “fascismo é capitalismo mais assassinato”. Landa começa identificando como uma precondição histórica para o fascismo “a tensão inerente entre a dimensão política da ordem liberal e sua dimensão econômica” (21). Ou seja, a burguesia europeia do século XVIII exigiu governos representativos para libertar os mercados do protecionismo feudal, mas eles foram seguidos posteriormente pelas classes mais baixas que, por sua vez, exigiram o acesso a franquear eles mesmos na ordem para proteger seus próprios interesses, colocando o liberalismo econômico original contra o liberalismo político emergente. Enquanto John Locke defendia a democracia como escora do capitalismo, Vilfredo Pareto, cujas obras inspiraram Benito Mussolini, atacou a democracia “inteiramente nas premissas do liberalismo econômico”, como “sua restrição do </span></span></span><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc">‘livre movimento de capital</span></span></span><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc">’ e sua invasão na propriedade privada por meio de tributação progressiva” (53). Linhas de pensamento similares eram correntes entre os pensadores alemães do período entre guerras, principalmente Oswald Spengler, e a animosidade de Adolf Hitler contra a democracia alemã estava baseada na crença de que “a República [de Weimar] significa[va] a interferência política ilegal e perniciosa no economia” (78).</span></span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="background-color: #01ffff;">Para mover melhor o debate para além da visão dominante de “terceira via” do fascismo, Landa conduz uma pesquisa exaustiva do que ele chama de “liberais antiliberais” </span><span style="background-color: #01ffff;">— Arthur Moeller Van den Bruck, Thomas Carlyle, George Sorel e outros </span><span style="background-color: #01ffff;">— examinando como tais críticos ostensivos do capitalismo de fato procuram reforçar a ordem liberal.</span> Por exemplo, Landa argumenta categoricamente que a crítica de Carlyle ao <i>laissez faire</i> se baseia precisamente na observação de que ele “conduz, apesar de si mesmo, à democracia e ao domínio da multidão, destruindo o elitismo”, assim como as posteriores injunções fascistas contra o <i>laissez faire</i> foram empregados “não por entusiasmo revolucionário, mas para evitar a revolução; não para desafiar o capitalismo, mas para estabilizar seu navio; não para facilitar a sociedade sem classes, mas para consolidar as divisões de classe” (156, 157). O tema do declínio da civilização ocidental, tão frequentemente expresso pelos pensadores do início do século XX, regularmente se eleva do desespero pelo envolvimento das massas na política, e Landa encontra em Sorel “não tanto um inimigo do capitalismo, como... um inimigo do <i>capitalismo fraco</i>, dado a buscar compromissos com o socialismo parlamentar que foi uma espécie de economia mista e decadente” (197).</p><p style="text-align: justify;"></p><p style="text-align: justify;"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc">Nos dois últimos capítulos do livro, Landa confronta quatro “mitos” sobre o fascismo. Em relação ao primeiro, de que o fascismo constitui a tirania da maioria, Landa ilustra como os supostos defensores liberais da democracia, de Alexis de Tocqueville a Benedetto Croce, se preocupavam principalmente com a supremacia das classes proprietárias, enquanto outros pensadores como Ludwig von Mises propunham que a ditadura pode ser necessária para defender o liberalismo. Em segundo lugar, contra a noção de que o fascismo promoveu o coletivismo enquanto o liberalismo promoveu a individualidade, o autor observa “que tanto o fascismo quanto o liberalismo foram, de fato, atravessados por uma ambivalência insolúvel em sua abordagem do individualismo” (251-2); na verdade, embora o fascismo empregasse regularmente a retórica do coletivismo (elevando ao mais alto a nação, a raça ou a sociedade), também fetichizou o individualismo na forma do “grande homem” e desmantelou a democracia em nome do individualismo. A origem da “grande mentira” vem ao escrutínio em seguida, e Landa a localiza dentro de uma longa tradição liberal de escrita esotérica que visa apoiar as elites enquanto esconde a verdade das massas “vulgares” e “ingênuas”. Finalmente, no que diz respeito às alegações de que o fascismo constituiu um ataque nacionalista ao cosmopolitismo liberal, Landa constata que os fascistas exibiram algumas das mesmas ambivalências sobre a ideia de nação que eles fizeram sobre o individualismo (afinal, é através das nações que as massas têm seus direitos), embora para a Alemanha a nação forneceu “a plataforma necessária, a partir da qual lança uma campanha de expansão capitalista” (319).</span></span></span></p><p style="text-align: justify;"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc">A abordagem de Landa garante não apenas uma nova conceituação da tradição liberal, mas também </span></span></span></span></span></span><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc">— visto que apresenta uma genealogia do fascismo não utilizada pela maioria dos estudiosos da violência massificada europeia </span></span></span></span></span></span><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc">— uma revisitação de análises anteriores do inter-relacionamento entre fascismo e genocídio. Por exemplo, Aristotle Kallis, em <i>Genocide and Fascism: The Eliminationist Drive in Fascist Europe </i>(2009), prontamente emprega a visão da “terceira via” ao explicar como os regimes fascistas desenvolveram visões utópicas de regeneração nacional que buscavam apagar o passado imediato e redimir o estado-nação, mas a tese de Landa oferece um retrato muito mais rico desse desenvolvimento, pois agora o passado a ser expurgado é reconhecido como o avanço democrático do interesse popular, enquanto o estado a renascer é um de ordem hierárquica e contentamento entre as várias classes quanto ao seu lugar nessa ordem. Além disso, a gama de vítimas, que incluía não apenas judeus, mas comunistas e socialistas, bem como não-produtores (os mentalmente e fisicamente inaptos), faz muito mais sentido se o fascismo for entendido como militante do capitalismo em vez de um conceito intelectual genérico ou anti-ideologia.</span></span></span></span></span></span></p><p style="text-align: justify;"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc">No entanto, alguns trabalhos recentes no campo dos estudos de genocídio complementam a tese de Landa. Christopher Powell, em <i>Barbaric Civilization: A Critical Sociology of Genocide</i> (2011), argumenta que o próprio discurso da civilização realmente aumenta a capacidade de uma sociedade para a </span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc">—</span></span></span></span></span></span> e possibilita o monopólio do estado </span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc">da —</span></span></span></span></span></span> violência, especialmente porque o <i>habitus</i> “civilizado” permite uma fácil “alterização” daquelas populações ou indivíduos que não compartilham tais performances de comportamento civilizado. É claro que um dos marcos da civilização tem sido a economia de livre mercado, e a ausência de tal sistema entre muitos povos do mundo serviu bem para justificar a exploração colonial europeia dos chamados grupos “bárbaros”; muito antes de os líderes europeus do século XIX estarem se preocupando com os feitos dos marxistas, os ingleses na América do Norte condenavam as tendências “comunistas” dos nativos, cuja falta de qualquer conceito de “propriedade privada” os marcava como selvagens. Ainda hoje, entre os herdeiros da tradição liberal ocidental, o capitalismo é equiparado à civilização </span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc">—</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span> as forças ocupacionais americanas no Iraque começaram a privatizar grandes setores do governo no momento em que seus pés tocaram o chão em Bagdá, apresentando isso ao mundo como uma “modernização” da sociedade iraquiana.</span></span></span></span></span></span></span></span></span></p><p style="text-align: justify;"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc">Em seu epílogo, Landa ilustra brevemente como as elites empresariais e governamentais do Reino Unido e dos Estados Unidos realmente simpatizavam com o fascismo, com Winston Churchill até poupando elogios ocasionais a Hitler: “O verdadeiro <i>Sonderweg</i>, ao que parece, não é um caminho alemão, ou um italiano, ou um espanhol, ou um austríaco, mas o caminho do ocidente” (248). Tal expansão da nossa perspectiva está muito atrasada. Em um trabalho recente,<i> Origins of Political Extremism: Mass Violence in the Twentieth Century and Beyond</i> (2011), o cientista político Manus I. Midlarsky coloca o nacional-socialismo alemão, o imperialismo japonês e o islamismo radical sob o microscópio, mas deixa intocadas tamanhas atrocidades como a brutal ocupação britânica da Índia (o modelo ao qual Hitler aspirava), a colonização belga do Congo ou a guerra genocida dos Estados Unidos contra os nativos americanos; mas então, nenhum desses, apesar do número de mortos que rivalizava com o Holocausto, se encaixa em sua definição de extremismo, pois em vez de serem percebidos como fora do centro político de suas respectivas sociedades, descontínuos com a história anterior, os perpetradores dessas atrocidades incorporavam os ideais de suas respectivas sociedades </span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc">—</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span> especialmente a primazia do sistema capitalista. A tese de Landa, portanto, nos permite começar a construir uma estrutura conceitual muito maior de atrocidade massificada e suas origens, revelando a tradição liberal que está não apenas na base do extremismo fascista na Europa, com todas as suas roupagens horríveis, mas também no Destino Manifesto nos Estados Unidos e muito mais. Dentro desse quadro, os ideais e feitos dos fascistas se tornam não tão únicos, nem tão estranhos, mas tudo muito familiar.