terça-feira, 23 de julho de 2019

Lukács e a sociologia

 
por José Paulo Netto
ensaio em PDF 

As especificações entre o marxismo e a sociologia parecem constituir, no interior mesmo de um dúplice processo de crise (a crise do movimento comunista internacional e a crise das ciências sociais particulares), o núcleo de uma tematização cujas implicações trans­cendem os parâmetros puramente teóricos e cuja relevância pode adquirir um sentido sociopolítico dos mais efetivos.

O problema colocado por estas relações específicas — que são, ao nível da realidade sociocultural, incontestáveis — propõe o debate na ins­tância da metodologia e da perspectiva da eficácia histórica, envolvendo necessariamente o estatuto de cientificidade das operações analíticas. Assim, torna-se antologicamente risível a postura da ciência oficial, que visualiza a contribuição sociológica de Marx como um simples “determinismo eco­nômico”[1] e, progressivamente, cometimentos como o Colóquio de Cerisy afirmam-se como vias mais objetivas para o encaminhamento da questão[2].

Ora, a verdade é que a investigação sistemática daquelas relações de­ manda um esforço crítico capaz de aprender não somente os modelos de gnose social desenvolvidos pela teoria marxista (em suas vertentes alter­nativas) e pela reflexão sociológica (em suas várias modalidades), bem como a função social por elas desempenhada e suas possíveis mútuas inter­ferências. Mais do que isto, coloca-se a urgência de pesquisar, concreta­ mente, o complexo sociocultural de que derivam, marxismo e sociologia, como respostas à problemática macroscópica posta pela sociedade capi­talista.

No atual estágio das pesquisas, sabe-se que este projeto é tarefa cole­tiva de cientistas sociais, filósofos e historiadores; tarefa tão árdua quanto inadiável e que, no entanto, mal se inicia por agora. Talvez seja útil, por­ tanto, o trabalho prévio que, incidindo sobre momentos determinados do processo global, possa oferecer um material joeirado que balize o trata­mento ulterior sistemático a que deverá ser submetida a totalidade do fenômeno.

Nesta ótica, deve ser privilegiado o estudo do posicionamento de Georg Lukács, quer pelo fato de ele encarar o rigor da ortodoxia meto­dológica marxista, quer pela razão de ele ter polarizado, em tomo de  suas proposições, positiva ou negativamente, os segmentos mais significativos do pensamento contestador europeu.

Não pretendendo mais que sugerir as bases para esta análise, o pre­sente ensaio requer-se uma abordagem introdutória que, enfocando as re­lações de Lukács para com a sociologia, não deixe de mão os mínimos graus da rigorosidade crítica.

Lukács e o marxismo

Não cabe aqui o escorço da biografia intelectual de Georg Lukács (Budapeste, 1885-1971)[3]. Importa apenas retomar o essencial de sua evolução, com vistas à compreensão da gênese e do desenvolvimento da sua concepção do marxismo.

O complexo trajeto de Lukács, arrancando do neokantismo de Hei­delberg (a “escola do sudoeste alemão”, onde pontificavam Windelband e Rickert, oposta à “escola de Marburgo”, liderada por Cohen e Nathorp) e alcançando o marxismo pela via de um peculiar hegelianismo, foi objeto de inúmeras interpretações.

Segundo Ludz, ele comporta cinco etapas: a primeira (1907-1912) é assinalada pela influência do neoplatonismo, da “filosofia da vida” e do neokantismo; a segunda (1914-1926) mostra-se marcada pelo neo-hegelianismo; a terceira (1926-1933) coincide com a derrota de suas Teses de Blum[4] e com o início de seu exílio na URSS; a quarta (1933-1953) se singulariza pela adoção da perspectiva leninista; a quinta e última (cujo marco se localiza na rebelião húngara de 1956) indicaria uma flagrante crítica ao estalinismo[5].