</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></p><p style="text-align: justify;">Onde Landa ocasionalmente perde o fio de seu argumento é naqueles lugares onde ele traz sua análise para suportar as décadas pós-fascistas (se é que podemos falar de tal). Depois de notar como a retórica fascista sobre o individualismo santificou o sacrifício do indivíduo para o bem maior <span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc">—</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span> “‘o indivíduo’ virá primeiro quando confrontado com a sociedade de <i>massa</i>; mas a ‘sociedade’ virá primeiro, quando confrontada com as demandas dos indivíduos de <i>massa</i>” (255) <span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc">—</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span> ele salta para a administração de Margaret Thatcher, ilustrando a mesma dinâmica em sua retórica, como sua negação dos sem-tetos como um grupo versus o coletivismo dela em convocar o bem maior da sociedade durante a guerra pelas Ilhas Falkland [Malvinas]. Da mesma forma, ao explicar as origens liberais da “grande mentira” fascista, Landa faz um desvio para a sobreposição de teatro e política, especialmente como manifestada na carreira de Arnold Schwarzenegger, contrastando brevemente tais filmes anti-<i>establishment</i> dele,<i> </i>como <i>The Running Man</i> [1987] e <i>Total Recall</i> [1990], de seu mandato pró-<i>establishment</i> como governador da Califórnia.<br /><br /><span style="background-color: #01ffff;">Claro, é um subtexto corrente deste livro que se o fascismo se origina não de um impulso antiliberal e irracional confinado no tempo e lugar, mas sim das próprias contradições construídas na tradição liberal, a tradição pela qual nossas vidas continuam a ser governadas, então o fascismo pode emergir outra vez, talvez se reformulando de novo <span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc">—</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span> ou pode nunca ter desaparecido inteiramente.</span> Nos Estados Unidos, numerosos políticos, suas carreiras financiadas por capitalistas, trabalham abertamente para limitar o poder de voto dos pobres e não-brancos <span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc"><span class="VIiyi" lang="pt"><span class="JLqJ4b" data-language-for-alternatives="pt" data-language-to-translate-into="en" data-number-of-phrases="1" data-phrase-index="0"><span class="Q4iAWc">—</span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span></span> uma solução clássica para a crise do liberalismo. Na escala global, o Fundo Monetário Internacional demanda que as nações do sul global se satisfaçam com sua parte (o contentamento de classe do passado) à medida que privatiza componentes de suas comunidades e lhes despojam de recursos. Podemos dizer que tais medidas evidenciam elementos de um impulso fascista dentro de nossos sistemas políticos e econômicos? Sim, podemos, pois a obra magistral de Landa responde à reclamação de George Orwell, enchendo a palavra “fascista” de significado e poder mais uma vez, para que ela possa ser empregada não como um insulto genérico, mas como uma descrição adequada de quem destruiria a democracia para o benefício do lucro.</p><p style="text-align: justify;">= = =<br /><span style="font-size: small;"><span style="font-family: verdana;"><b>[0]</b> Tradução original da resenha feita por </span></span><span style="font-size: small;"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span style="font-family: verdana;"><a href="http://holocausto-doc.blogspot.com/2014/12/ishay-landa-o-aprendiz-de-feiticeiro-a-tradicao-liberal-e-o-fascismo-o-elo-perdido-dos-liberais-com-o-fascismo-livro.html" rel="nofollow" target="_blank">Roberto Lucena</a> e </span></span>revisão de Paulo Ayres.</span></span><br />= = = </p>Paulo Ayreshttp://www.blogger.com/profile/05722111703766282633noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6017843677382845935.post-9976401544403787802022-06-26T08:00:00.008-07:002022-06-27T16:40:26.844-07:00Capital metafísico: valor e luta de classes em Moishe Postone
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div><div style="text-align: justify;">
<div style="text-align: justify;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhLyIz0Pgy406xd2jzIzCHnpp1VEp47FcOh2JYJkdjYhw-J91c-odaHhdSnrTsN4X-4EpXtbxQQeWzteHNTlzSCE1lhBsO-kWshsnzNeWokMd1plbF0xrtah8CJGWLN6CntIBPRPFUNoi1SvvLKyEMmOkonWapJWwnKk0LZjtl5wYl2FGpDQtAUEA/s1301/Modern%20Irrationalism%20-%20Libertarian%20Socialism%20-%20Protomarxism%20(Philosophy)%20-%20Moishe%20Postone%20-%20Metaphysical%20Capital.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="254" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhLyIz0Pgy406xd2jzIzCHnpp1VEp47FcOh2JYJkdjYhw-J91c-odaHhdSnrTsN4X-4EpXtbxQQeWzteHNTlzSCE1lhBsO-kWshsnzNeWokMd1plbF0xrtah8CJGWLN6CntIBPRPFUNoi1SvvLKyEMmOkonWapJWwnKk0LZjtl5wYl2FGpDQtAUEA/w640-h254/Modern%20Irrationalism%20-%20Libertarian%20Socialism%20-%20Protomarxism%20(Philosophy)%20-%20Moishe%20Postone%20-%20Metaphysical%20Capital.png" width="640" /></a><br /> </div><div style="text-align: right;">por <b>Eleutério Prado</b><br />
<b><a href="http://www.verinotio.org/conteudo/0.4722597212272321.pdf" rel="nofollow" target="_blank">ensaio em PDF</a></b>/2016<br />
</div><div style="text-align: justify;"><i> </i></div><div style="text-align: justify;"><i>Valor, capital e luta de classes em Moishe Postone</i><b> <br /></b></div><div style="text-align: justify;"><b> </b></div><div style="text-align: justify;"><b>Introdução</b><br /></div>
<br />
Uma das principais conclusões de <i>Tempo, trabalho e dominação social</i> de Moishe Postone é a de que a luta de classes entre os assalariados e os proprietários dos meios de produção é completamente interna à relação de capital e que, portanto, ela não engendra e não pode engendrar o socialismo a partir do capitalismo. No penúltimo capítulo do livro, em que diversos arremates são apresentados, isto está dito com bastante clareza:</div><div style="text-align: justify;"><br />
<div style="margin-left: 80px;"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">A interpretação que apresento aqui modifica fortemente a importância central atribuída tradicionalmente às relações de exploração e conflito de classes. Mostrei que, na análise madura de Marx, o conflito de classe é o elemento propulsor do desenvolvimento histórico do capitalismo apenas por causa do caráter intrinsecamente dinâmico das relações sociais que constituem essa sociedade. O antagonismo entre os produtores imediatos e os proprietários dos meios de produção, por si só, não gera essa dinâmica permanente. Além disso, como mostrarei, o sentido lógico da apresentação de Marx não dá suporte à ideia de que a luta entre trabalhadores e capitalistas constitui-se num embate entre a classe dominante da sociedade capitalista e a classe portadora do socialismo </span></span></span><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">—</span></span></span> e de que essa luta, portanto, aponta para além do capitalismo. A luta de classes, vista da perspectiva do trabalhador, significa constituir, manter e melhorar a sua posição e situação como membro de uma classe trabalhadora. (POSTONE, 2014, p. 375) </span></span></span><br /></div></div><div style="text-align: justify;">
<br />
Ora, essa interpretação do sentido da obra madura de Marx está em flagrante conflito com as posições que este autor manteve explicitamente ao longo de toda a sua obra. Note-se que não há nenhuma indicação de que tenha mudado de posição sobre o papel transformador da luta de classes após a publicação do primeiro volume de <i>O capital</i>, em 1867. Por exemplo, na <i>Crítica do Programa de Gotha</i>, escrito em 1875, muitos anos após a obra madura ter começado a ser efetivamente publicada, Marx endossa explicitamente as duas seguintes sentenças clássicas do <i>Manifesto comunista</i>:</div><div style="text-align: justify;"><br />