Goldmann, escrevendo ainda na década de 50, propõe uma seriação mais simples — a evolução de Lukács compreenderia três períodos: 1.°) “pré-marxista”, tipicamente kantiano; 2.°) “marxista revolucionário”, cuja obra-mestra é História e consciência de classe; 3.°) “estalinista”, iniciado em 1938[6].

Uma aproximação mais adequada à questão — e que foi esboçada por Parkinson[7] — deve partir do artigo autobiográfico publicado por Lu­kács na Internationale Literatur, em 1933[8]. Neste texto, intitulado Meu caminho até Marx, o pensador húngaro indica que o trânsito que realizou, do neokantismo ao neo-hegelianismo (ou, em suas palavras, do “idealismo subjetivo” ao “idealismo objetivo”), tem por marco a crise aberta pela Primeira Guerra Mundial: foi o neo-hegelianismo que lhe forneceu a chave para uma nova leitura de Marx, fortemente “esquerdista”, e da qual resul­taram a sua adesão ao Partido Comunista Húngaro (dezembro de 1918) e o livro “renegado” História e consciência de classe. A militância na clandestinidade e o exílio conduziram-no a uma autocrítica, e o estudo da obra de Lênin terminou por levá-lo à aceitação integral dos materialismos dialético e histórico, consubstanciados nas obras dos clássicos (Marx, En­gels e Lênin).

É tomando-se por base este texto e indicações implícitas ou claras, pessoais ou de analistas qualificados, em obras, prefácios e entrevistas, que me parece possível compreender a evolução de Lukács segundo o esquema abaixo:

a) período neokantiano (1907-1914): marcado pela influência de Simmel, Weber e da “escola do sudoeste alemão”; a produção lukacsiana se volta para a análise das formas culturais, especialmente o  teatro e a poesia, bem como para reações anímicas niilistas;

b) período pré-marxista (1914-1918): rompimento com o período anterior, sob o signo de Hegel, com  a assunção da lógica dialética; a preocupação esteticista cede lugar à historicização de categorias estéticas;

c) período marxista, comportando a seguinte diferenciação:
  • primeira fase (1919-1923): adoção do marxismo sob a forma de his­toricismo abstrato, embasando um voluntarismo revolucionário fortemente assimilado de Rosa Luxemburgo;
  • segunda fase (1924-1933): da condenação de História e consciência de classe, passando pela apresentação das Teses de Blum, ao exílio na URSS e ao estudo do leninismo; a reflexão lukacsiana sofre uma paragem ao nível filosófico, inflexionando-se ao sentido da crítica literária;
  • terceira fase (1933-1945): etapa de permanência na URSS, lutas intra-partidárias e mobilização total contra o nazi-fascismo; os trabalhos de Lukács centram-se sobre arte e literatura, embora, secretamente, prepare os materiais que constituirão sua obra sobre Hegel[9]
  • quarta fase (1945-1956): do retorno a Budapeste à participação no Levante de Outubro; etapa de vasta publicação referente à literatura e a problemas filosóficos, bem como de crítica oblíqua ao estalinismo;
  • quinta fase (1956-1971): última etapa de sua aventura intelectual, centra-se na elaboração sistemática da sua Estética, na produção avulsa de crítica literária e política e na constituição da sua Ontologia do ser social[10].
A complicada e tortuosa evolução de Lukács[11], quando tomada epi­sodicamente, conduz a repúdios extremamente contraditórios, ainda que efetuados em nome do marxismo: ora “intelectual de extração burguesa”, ora “filósofo do estalinismo”, ora “dogmático”, ora “revisionista”, Lukács foi, neste século, o alvo predileto dos ataques das facções engendradas pelos descaminhos da Revolução. Mas o fato mesmo de não haver um só pensador significativo da Esquerda que não haja dialogado, positiva ou negativamente, com a sua obra — de Korsch a Adorno, de Brecht a Bloch, de Revai a Althusser, de Sartre a Lefebvre, de Cases a Kofler — atesta a fecundidade do seu contributo.