<div style="margin-left: 80px;"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">De todas as classes que hoje em dia se opõem à burguesia, só o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária. As outras classes degeneram e perecem com o desenvolvimento da grande indústria; o proletariado, pelo contrário, é o seu produto mais autêntico. (MARX, 2012, p. 34)</span></span></span><br /></div></div><div style="text-align: justify;">
<br />
Pode-se discutir se a expectativa e a previsão de comportamento revolucionário da classe trabalhadora, explicitadas nessas duas frases muito significativas, mas nutridas em todo o <i>Manifesto comunista</i>, encontram-se ou não de acordo com a experiência histórica, com aquilo que se observou nas lutas efetivas travadas no desenvolvimento do capitalismo, por exemplo, durante o correr do século XX, em particular nos países do centro do sistema. Um estudo que se dedicasse a esta investigação provavelmente observaria que um comportamento reformista, e mesmo adesista, aparece como predominante na história do movimento dos trabalhadores em geral. Porém, não se pode duvidar de que Marx, mesmo nos estágios avançados de sua reflexão teórica sobre esse modo de produção, tenha considerado sempre, sem quaisquer vacilações, as lutas dos trabalhadores proletários e proletarizados sim, em última análise, portadoras do socialismo. <br />
<br />
<div style="text-align: justify;">
A interpretação de Postone sobre o sentido da crítica de Marx ao capitalismo, no entanto, tendo por referência principal os seus escritos tardios, especialmente os <i>Grundrisse</i> e <i>O capital</i>, chega a uma conclusão oposta; ela suspeita — e mesmo conclui — que os desenvolvimentos teóricos desse autor sejam apenas consistentes com a tese de que as lutas constantes dos trabalhadores pela manutenção e melhora das condições de vida nunca extrapolam — e mesmo não têm nenhum potencial para extrapolar — os limites da relação de capital, da relação entre o capital e o trabalho assalariado. Ora, é preciso descobrir a causa de fundo dessa divergência teórica. Não deveria causar surpresa se ela, ao fim e ao cabo, fosse encontrada em confusões associadas ao método expositivo e ao escopo teórico de <i>O capital</i>. </div>
<br />
Notada essa anomalia na interpretação de Marx, é preciso partir da seguinte alternativa: ou há, de fato, uma incongruência teórica nas teses mantidas por este autor clássico ou a reinterpretação de Postone contém um erro sutil que se afigura difícil deslindar. De qualquer modo, a sua pretensão de apresentar um “verdadeiro Marx”, o qual estaria contido implicitamente nas obras maduras, põe um enigma: por um lado, ela parece ficar em contradição com as posições flagrantes do próprio Marx; mas, por outro, ela pode não se afigurar como absurda já que encontra certa justificação no próprio modo de exposição do conceito de capital em <i>O capital</i>. <br />
<br />
Postone, note-se, não está só nessa divergência em relação ao marxismo clássico, que sempre sustentou a centralidade do proletariado na obra de Marx. Como se sabe, há toda uma corrente teórica contemporânea que se alia até certo ponto a Postone e que vem sustentando a existência de um duplo Marx (HOMS, 2014), um deles estritamente preso à lógica unificadora do capital e outro que se entusiasmou excessivamente com as potencialidades revolucionárias da luta de classes. Segundo Robert Kurz, há em Marx, além de um conceito classista e exotérico de relação de capital, outro que seria monista e esotérico, o qual ele próprio considera muito superior em relação ao primeiro como revelador da natureza do capitalismo. Neste último, a relação de capital é apresentada como “total” já que inclui “todos os membros sociais na mesma forma de fetiche” (KURZ, 2016). <br />
<br />
Ora, não se pode duvidar da seriedade da pesquisa teórica de Moishe Postone — ou de Robert Kurz —, assim como do valor de seu esforço de investigação, que se nutre no fundo do retumbante fracasso do socialismo real e do movimento socialista como um todo na transformação do capitalismo. Contudo, essa dissonância não só existe, mas grita e ecoa no campo do marxismo, pedindo para ser mais bem investigada e, se possível, mais bem esclarecida. Eis que ela implica uma questão teórica, ao mesmo tempo, muito sutil e altamente relevante, algo que não aparece à primeira vista para os eventuais pesquisadores que se interessam pela obra de Postone, assim como, por extensão, pelas obras dos autores da “crítica do valor”. Contribuir, pois, mesmo que seja tentativamente, para mostrá-la e elucidá-la por meio de uma investigação própria, que se vale dos aportes encontrados na literatura, é um desafio que se encontra posto e que pede para ser enfrentado. <br />
<br />
A questão da capacidade transformadora da luta de classes é crucial tanto no plano teórico quanto no plano prático. Se alimenta certas disputas teóricas sobre a obra de Marx, que prima por ser crítica da economia política em geral, repercute também na orientação das lutas sociais. Pois, a própria teoria deste autor clássico é um esclarecimento crítico do modo de produção capitalista que visa a orientar o esforço prático de mulheres, homens e organizações que procuram promover de fato a transformação da sociedade. Essa discordância apresenta, portanto, um problema que tem implicações muito relevantes para os movimentos que não se conformam com as restrições ao desenvolvimento autônomo da vida em sociedade, impostas por este sistema de coerção que se chama de capitalismo. No entanto, em si mesma, remete-se a um problema teórico que tem de ser examinado enquanto tal. Nesse sentido, admite-se aqui que tal problema está inscrito no modo como esse autor contemporâneo, Postone, interpreta as relações de valor e de capital — isto é, o valor e o capital — tal como elas estão apresentadas nas obras já referidas. <br />
<br />
A investigação do tema requer, assim, que se parta da reconstituição feita pelo próprio Postone da crítica de Marx ao capitalismo, visando a expor os pontos fortes e fracos do modo específico por meio do qual ele retoma essas duas categorias centrais da obra marxiana. Para tanto, segue-se um roteiro que tem quatro momentos. Nos dois primeiros, em que se prepara o terreno para uma avaliação dessa reinterpretação, discutem-se dois modos de apreender a categoria de relação, assim como suas implicações. Como se mostrará — e isto tem uma importância crucial na compreensão da teoria de Marx —, a noção de relação pode ser associada apenas à noção de interação ou, de um modo mais profundo, também à noção de estrutura. Havendo apontado que, em Marx, relação é vínculo estrutural que pressupõe certas formas de interação, no momento seguinte, discutem-se as vertentes de Lukács e do próprio Postone no campo do marxismo hegeliano. Finalmente, no último momento do artigo, discute-se a compreensão que este último faz das categorias marxianas de valor e capital. É aí que se pretende revelar a razão de fundo de sua concepção totalizante e integralista de capital. Também se vai mostrar aí que, na verdade, não há de fato uma “incongruência” entre um Marx que se prende à luta de classes e um Marx que se aferra estritamente à lógica do capital. <br />
<b><br />Relação como interação </b><br />
<br />
Segundo Postone, o marxismo tradicional desenvolveu uma interpretação altamente redutora da crítica de Marx ao capitalismo. Para apresentar sinteticamente o que considera ser o núcleo central de um vasto conjunto de reflexões marxistas, nascidas principalmente de leituras simplificadas dos textos de Engels e que prosperaram sem enfrentar grandes objeções até a falência do socialismo real, afirma que elas compreenderam a crítica desse modo de produção fundamentalmente como uma crítica do ponto de vista do trabalho. Tomando o trabalho como uma categoria transistórica, como atividade de apropriação da natureza que se mantém constante em todos os modos de produção do passado, do presente e do futuro, concentraram-se quase que exclusivamente na questão da repartição dos seus frutos nas sociedades que se estruturam com base em classes sociais. <br />
<br />
Nessa perspectiva, julgaram então que o foco central da crítica marxiana era denunciar sempre, em todas as fases da história, a exploração do homem pelo homem. Nesse sentido, a crítica que visava especificamente à sociedade moderna encontrava-se centrada em apontar e elucidar a forma específica que esta exploração aí assumia. Se nas fases imediatamente anteriores do desenvolvimento histórico da sociedade humana, no escravismo e no feudalismo, o trabalho encontrava-se aprisionado em relações de dominação diretas e explícitas, na fase capitalista que os sucedeu ele passava a estar cativo em relações de exploração indiretas e implícitas, as quais se efetivam por meio dos mercados. Nesse diapasão, o capitalismo, como sociedade em que lutam os trabalhadores assalariados e os donos dos meios de produção, vem a ser compreendido sobretudo como um sistema disfarçado de exploração do homem pelo homem. <br />
<br />
Essa interpretação é julgada redutora justamente porque, segundo Postone, ela se concentra na questão do modo como se repartem os frutos do trabalho. Nos modos de produção anteriores, esta repartição estava definida diretamente por meio de regras sociais que diziam quem eram os donos de cada parte ou do todo dos produtos do trabalho, as quais dependiam das relações de dominação que vinculavam as classes. Já no capitalismo, a repartição passou a depender da mediação do valor. E este, na interpretação tradicional, é entendido meramente como um veículo de regulação das interações sociais que se impõe por meio de um processo social cego e, por isso, intransparente para os próprios atores sociais. O valor, nesse sentido, como categoria tipicamente econômica, figura apenas como expressão do tempo de trabalho socialmente necessário para produzir as mercadorias. <br />
<br />
Tomando o termo relação social no sentido de interação social, o marxismo tradicional vê no valor “uma forma exteriorizada de relação social entre os proprietários de mercadorias” (POSTONE, 2014, pp. 62-3). Eis que essa relação não aparece como tal, explicitamente, mas se mostra somente como relação indireta, mediada por coisas, como transação que envolve a troca de mercadorias. A teoria do valor clássica, tal como supostamente apreendida e desenvolvida por Marx, mostra que as transações mercantis obedecem a uma regulação interna, homeostática e invisível para os participantes do mercado. Assim, interpretando o valor como noção explicativa do que ocorre na esfera da circulação de mercadorias, o marxismo tradicional o apreende como aquela categoria que permite compreender o sistema econômico ora existente como um sistema de trabalho em que os produtores individuais, operando isoladamente uns dos outros, vinculam-se multilateralmente a todos os outros por meio das trocas que ocorrem nos mercados. <br />
<br />
Nessa perspectiva, o valor aparece, por um lado, como o fulcro da regulação sistêmica — e, como tal, intransparente — dos mercados e, por outro, como medida social que permite compreender verdadeiramente a repartição da riqueza produzida no modo de produção capitalista. Se os economistas clássicos haviam descoberto já o princípio da regulação social sem a existência de um regulador central, aquilo que Adam Smith designou como “mão invisível”, Marx, aprofundando a teoria do valor de David Ricardo — de um modo mais coerente e profundo do que aquela de seu antecessor —, mostrou, mediante a categoria de mais-valor, que o modo de produção capitalista, apesar da aparência em contrário, está também baseado na exploração do homem pelo homem. <br />
<br />
Eis que nas trocas de mercadorias, como troca de equivalentes, há um tipo de troca em particular que esconde um salto quantitativo. As trocas de capital por força de trabalho, mesmo sendo trocas justas segundo a norma do sistema, encerram uma operação incremental, pois a força de trabalho produz mais valor do que ela própria custa. Eis que o proprietário da mercadoria capacidade de trabalho, depois de vendê-la para o capitalista como assalariado, ao trabalhar para ele, engendra mais valor do que aquele necessário à restauração da própria capacidade de trabalho. O capitalista compra a capacidade de trabalho do trabalhador e não o seu trabalho; o trabalhador, por sua vez, recebe apenas o custo de reprodução da força de trabalho. Logo, esse valor extra, o mais-valor, é apropriado pelo capitalista na forma do lucro. <br />
<br />
Nada indica melhor o caráter limitado dessa maneira de apreender a crítica de Marx ao capitalismo do que o modo como se pensa, a partir dela, a sua superação histórica. Após tomar o valor como uma expressão transistórica do caráter social do trabalho, algo que emergiu de modo generalizado apenas no capitalismo, supõe-se que ele deve ser mantido de algum modo no socialismo. O novo modo de produção deve, portanto, organizar-se ainda com base na regulação do valor, mas não mais de um modo inconsciente tal ocorre na economia mercantil generalizada; ao contrário, a organização da produção, da circulação e, assim, da repartição — que ainda se vale crucialmente da medida do tempo de trabalho e, portanto, do dinheiro como sua expressão —, torna-se consciente, passando a se dar de forma centralmente planejada. <br />
<br />
Essa transformação histórica vem, pois, cumprir duas tarefas históricas: por um lado, mediante a substituição da propriedade privada dos meios de produção pela propriedade coletiva e estatal, criam-se as condições para a superação da regulação anárquica inerente ao capitalismo; por outro, como a própria classe proletária toma o poder de estado, isto muda radicalmente o caráter da repartição do produto social, já que este deixa de se basear na exploração de uma classe por outra. A abolição da propriedade privada dos meios de produção, segundo o marxismo tradicional, é também a abolição da burguesia e a realização do proletariado como categorial social universal — numa sociedade sem classes. <br />
<br />
Em suma, o marxismo tradicional critica o modo de repartição baseado no valor, quando o valor é posto socialmente por meio da economia mercantil generalizada em que se funda o capitalismo, mas não critica o próprio valor e, assim, o trabalho que cria o valor. Postone, argumentando que o valor é uma categoria inerente à sociabilidade capitalista, exclusiva dela e, portanto, historicamente datada, critica este tipo de marxismo justamente porque ele não tem uma atitude crítica em relação ao valor como modo de mediação e regulação social: segundo ele, o marxismo tradicional é “uma crítica do capitalismo do ponto de vista do trabalho”, enquanto que ele apresenta a crítica de Marx como “uma crítica do caráter historicamente determinado do trabalho no capitalismo” (POSTONE, 2014, p. 62). <br />
<br />
<b>Relação como estrutura </b><br />
<br />
É preciso ver neste momento que o marxismo tradicional pensa a mercadoria como mediação social, mas o faz de um modo medíocre, o qual é criticado por Postone. Pois a tradição se circunscreve à compreensão científica do que ocorre na realidade concreta dos mercados, isto é, à apreensão teórica do andamento do processo mercantil que se desenrola de modo interminável diante das pessoas como se fosse um processo natural. Como as trocas se apresentam como interações empíricas, nota apenas, como característica central do que ocorre nessa esfera, que as mercadorias sempre se interpõem entre os proprietários privados. Como essas trocas ocorrem segundo uma lógica própria de movimento, em proporções que os atores sociais não podem controlar senão marginalmente, ela as toma como eventos próprios de uma realidade naturalizada. Ora, para Postone, este modo de apreender a economia mercantil se afigura bem insuficiente, mesmo se aparece como conhecimento comum em todos os textos clássicos de economia política e, portanto, também assim comparece nos textos do próprio Marx. <br />
<br />
Ora, na visão limitada desse marxismo, as interações sociais no capitalismo são mediadas pelas coisas e estas, tal como aparece já na obra dos economistas clássicos, são mercadorias, isto é, unidades de valores de uso e valores, isto é, grandezas objetivas que se manifestam como valores de troca. De acordo com essa visão, que apreende o caráter sistêmico do modo de produção capitalista, as atividades econômicas, entendidas basicamente como interações entre atores econômicos, não se dão de um modo costumeiro, conforme regras dadas pela tradição; ao contrário, elas se dão de um modo que tem certa automaticidade, já que dependem de um funcionamento que esses atores têm de tomar como dado. Nas economias pré-capitalistas, em geral, as interações entre as pessoas, enquanto membros da mesma classe ou de classes diferentes, eram reguladas por práticas e normas consuetudinárias que definiam o modo de produzir e de repartir. No capitalismo, porém, a forma privilegiada de mediação social parece dotada de independência, de um dinamismo próprio, de certa autonomia em relação aos atores sociais que as manipulam. Eis que as mercadorias são produzidas de modo descentralizado, vão aos mercados levadas por seus donos e se interpõem anonimamente entre aqueles que as possuem, participam dos mercados e fazem as trocas. <br />
<br />
O autor de <i>Tempo, trabalho e dominação social </i>considera também o termo mediação a chave para compreender o modo de produção capitalista, mas ele não pode ser entendido apenas como intermediação, como mera interação por meio de coisas. Pois, na verdade, segundo ele, Marx trata o valor não como uma medida genérica da riqueza material presente em diversas épocas históricas, mas como uma forma determinada da relação social no capitalismo e, ao mesmo tempo, como uma forma específica de riqueza que também é inerente ao capitalismo. Pois, quando ele distingue o valor de uso e o valor como determinações da mercadoria em geral, ele distingue também duas formas de riqueza que se apresentam também como duplicidade: uma delas material, que corresponde ao valor de uso, e outra abstrata, que corresponde ao valor. O que deve ficar claro é que o valor, nessa interpretação, é forma de uma relação social típica do capitalismo, a qual deve ser entendida como fundada num vínculo estrutural — e não apenas como aquilo que aparece na interação social entre as pessoas. As relações sociais, portanto, devem ser entendidas como liames constitutivos dos próprios indivíduos sociais aos quais correspondem formas de interação determinadas e que lhes são próprias. <br />