O essencial, no estudo desta evolução, é ressaltar que as rupturas nela existentes são intrinsecamente dialéticas, no sentido de constituírem supe­rações com conservações. No correr de sua longa atividade intelectual, Lukács manteve sempre uma continuidade dialética que, nos seus suces­sivos trânsitos, conservou, enriquecido e ampliado, um núcleo fundamental básico. Mészáros equacionou corretamente o problema: “As principais linhas esquemáticas de uma ideia sintetizadora fundamental podem estar presentes, ou melhor: têm que estar presentes, na mente de um filósofo quando este desenvolve, num texto determinado, algumas de suas impli­cações concretas em contextos particulares. É claro que uma tal ideia “pôde experimentar transformações importantes; os próprios contextos particula­res exigem constantes reelaborações e modificações, conforme as carac­terísticas específicas das situações concretas a que se referem. Mas nem mesmo uma conversão autêntica do ‘idealismo’ ou ‘materialismo’ implica necessariamente que se rechace ou reprime radicalmente a ideia sinteti­zadora original. (...) Por isto, não se pode entender adequadamente o pensamento de um filósofo sem alcançar, através dos seus vários extratos, aquela síntese original que o estrutura dialeticamente, em todas as suas manifestações sucessivas”[12],

A matriz original que vai penetrar todas as etapas da reflexão de Lu­kács parece-me ser a questão, vocacionalmente sociocêntrica, da apro­priação da dinâmica histórica pelo homem concreto. Ou, se se quiser, a inserção de um sentido humano concreto na evolução social.

Não se trata de uma questão estritamente sociológica ou filosófica, fundada num impulso primordialmente ético: trata-se, antes, da determi­nação de uma teleologia histórica pluridimensional radicalmente antropoló­gica (e, consequentemente, antropocêntrica e antropomórfica). O problema desborda uma nucleação específica, configurando-se como um projeto to­talizante e imanentemente histórico, inserido em coordenação simultanea­mente social e universalizante.

Durante seu período neokantiano, esta problemática transparece em Lukács como revolta filosófica — e impotência tragicamente desesperada — diante da decomposição sócio-ético-cultural operada pelo capitalismo. Os dilemas entrevistos na relação d’A alma e as formas[13] comprovam que o âmbito da questão foi tão descentrado — reduzido que está a rea­ções anímicas atemporais — que não permite qualquer alternativa que transcenda limites esteticistas.

A descoberta de Hegel e o reconhecimento de uma legalidade histórico-racional independente do sujeito cognoscente abrem a via à primeira fase do seu período marxista. Restringindo a dialética exclusivamente ao domínio da história[14] e tornando identidade a unidade sujeito-objeto no processo de conhecimento sócio-histórico (que, assim, é autoconhecimento), Lukács elabora os “ensaios de dialética marxista” que constituirão sua obra mais célebre, História e consciência de classe[15]. Deixando de mão os equívocos posteriormente apontados pelo próprio autor, História e cons­ciência de classe é uma construção teórica fascinante na medida mesma em que Lukács — contra a maré-montante do determinismo da Segunda Internacional — concebe o marxismo sob um duplo aspecto: de um lado, a metodologia justa para o conhecimento do universo social capitalista; doutro, a convocação à consciência (social) para, à base daquele conhe­cimento, transformar este universo. Ao nível metodológico, ele reintroduz a categoria da totalidade como pedra angular da gnose social e a mediação como operação decisiva nesta gnose; ao nível do apelo ideológico, realiza petições éticas que deságuam em questões práticas, como a da organização do movimento revolucionário. Com tais pressupostos, sugere-se que o sen­tido histórico é introduzido pelo proletariado como classe para si, cujo êxito é variável dependente das estruturas de sua consciência de classe.  O dever ser histórico que se encarna na ação da classe social, porém, é dissolvido num historicismo abstrato que nem mesmo com o apelo à práxis se resolve num estatuto de concreticidade. Daí o messianismo voluntarista das concepções ativistas que evolam da obra, cujo substrato real era a crença na eclosão, a curtíssimo prazo, da Revolução Mundial.