<br />
Apenas nessa perspectiva se pode entender uma afirmação de Postone, segundo a qual “o trabalho no capitalismo é diretamente social porque atua como atividade de mediação social” (POSTONE, 2014, p. 67). Ora, o termo mediação designa aqui um conteúdo da forma assumida pela relação social fundamental do capitalismo enquanto um modo de produção: a forma de mercadoria. É evidente que, para se assenhorear desse ponto teórico, fulcro de sua reinterpretação da crítica marxiana, Postone teve de apreender o conceito de reificação do jovem Lukács, o qual figura como conceito central de sua obra <i>História e consciência de classe.</i> Este último autor, entretanto, não afirma que Marx critica o trabalho no capitalismo, mas sim que critica a sociabilidade que engendra o trabalho alienado; ele crê, por isso, que os trabalhadores podem superar como classe esta situação histórica. <br />
<br />
As mercadorias não são objetos triviais; ao contrário, como Marx já havia dito em <i>O capital</i>, elas são bem enigmáticas; encobrem as relações existentes entre os seres humanos que participam da sociabilidade capitalista porque as apresentam como coisas. Eis, pois, como o filósofo do “marxismo ortodoxo” apresenta o fenômeno da reificação: “a essência da estrutura mercantil se assenta no fato de uma ligação, uma relação entre pessoas, tomar o caráter de uma coisa” (LUKÁCS, 1974, p. 97). É evidente, também, que é o próprio Lukács quem fornece a Postone uma ponte teórica para a formulação explícita de sua tese da historicidade especificamente capitalista da forma valor. O fetiche da mercadoria decorre da reificação e, em consequência, “a questão do fetichismo” — assevera o autor de “A reificação e a consciência do proletariado” — “é uma questão específica de nossa época e do capitalismo moderno” (LUKÁCS, 1974, p. 98). <br />
<br />
Para entender melhor esse ponto é preciso ver que Marx, na seção sobre o fetichismo da mercadoria, não diz que as relações sociais no capitalismo são mediadas por coisas; ele diz que, nesse sistema, isto sim, têm-se “relações sociais entre coisas”. A primeira acepção referida — note-se — seria trivial: eis que toda interação social é sempre mediada por coisas e/ou mensagens. Por exemplo, uma troca de presentes que nada tem, em princípio, de capitalista, consiste de uma interação social mediada por coisas. Por isso mesmo, a compreensão do marxismo tradicional não pode deixar de ser vista como muito pobre. <br />
<br />
Na referida seção, Marx diz explicitamente que, para os produtores mercantis, as relações entre seus trabalhos privados não aparecem como relações diretamente sociais entre pessoas em seus trabalhos; ao contrário, elas aparecem “como relações reificadas entre as pessoas e relações sociais entre as coisas” (MARX, 1983, p. 71). Ora, isso só se torna compreensível quando se entendem as relações sociais como estruturais. Nessa perspectiva, as interações que efetivam essas relações consistem simplesmente no desempenho cotidiano, <i>grosso modo </i>repetido, dos atores sociais em geral, ao longo do tempo e diante das circunstâncias as mais diversas. Note-se, no entanto, que esses atores se encontram implicitamente conectados com base nessas relações estruturais e que elas caracterizam o modo de ser da sociedade. <br />
<br />
A sociabilidade inerentemente capitalista, portanto, interverte as relações das pessoas com as coisas: as pessoas passam a figurar como coisas perante as coisas personificadas e estas assumem o caráter de sujeitos funcionais (mas não de verdadeiros sujeitos; eis que os verdadeiros sujeitos, as pessoas, encontram-se simplesmente alienadas na condição de prisioneiras da lógica do processo mercantil). E assim se revela qual vem a ser, de fato, a crítica central de Marx ao capitalismo: trata-se de um sistema de coerção objetivado que funciona cegamente, que tem uma lógica própria, que atrela os seres humanos ao seu funcionamento automático e que põe a liberdade humana ao seu próprio serviço. Em consequência, no capitalismo, as pessoas não gozam de verdadeira autonomia — apenas da liberdade restringida, utilitária, que é compatível com a reprodução dessa economia mercantil. É precisamente o próprio Marx que diz que, no modo de produção capitalista, é a “relação social entre os próprios homens que para eles aqui assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas” (MARX, 1983, p. 71). Nessa visão, a questão da exploração, por mais importante que seja no quadro teórico desse autor como um todo, assume um caráter subordinado em relação à questão da alienação, do estranhamento e do fetichismo (DUAYER; MEDEIROS, 2015). <br />
<br />
Com base nesse argumento, pode-se dizer, portanto, que a crítica ao marxismo tradicional feita por Postone está bem justificada. Agora, é preciso investigar a sua própria reinterpretação da teoria crítica de Marx para ver se ela é sustentável ou se, ao final, mostra alguma falha capital. E o fulcro dessa nova tentativa de apreendê-la, como ainda se mostrará, encontra-se precisamente em sua compreensão das categorias de valor e capital. É preciso, pois, passar a expor como esse autor as apreende para tentar descobrir a origem da incongruência gritante apontada na introdução deste artigo. Não sem antes deixar uma dúvida também capital: as obras de Postone e do velho Lukács seriam mesmo congruentes, como sustentou Medeiros (2011)? <br />
<br />
<b>Marxismo hegeliano </b><br />
<br />
O marxismo tradicional toma o trabalho como uma constante antropológica, como meio intertemporal de autorrealização do ser humano na história; enxerga, assim, o desenvolvimento das sociedades que existiram no passado mais remoto e das que ainda existem no presente histórico sob o prisma da luta de classes, procurando mostrar, por meio de um esquema dual básico, que elas se baseiam na exploração do homem pelo homem, isto é, na apropriação do trabalho realizado por uma classe subordinada por uma classe dominante. No moderno modo de produção capitalista — e este é um ponto de pulo da crítica marxista —, a exploração não se mostra claramente nas regras explicitamente extorsivas que regem a repartição do produto social, pois se encontra disfarçada nas relações mercantis entre proprietários privados, capitalistas e trabalhadores, que comparecem à esfera em que ocorrem as interações mercantis como pessoas iguais que têm, aparentemente, os mesmos direitos. <br />
<br />
O marxismo de Lukács em <i>História e consciência de classe</i> mantém todas essas teses, mas passa a explicar melhor o velamento a que estão submetidas as reais relações sociais no modo de produção capitalista: ao invés de estarem simplesmente escondidas no funcionamento mercantil, elas estão aí sistemicamente reificadas, isto é, encontram-se contrariadas, negadas enquanto relações. A compreensão da crítica de Marx ao capitalismo, mediante esse aporte teórico, torna-se assim, sem nenhuma dúvida, muito mais profunda, muito mais rigorosa: pois agora se vê que essa “objetividade ilusória, por seu sistema de leis próprio, aparentemente rigoroso, inteiramente fechado e racional, dissimula todo e qualquer traço de sua essência fundamental: a relação entre os homens” (LUKÁCS, 1974, p. 97). Note-se, agora, em adição, que se essa interpretação, por se valer da dialética, vem ultrapassar firmemente o cientificismo inerente ao marxismo ricardiano, ao mesmo tempo em que abre o caminho para uma compreensão da crítica de Marx nos moldes da filosofia da história de Hegel. Como se sabe, é o que faz o próprio Lukács. <br />
<br />
Não há nenhuma dúvida de que a reconstrução do pensamento de Marx apresentada por Lukács na obra aqui já referida, mesmo sendo apenas uma ampla crítica do modo de produção capitalista, está centrada na categoria ontológica de totalidade. Nesse esforço, buscando passar de uma concepção idealista para uma concepção materialista da história, ele mantém firmemente a tese de que “a totalidade concreta é (...) a categoria fundamental da realidade” (LUKÁCS, 1974, p. 24). <br />
<br />
Ora, na filosofia de Hegel, a totalidade é o âmbito onicompreensivo do Espírito. Eis que este abrange toda a realidade natural e social e se desenvolve de modo infinito e contraditório no tempo e no espaço ilimitados. O Espírito é apreendido por este pensador do absoluto como uma substância-sujeito que constitui toda objetividade e subjetividade e se realiza na história do mundo, praticamente, de um modo reflexivo. No seu evolver pregresso, em um tempo imemorial, ele se objetivou e, assim, se alienou de si mesmo, desdobrando-se em sujeito e objeto aparentemente separados; mas, a partir de então, por meio de uma prática recuperadora difícil, complicada e às vezes turbulenta, o Espírito consegue, pouco a pouco, retornar à consciência de si mesmo; por meio da própria filosofia de Hegel, que se vê como apropriação e progresso da história do pensamento relevante, o Espírito, refletindo sobre o seu próprio passado, supera intelectualmente a dicotomia em que se meteu para, finalmente, compreender-se como identidade, como sujeito e objeto idênticos. Ora, esse modelo totalizante da história, marcadamente idealista, é empregado por Lukács para reinterpretar — e reformular — o materialismo histórico. <br />