As lições da história, o duro aprendizado do leninismo e as condições adversas da emigração na URSS[16] deixam, nesta terceira fase, à produção explícita de Lukács, apenas as questões referentes à arte e à literatura. As concepções que então desenvolve — sobretudo os conceitos de realismo e tipo  — revelam claramente a matriz original atrás mencionada. É num ensaio deste período que escreve: “A origem e o desenvolvimento da lite­ratura e da arte são uma parte do processo histórico total da sociedade. A essência e o valor estético das obras literárias, bem como a sua eficácia, são parte do processo social geral e unitário pelo qual o homem faz seu o mundo através de sua consciência”[17]. E a adoção da epistemologia leninista (que, obviamente, implica fundamentos outros além da famosa “teoria do reflexo”) opera-se concomitantemente à nova leitura de Hegel: é então que Lukács corrige a sua concepção de movimento histórico, tor­nando-a mais complexa e inclusiva. Desta conjunção deriva uma percepção mais arguta do específico estético e a motivação ética que animava suas obras anteriores se determina historicamente, concretizando-se no conceito de humanismo. Este último aspecto é de importância medular: o conhe­cimento aprofundado de Hegel, conjugado à análise dos materiais acumu­lados pelo “jovem” Marx, permitirá a Lukács uma reelaboração dos conceitos-chave de História e consciência de classe — alienação e reifica­ção —, agora reorientados sobre a base do processo do trabalho como via da humanização — trata-se mesmo do momento em que Lukács co­meça a apreender as implicações mais profundas do fenômeno que é a práxis (mas a explicitação desta apreensão só se fará sentir com evidência na sua última fase)[18].

A quarta fase do período marxista de Lukács, iniciada no pós-guerra — a que, com uma ingenuidade só  explicável pelas tarefas políticas ime­diatas requeridas pelo horizonte ideológico centro-europeu, ele pensava suceder uma etapa histórico-universal de democracia e progresso social —, prolonga essencialmente a fase anterior. Publicando textos referentes a seus estudos realizados durante o conflito, ele continua a mover-se no campo  da crítica literária e filosófica, incursionando, vez por outra, no domínio direto da política cultural. A emergência da Guerra Fria — outra lição que a história lhe dá — força-o a uma resposta intelectual: estabelecendo a relação entre reação e irracionalismo, pesquisa os caminhos que per­mitiram ao nazifascismo imergir na tragédia do obscurantismo boa parte dos herdeiros da chamada civilização ocidental — daí surge o áspero A destruição da razão, balanço notável e discutido da cultura europeia, espe­cialmente a alemã, descrevendo a trajetória do irracionalismo, de Schelling a Hitler.

A quinta e última fase da reflexão lukacsiana se abre com a desestalinização e a falência do monolitismo comunista — crises que se entrecruzam no Levante de Budapeste, do qual participa o filósofo. Após um breve exílio na Romênia, Lukács vê-se completamente marginalizado da vida política e formalmente obsequiado com uma situação de otium cum dignitate que lhe permite integral dedicação a seus trabalhos intelectuais. Esta última etapa de sua reflexão, indiscutivelmente a mais rica, concentra-se num gigantesco esforço para repensar sua própria obra e o marxismo numa perspectiva que revigora e desenvolve os resultados positivos de seus trajetos ideológico e político. É a época em que conclui a primeira parte da sua monumental Estética e prepara os materiais básicos da sua Onto­logia do ser social. Procurando reunir os principais frutos de sua evolução filosófica, de sua ética e de sua estética, fá-lo com a restauração das dimensões fundamentais do projeto revolucionário de Marx. Seus textos desta fase derradeira constituem a quintessência de uma metodologia vigo­rosamente dialética, onde os problemas da historicidade concreta, da ma­nipulação social, da alienação, da práxis, do humanismo, do trânsito ao comunismo, da salvaguarda dos valores culturais do passado e da demo­cracia socialista são enfocados na instância de uma antropologia que só se estatui à base de uma ontologia materialista. Aqui, a identificação do sentido que pode ser instaurado pelo homem no processo histórico não se dilui na abstrata força de uma necessidade histórica transcendente aos ato­res sociais, nem se articula sobre uma noção ética imperativa em si mesma: a possibilidade de introduzir na história a diretriz humana rompe o âmbito da antropolatria racionalista e, sem perder o seu conteúdo prometéico, se fundamenta nas virtualidades alternativas contidas no bojo dos próprios processos históricos que se problematizam pela intervenção consciente de grupos e classes sociais.

Ao cabo desta evolução, Lukács situa-se no interior do marxismo de modo sui generis. Seu posicionamento se perfila mediante uma dupla recusa: a) a recusa da redução do marxismo a uma filosofia da história, que pode embasar uma sociologia e uma história abstratas; e b) a recusa da redução do marxismo a uma epistemologia, que pode embasar a forma­lização de um pensamento indiferente e manipulador, muito próximo a cer­tas versões do neopositivismo.

Assim é que se compreende o isolamento de Lukács[19] entre os de­senvolvimentos da “escola de Frankfurt” e as pesquisas dominantes na URSS (das quais Kopnin é expoente), e que têm simetrias no  Ocidente (Althusser é o exemplo mais evidente). Por outro lado, o tônus decidida­ mente clássico que penetra sua obra — já se mencionou a sua “Olímpica serenidade” — incompatibiliza-a com o efervescente neo-romantismo que parece responder às ideologias de segurança típicas do capitalismo tardio (algo da produção de Lefebvre se incluiria aqui). Ademais, a síntese alcan­çada pela sua restauração da integridade do projeto marxista desautoriza quer a convocação puramente ética do socialismo (nas versões do gênero último Garaudy), quer a glorificação da ascese e do voluntarismo, frequentemente associada ao fatalismo econômico (nas versões vulgarizadas do maoísmo).

A compreensão de sua posição, marxista se torna mais clara se con­siderarmos que, na totalidade da sua evolução, ocorreram de fato duas inflexões nodais: a primeira, entre 1914-1918, quando se assenhoreou, mesmo insuficientemente, da concepção dialética; a segunda, entre 1933-1945, quando assumiu o essencial do leninismo. Estas duas viragens, con­tudo, só vieram a contribuir para o aprofundamento da matriz original que sempre travejou o seu compromisso intelectual: com Hegel, Lukács apren­deu que a evolução social deve ser focada ao nível histórico-universal; com Lênin, assumiu o marxismo como legatário da cultura humana anterior. Pôde ele formular, pois, uma versão do marxismo que se propõe como consciência social que viabiliza o trânsito entre a “pré-história humana” (mais que o “reino da necessidade”) e o “reino da liberdade” no qual o homem se plasma plasmando o movimento histórico.

Lateralmente, não é irrelevante mencionar a relação do marxismo de Lukács com os dramas políticos atuais do socialismo. Constatando-se o crônico irrealismo de Lukács ante problemas políticos imediatos[20], é sur­preendente a sua lucidez ao analisar e diagnosticar a atualidade crítica do movimento comunista internacional. Apresentando interpretações muito pe­culiares do estalinismo, Lukács nega-se a coonestar pura e simplesmente a esquemática teoria do “culto à personalidade”, bem como se recusa ao apressado enterro de um processo político cujas raízes não foram extir­padas. A sua solidão política, entre os “duros” e os “liberais”, tem um valor simbólico: só ele repôs, na ordem do dia da discussão sobre a democracia socialista, a renovada restauração dos conselhos populares.