<br />
Para tanto, ele apreende o trabalho como a atividade formadora por excelência do ser humano social e histórico enquanto tal e, também assim, como o princípio teórico que permite chegar a uma compreensão de seu desenvolvimento como um todo, em todas as suas fases e manifestações. O trabalho aparece em sua teoria, portanto, como o meio pelo qual o ser humano se apropria da natureza e, ao mesmo tempo, como a atividade básica por meio da qual se articulam todas as formas mutáveis da sociabilidade humana. Em consequência, ele é tomado também como o fulcro em torno do qual se dá a divisão da sociedade em classes sociais. <br />
<br />
Lukács, porém, ao se apropriar dessas teses clássicas de Marx e Engels, não as apresentou apenas como fonte privilegiada de uma determinada apresentação crítica da história. Não, ele foi bem mais longe e o fez porque acolheu acriticamente a categoria de totalidade da filosofia de Hegel. Assim, com base nessa premissa fundadora, ele pretendeu resumir e compreender a história humana como um todo e, em particular, a reveladora história do capitalismo. Pois, com ela, são criadas supostamente as condições objetivas e subjetivas para a emancipação do gênero humano. Nessa perspectiva, ele compreendeu o proletariado não só como o advento da classe revolucionária por excelência, mas também como o surgimento finalmente alcançado do sujeito e do objeto idênticos do processo histórico. A alienação que dominara até agora as consciências de todas as classes dominantes e dominadas chegaria, então, ao fim. O proletário, como sujeito histórico, não apenas derrubaria a ordem capitalista, mas, ganhando inexoravelmente uma clara consciência de classe, realizar-se-ia como tal, abolindo as classes. <br />
<br />
Postone desconfia que Lukács, pensando desse modo, não abandona de fato o enfoque hegeliano que substitui os homens reais como sujeitos históricos por num macrossujeito espiritual que se manifesta nas atividades humanas. Na verdade, julga que ele embutiu o conceito de espírito herdado de Hegel num conceito superlativo de trabalho, o qual passou a sintetizar abstratamente a ação prática transformadora de mundo e a consciência deste mundo. A noção de trabalho, de modo constante de apropriação da natureza pelo homem, é inflada ontologicamente, passando a responder pela essência humana. Pois, na verdade, Lukács encara o proletariado não simplesmente como a classe social daqueles que trabalham para a prosperidade da relação de capital na época moderna, mas como, propriamente, a autorrealização de tal essência no tempo histórico. Em consequência dessa percepção, Postone discorda de que a categoria de totalidade, numa perspectiva efetivamente materialista, possa ser usada para apreender a história humana como um todo. <br />
<br />
Ele passa, na verdade, a compreender essa categoria-chave como historicamente específica. Em vez de partir dela para explicar, enfim, também o capitalismo, é o próprio modo de produção capitalista, com o seu modo próprio de ser e de reproduzir, que fornece o real sentido da categoria de totalidade. Marx, segundo Postone, não toma o proletariado como sujeito e objeto idênticos, mas, inversamente, em <i>O capital </i>“caracteriza explicitamente o capital como a substância em processo que é sujeito”. E, ao fazê-lo, “sugere que um sujeito histórico no sentido hegeliano existe realmente no capitalismo” (POSTONE, 2014, p. 96). <span style="background-color: #f4cccc;">O capital, nessa perspectiva, é tomado como um metassujeito que é produto das relações sociais capitalistas, mas que, assim constituído, opera no interior do modo de produção subsumindo integralmente em si mesmo tanto os capitalistas quanto os trabalhadores. Estes passam a ser encarados, estritamente, como suportes das relações sociais, como meros objetos do capital — da relação de capital reificada. </span><br />
<br />
Ora, desse modo, Postone assume que o capital, sem ser verdadeiramente um espírito, apresenta-se, ele próprio, como se fosse algo com natureza espiritual. Na verdade, ele toma o valor e o valor que se valoriza como formas objetivas de pensamento próprias do modo de produção capitalista, supondo que Marx propôs a si mesmo a tarefa de submeter estas formas a uma crítica imanente. É, pois, enquanto expressão de linguagem emergente no processo social que o capital se afigura como substância que se move a si mesma. Assim, em última análise, a substância hegeliana, aquela que está no texto filosófico, passa a aparecer sob nova perspectiva: eis que ela não seria mais do que uma transfiguração do sujeito capital que existe efetivamente na sociedade moderna. O espírito que se desenvolve no mundo histórico, nesse sentido, surge como uma mera mistificação do pensamento especulativo, criada para que assim surgisse mais uma filosofia no âmbito da Filosofia. <br />
<br />
Ao chegar a essa compreensão, ao meditar sobre a plausibilidade dessa transfiguração, fica bem difícil não ser assaltado por uma dúvida crucial. Estará essa associação do capital à substância-sujeito da filosofia da história de Hegel totalmente correta? Ou ela, enquanto homologia conceitual, conteria uma limitação intrínseca, revelando-se, assim, ao final, também como falsa? Não seria apenas porque Postone apreende o capitalismo como se ele fosse guiado por um “espírito”, com base ainda na categoria de totalidade, tomada acriticamente de Hegel, que chega a pensar a luta de classes como interna ao capital e, assim, como incapaz de superar o capitalismo? Ou, inversamente, o que estaria correto é a dissertação que afirma a existência de um duplo Marx? Pois, para o Marx maduro — e, nesse caso, Postone estaria correto —, o capital consistiria mesmo de um sujeito hegeliano? <br />
<b><br />Valor e capital </b><br />
<br />
Postone julga que o seu modo de apreender o valor e o capital pode ser justificado textualmente. Recorda, primeiro, que Marx, em <i>A sagrada família</i>, havia criticado a substância-sujeito, pensada como um espírito absoluto, da filosofia de Hegel, por se tratar de uma mera “hipóstase teórica”. Porém, na verdade, é preciso ver que a crítica ali desenvolvida vai bem mais longe porque aponta para uma inversão: supor o Espírito como o verdadeiro sujeito da história faz que os sujeitos reais apareçam como meros suportes, isto é, “faz com que, dentro da história empírica, exotérica, se antecipe uma história especulativa, esotérica”. Dito de outro modo, em vez de pôr os homens como os verdadeiros sujeitos da história, mostra que a “humanidade apenas é uma massa que, consciente ou inconscientemente, lhe serve de suporte” (MARX; ENGELS, 2003, p. 102). <br />
<br />
Em <i>O capital</i>, porém, Marx passou a pensar de modo diverso. Ele teria se apropriado inteiramente (e este último advérbio deve ser tomado aqui como muito significativo) dessa construção especulativa, mostrando que ela não seria mais totalmente imaginária, já que, ao contrário, teria uma base bem real no interior do processo de reprodução do modo de produção capitalista. Eis que aí, como bem se sabe, ele identifica o trabalho humano abstrato a uma substância, dizendo explicitamente que o trabalho é a substância do valor. <br />
<br />
No capítulo primeiro da obra, “A mercadoria”, por exemplo, ele chama o trabalho abstrato de “substância constituidora do valor”, escrevendo também que, “como cristalizações dessa substância social comum a todas elas [isto é, as mercadorias], são elas valores — valores mercantis” (MARX, 1983, p. 47). Mais do que isso, nessa obra ele, segundo Postone, trata o capital com uma substância-sujeito hegeliana, pois, no capítulo que discute a transformação do dinheiro em capital, “Marx descreve o seu conceito de capital em termos que se relacionam claramente com o conceito hegeliano de <i>Geist</i>” (POSTONE, 2014, p. 96). E a afirmação de Postone não deixa, de início pelo menos, de parecer plausível quando se toma clara consciência do modo pelo qual Marx apresenta o capital como valor que se valoriza. Para descrever a dialética objetiva do capital em processo de autodesenvolvimento, eis bem o que ele escreve: o valor, agora,</div><div style="text-align: justify;"><br />
<div style="margin-left: 80px;"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">passa continuamente de uma forma para outra, sem perder-se nesse movimento, e assim se transforma num sujeito automático (...). De fato, porém, o valor se torna aqui o sujeito de um processo em que ele, por meio de uma mudança constante das formas de dinheiro e mercadoria, modifica a sua grandeza, enquanto mais-valor se repele de si mesmo enquanto valor original, se autovaloriza. Pois, o movimento, pelo qual ele adiciona o mais-valor, é o seu próprio movimento, sua valorização, portanto autovalorização. Ele recebeu a qualidade oculta de gerar valor porque ele é valor. (...) [Como valor], ele se apresenta subitamente como uma substância em processo e semovente e para qual mercadoria e dinheiro não são mais do que meras formas (MARX, 1983, p. 130). </span></span></span><br /></div></div><div style="text-align: justify;">
<br />
Segundo Postone, assim, “Marx sugere que um sujeito histórico no sentido hegeliano existe realmente no capitalismo, sem que se possa identificá-lo com nenhum grupamento social, como o proletariado ou a humanidade” (POSTONE, 2014, p. 96). Em consequência — e esta deve ser inferida aqui sem que ele a tenha dito explicitamente —, tem-se de chegar a uma conclusão extremamente forte que parece negar a tese de Marx segundo a qual os homens reais são os sujeitos da própria história. Eis que eles a fazem, mas apenas como “quase marionetes” do capital. Pois, <span style="background-color: #f4cccc;">se o capital é um sujeito hegeliano pleno, então, o proletariado apenas se torna uma massa que, consciente ou inconscientemente, serve de suporte ao sujeito hegeliano efetivamente existente no capitalismo, ou seja, o capital. O ser emancipado possível que mora no proletariado e que, eventualmente, emerge na história é confundido com o proletariado em sua prática cotidiana e utilitária; o trabalhador enquanto suporte é identificado à pessoa do trabalhador que luta contra o capital de um modo que pode se transformar em revolucionário.</span> <br />
<br />
A tese de Postone pode, agora, diante dessa explicitação, começar a parecer implausível. De qualquer modo, é precisamente esta enormidade que orienta no fundo toda a reinterpretação do autor clássico desenvolvida por ele em <i>Tempo, trabalho e dominação social</i>. <br />
<br />
Antes de tratar a questão com mais profundidade, deve-se ver de modo preliminar que Marx chama o capital de “sujeito automático” e não de “bom infinito”. E que somente sendo “bom infinito” é que lhe conviria totalmente a categoria de totalidade tal como fora proposta por Hegel. Em sentido próprio, o sujeito capital, sendo automático, não pode conter em si mesmo, como momentos próprios e perfeitamente integrados, nem os possuidores da força de trabalho nem a natureza; ao contrário, como uma totalidade falsa, ele apenas os subordina sistemicamente para poder explorá-los. Dito de outro modo, sem integrá-los verdadeiramente, o capital subsume a si mesmo os homens que aliena e as coisas que lhe interessam, com o fim de dar continuidade ao seu próprio processo de autorreprodução — mas não o faz como um dominador totalitário que fecha toda e qualquer possibilidade de emancipação. Na verdade, em <i>O capital</i>, se a classe trabalhadora está subordinada ao capital, se está aí posta apenas como classe trabalhadora, aí, também, ela está pressuposta como classe que pode transcender a si mesma e que é capaz, portanto, da luta revolucionária. <br />
<br />
A totalidade em Marx, portanto, é formal e não pode ser confundida com a totalidade em Hegel. Ora, esta interpretação encontra apoio num texto de Jorge Grespan, segundo o qual “o capital se apresenta (...) como uma totalidade estabelecida formalmente, sendo pela formalidade desta subordinação que ele domina as condições de sua própria valorização e se apresenta como o ‘sujeito’ desse processo” (GRESPAN, 2009, p. 35). <br />
<br />
Nesse momento, é preciso lembrar que Marx tratou o trabalho humano abstrato de um modo paradoxal. Por um lado, diz que ele é “uma simples gelatina de trabalho humano indiferenciado”, isto é, algo que surge do “dispêndio da força de trabalho humana, sem consideração pela forma como foi despendida”; mas, por outro, diz também que se trata de algo que tem uma “objetividade fantasmagórica” e, portanto, que não tem verdadeiramente a objetividade da substância tal como esta foi pensada de Aristóteles a Hegel. Segundo Postone, porém, essa associação do trabalho abstrato ao antigo conceito de substância encontra-se no próprio texto de Marx, já que ele teria empregado esse termo no sentido filosófico tradicional. No primeiro capítulo de <i>O capital</i>, ele teria argumentado, por meio de uma dedução “descontextualizada e essencializante”, que as “várias mercadorias têm de ter um elemento não material em comum”. E que, portanto, este elemento, o valor, é “expressão de uma substância comum a todas as mercadorias” (POSTONE, 2014, p. 167). Ele sugere, nessa perspectiva, que Marx concebeu essa substância como causa de si mesma (<i>causa sui</i>), de um modo apropriadamente metafísico, já que se tratava de apreender e criticar a metafísica inerente e constitutiva do próprio modo de produção capitalista. <br />
<br />
Segundo Dardot, a tradição filosófica iniciada na Grécia antiga, em especial com Aristóteles, conservou o termo “substância” atribuindo-lhe dois significados básicos, muito próximos um do outro: o que subsiste sob os atributos ou acidentes e aquilo que lhes serve de substrato. É apenas na época moderna que ganha, com Descartes, o sentido de “<i>causa sui</i>” e, com Hegel, de sujeito que se desenvolve dialeticamente. De todo modo, segundo esse autor, e ele parece ter razão, nenhum desses dois significados básicos convém ao uso que Marx faz desse termo, pois “nem o trabalho social nem o valor são essência [no sentido aristotélico] da mercadoria” (DARDOT, 2014, p. 138), pois não podem ser pensados como “suporte” ou “substrato” das qualidades sensíveis que caracterizam a mercadoria enquanto um objeto duplo. Ao contrário, é o valor de uso da mercadoria que dá suporte à forma de valor e, assim, ao valor de troca; é o sensível que dá suporte ao suprassensível. Ademais, se Postone estivesse certo, seria preciso supor que “o trabalho constitui as relações sociais ao invés de estar fundado por elas” (DARDOT, 2014, p. 139). <br />
<br />
A conclusão desse questionamento apresentado por Dardot mostra- se devastadora para a reinterpretação que Postone faz da crítica marxiana:</div><div style="text-align: justify;"><br />
<div style="margin-left: 80px;"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">Desse ponto de vista, não é anódino que Postone compreenda a fórmula do Capítulo IV do Livro I de <i>O capital </i>sobre a aparência assumida pelo valor como “uma substância em processo, que se move a si mesma” como uma caracterização explícita do capital “como substância que se move e que é sujeito”. Com toda a evidência, é denunciada aqui a lógica própria do recurso à categoria metafísica de <i>causa sui</i>: quando Marx procura demonstrar que o capital, quando apreendido na esfera da circulação, tem a aparência de uma relação imediata consigo mesmo, Postone vê aí uma compreensão da realidade atual do próprio capital. Se este é o caso, se o capital assume mesmo todas características da <i>causa sui</i> metafísica, observa-se logo uma consequência: passa-se a ver mal como a luta de classes pode se contrapor à lógica do capital e, muito menos ainda, como ela poderia revertê-la. Ademais da função particular do modo de deduzir o valor no Capítulo 1, compreende-se agora que a concepção de valor como suporte de qualidades sensíveis, que a concepção do trabalho abstrato como autofundação, que a concepção de totalidade social capitalista como <i>causa sui</i>, todas elas estão, em Postone, intimamente ligadas: são os dois sentidos do conceito de substância herdado da tradição da metafísica (independência do que subsiste e fundamento-suporte do que não subsiste por si) que essa leitura projeta indevidamente sobre o texto de Marx. (DARDOT, 2014, p. 140) </span></span></span><br /></div></div><div style="text-align: justify;">
<br />
Logo, o valor não é uma essência metafísica e, portanto, não é também uma substância no sentido tradicional. Mas, então, o que ele é? Desde logo, é preciso perceber que, na esteira da teoria de Marx, também não se pode concluir que vem a ser “coisa material”, não metafísica. <br />
<br />
O valor é simplesmente uma medida que, como toda medida, provém de uma operação de redução, a qual, como esclareceu suficientemente Ruy Fausto, não deve ser confundida imediatamente com uma generalização (FAUSTO, 1983, pp. 90-102). Ora, para Marx, a redução operada pelo próprio processo social em que se produzem as mercadorias engendra e cristaliza o valor, em suas determinações qualitativa (de trabalho abstrato) e quantitativa (de tempo de trabalho socialmente necessário), a partir dos trabalhos concretos que duram sempre, em sua enorme variabilidade, tempos concretos diversos. É assim, portanto, que simplesmente se explica a referência de Marx ao gasto fisiológico de energia humana — àquilo que há de comum nos diversos trabalhos concretos — como fonte do valor. Esse gasto que se dá no tempo é apenas o suporte natural e transistórico da operação de redução que põe social e historicamente o valor. <br />
<br />
Essa operação, diuturnamente ocorrente na realidade efetiva do modo de produção, comensura as mercadorias, de um modo que é mesmo social e histórico, anônimo e inconsciente, envolvendo as esferas da produção e da circulação. Se o gasto fisiológico de energia humana é o que dá suporte a essa medição, a base efetiva do processo de redução é o próprio processo de reprodução das relações sociais que constituem e fazem subsistir esse modo de produção ao longo de um determinado período histórico (PRADO, 2013). Marx emprega o termo substância em sentido crítico para ressaltar a existência efetiva, o caráter objetivo, mas suprassensível, do valor. Como diz Fausto, ao fim e ao cabo, ele é uma “coisa social”. E, nesse sentido, o valor, assim como o capital, tem mesmo algo de metafísico. É bom pensá-lo, por isso, como uma ilusão real que apreende de fato, mas apenas até certo ponto, os seres humanos ao seu movimento insaciável. <br />
<br />
Muitos autores pensam que trabalho abstrato em Marx é uma noção que designa o “dispêndio de força humana de trabalho em sentido fisiológico”. Ora, nessa linha de interpretação, concebe-se simplesmente o trabalho abstrato como o gênero dos trabalhos concretos. Postone não cai nesse erro primário. Porém, ele concebe o trabalho abstrato, para além do gasto fisiológico de energia humana, como posição social e objetiva do gênero simplesmente: “A categoria de trabalho abstrato exprime esse processo social real de abstração; ele não se baseia simplesmente em um processo conceitual de abstração. Como prática que constitui uma mediação social, o trabalho é trabalho em geral” (POSTONE, 2014, p. 178). Nessa perspectiva, ele entende a apreensão do trabalho abstrato como trabalho fisiológico como uma decorrência do fetiche da mercadoria: aquilo que é histórico aparece, assim, como transistórico. Ao se identificar o trabalho fisiológico com trabalho abstrato, o suporte da forma é tomado com a própria forma. <br />
<br />
O verdadeiro erro de Postone, herdado de Lukács, é não ter se desembaraçado da categoria hegeliana de totalidade. Quando Marx faz a crítica da apresentação da história feita por Hegel como mistificação, ele também, necessariamente, considera a sua ideia de totalidade uma mistificação. Mas Postone parte dela para compreender o capitalismo como uma estrutura total de mediação pelo trabalho, como uma totalidade social: essa</div><div style="text-align: justify;"><br />
<div style="margin-left: 80px;"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">forma social é uma totalidade porque (...) é constituída por uma “substância” geral e homogênea que é o seu próprio fundamento. Uma vez que a totalidade é autofundamentada, automediada e objetivada, ela existe quase independentemente. (...) O capitalismo, tal como analisado por Marx, é uma forma de vida social com atributos metafísicos </span></span><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">— os atributos do sujeito absoluto” (POSTONE, 2014, p. 183). </span></span></span><br /></div></div><div style="text-align: justify;">
<br />
Se assim fosse, então, não seria mais preciso se preocupar com a questão clássica sobre “o que fazer?” Mas, por outro lado, isto seria absurdo! Ainda não foi explicado, contudo, porque a posição de Postone — e de Robert Kurz — se afigura como plausível para muitos. É que ela parece estar mesmo implicitamente contida na obra madura de Marx. Ora, aqui vai se argumentar que o próprio modo de exposição de<i> O capital</i> enseja essa ilusão. Pois, como também esclareceu Fausto, as classes sociais são apresentadas “em inércia” n’<i>O capital </i>(FAUSTO, 1987, pp. 201-4). Ora, ora, essa afirmação, que revoltou muitos militantes da “causa operária”, não deveria causar tanto espanto. Ela não advém de uma faustiana traição ao caráter revolucionário da obra de Marx. Pois as classes estão em inércia em <i>O capital</i> por uma necessidade metodológica; trata-se simplesmente de colocar entre parênteses o lado ativo da luta de classes para poder expor o capital como um sujeito automático, tal como está indicado no começo da obra, isto é, precisamente, no capítulo que trata da transformação do dinheiro em capital. Aquilo que é apenas uma pressuposição metodológica é tratado por aqueles autores como uma posição fundamental que precisa ser retirada como uma preciosidade esotérica do esterco exotérico que suja a verdadeira obra de Marx. Esta joia é falsa; é do esterco que nascem as transformações. O que eles perdem, assim, é a eficácia histórica possível dessa obra que, apesar dos infortúnios dos marxismos, continua assombrando a vida social contemporânea. <br />
<br />
= = =<b><br />Referências bibliográficas </b><br />
DARDOT, P. “La valeur n’est pas une substance”. In: MARTIN, E.; OUELLET, M. (Ed.). <i>La tyrannie de la valeur. </i>Montreal: Ed. Éconsociété, 2014, pp. 118-44. <br />
DUAYER, M.; MEDEIROS, J. L. “Marx, estranhamento e emancipação: o caráter subordinado da categoria de exploração na análise marxiana da sociedade do capital”. In: NEVES, R. B. D. (Org.) <br />
<i>Trabalho, estranhamento e emancipação. </i>Rio de Janeiro: Consequência, 2015. <br />
FAUSTO, R. <i>Marx:</i> lógica e política t. I. São Paulo: Brasiliense, 1983. <br />
______. <i>Marx: </i>lógica e política t. II. São Paulo: Brasiliense, 1987.<br />
GRESPAN, J. “Uma teoria para as crises”. In: SAMPAIO, P. de A. (Org.). <i>Capitalismo em crise. </i>São Paulo: Sunderman, 2009, pp. 29-44. <br />
HOMS, C. “Algumas divergências entre Moishe Postone e a <i>Wertkritik</i>”. <i>O olho da história</i>, n. 21, dez. 2014. <br />
KURZ, R. O pós-marxismo e o fetiche do trabalho. 2003. Disponível em: <http://obeco.planetaclix.pt>, acessado em 29 ago. 2016. <br />
LUKÁCS, G. <i>História e consciência de classe: </i>estudos de dialética marxista. Porto: Publicações Escorpião, 1974. <br />
MARX, K. <i>O capital: </i>crítica da economia política v. I t. I. São Paulo: Abril Cultural, 1983. <br />
______.<i> Crítica do Programa de Gotha.</i> São Paulo: Boitempo, 2012. <br />
______; ENGELS, F. <i>A sagrada família. </i>São Paulo: Boitempo, 2003. <br />
MEDEIROS, J. L. “Postone contra ou com Lukács? Por uma reinterpretação de Marx”. <i>Margem Esquerda</i>, n. 16, jul. 2011. <br />
POSTONE, M. <i>Tempo, trabalho e dominação social:</i> uma reinterpretação da teoria crítica de Marx. São Paulo: Boitempo, 2014. <br />
PRADO, E. F. S. “A emergência social dos preços”. <i>Economia </i>(Anpec), v. 14, n. 1b, maio-ago. 2013. <br />
______. “Valor e capital em Moishe Postone”. <i>O olho da história</i>, n. 22, abr. 2016. <br />
= = = <br />
<blockquote class="tr_bq">
<span style="font-family: verdana;"><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>Resumo: </b>O artigo apresenta uma crítica à tese de que se pode falar de um duplo Marx: um deles, esotérico, que teria exposto rigorosamente a lógica do capital como substância-sujeito do capitalismo, e um outro, exotérico, que teria tratado a luta de classes como motor da superação do capitalismo. Argumenta que esta tese é errônea porque se funda no conceito hegeliano de totalidade. O conceito marxiano de totalidade, ao contrário deste último, põe a contradição </span></span><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">— e não a identidade </span></span><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">— como essência do devir. </span></span><br />
<br />
<span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>Palavras-chave: </b>duplo Marx; valor e capital; crítica do valor; Moishe Postone. </span></span><br />
<br />
<span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><i>Value, capital and class struggle in Moishe Postone</i></span></span><br />
<br />
<span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>Abstract:</b> The article presents a critique of the idea that one can speak about a double Marx: one, esoteric, that would have exposed strictly the logic of capital as substance-subject of capitalism and another, exoteric, which would have treated the class struggle as engine of the overcoming of capitalism. It argues that this view is wrong because it employs the Hegelian concept of totality. The Marxian concept of totality, unlike the latter, puts the contradiction </span></span><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">— not identity </span></span><span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif">— as the essence of becoming.</span></span><br />
<br />
<span style="font-size: small;"><span face=""verdana" , sans-serif"><b>Keywords: </b>double Marx; value and capital; critique of value; Moishe Postone.</span></span></span></blockquote>
= = =<br />
PRADO, E. F. S. “Valor, capital e luta de classes em Moishe Postone”. In: <i><b>Verinotio</b></i>. Ano XI, out/2016, n. 22, p. 100-119.<br />
= = =</div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"> </span></div>
Paulo Ayreshttp://www.blogger.com/profile/05722111703766282633noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6017843677382845935.post-88467888609314361042022-06-18T16:00:00.007-07:002022-06-18T16:04:24.788-07:00Resposta leninista ao esquerdismo da Escola de Maceió<div style="text-align: center;"><iframe allow="accelerometer; autoplay; clipboard-write; encrypted-media; gyroscope; picture-in-picture" allowfullscreen="" frameborder="0" height="315" src="https://www.youtube.com/embed/p6Yhbej_QTA" title="YouTube video player" width="560"></iframe><br /></div>
<div>
<div style="text-align: right;"> </div><div style="text-align: right;">por <b>José Paulo Netto</b></div>
<div style="text-align: right;">Unesp-Marília/2009</div>
<div style="text-align: right;">
= = =</div>
</div>Paulo Ayreshttp://www.blogger.com/profile/05722111703766282633noreply@blogger.com0