A crítica da sociologia

As relações do Lukács marxista para com a sociologia foram sempre negativas, não importando que, desta negação, brotassem alternativas tipi­camente sociológicas (como é o caso da “escola de Frankfurt”, veio de­senvolvido e tardio de tendências contidas em História e consciência de classe, ou ainda da “sociologia do romance”, de cunho goldmanniano). Aluno de Simmel, amigo de Max Weber, líder de um grupo intelectual do qual participava Mannheim, a formação de Lukács foi haurida com a constituição da sociologia alemã — a única, aliás, com a qual polemizou[21].

Com o interesse restrito apenas à abordagem introdutória a esta polê­mica, vou prender-me aos dois momentos mais significativos da crítica lu­kacsiana, não sem recordar que Lukács, quase meio século depois, forneceu a chave para a denúncia metodológica do neokantismo sociológico de Heidelberg, ao esclarecer que as investigações se faziam ali “a partir de alguns traços característicos de uma orientação, de um período etc., to­mados com frequência de modo puramente intuitivo, feriando sintetica­mente conceitos gerais com os quais se atingia dedutivamente os fenômenos singulares com a pretensão de assim se alcançar uma grandiosa visão de conjunto”[22].

A dialética contra a sociologia

A primeira reação crítica de Lukács à sociologia configura-se no seu livro mais discutido, História e consciência de classe. Sua posição, aí, foi adequadamente percebida por Rusconi: “A contraposição entre ‘socio­logia’ e ‘concepção dialética’... não é uma distinção de âmbitos ou de discursos autônomos e complementares, mas uma exclusão recíproca”[23].

Com efeito, dois são os alvos prioritários de Lukács nesta obra. Em primeiro lugar, o marxismo específico da Segunda Internacional  — que ele denomina marxismo vulgar — , que reduzia o projeto marxiano a uma sociologia. Em segundo lugar, todo o aparato teórico-crítico de lavra weberiana. Se o fogo crítico se concentra sobre o empirismo e o positi­vismo, a argumentação básica se dirige aos dois núcleos sociológicos ci­tados: contra ambos se coloca a exigência radical do método dialético na pesquisa sócio-histórica, mas a modalidade desta exigência se propõe diferencialmente. A diferença radica na própria divergência dos dois modelos, embora a essência das reflexões seja complementar, pois se trata, antes de mais, da defesa da ortodoxia marxista — que é, medularmente, uma ques­tão de método.

Contra o marxismo vulgar, Lukács opõe a petição dialética da tota­lidade: “Não é a predominância dos motivos econômicos na explicação da história que distingue, decisivamente, o marxismo da ciência burguesa — é o ponto de vista da totalidade”[24]. A limitação do marxismo vulgar, que o conduz ora ao sociologismo, ora ao economicismo, reside na sua insufi­ciência metodológica, no abandono da componente marxista que deriva de Hegel; eis que a “semelhança profunda do materialismo histórico com a filosofia de Hegel aparece no problema da realidade, na função da teoria como conhecimento da realidade por ela mesma” (HCC, 35).

No entanto, para os objetivos deste ensaio, o essencial é a crítica à sociologia de Weber, que, embora sem ser explícita, atravessa as melhores páginas do livro. Posto que não seja este — fundamentalmente por razões de espaço — o lugar para determinar a continuidade que pode se verificar entre a tematização de Weber e a de Lukács em História e consciência de classe, interessa ressaltar que, na ótica lukacsiana, o trabalho de Weber aparece como a última palavra da “ciência burguesa”, incapaz de atingir o real conhecimento da sociedade.

Não se trata, apenas, para Lukács, de apontar o conteúdo adialético da metodologia de Weber. O problema fundamental reside na perspectiva social do autor d’A ética protestante e o espírito do capitalismo.

De fato, para Lukács, o conhecimento social correto só é viável com o capitalismo: “é somente sobre o terreno do capitalismo... que é possível reconhecer na sociedade a realidade” (HCC, 40). E somente  na sociedade burguesa que “o homem torna-se... ser social, a sociedade torna-se a realidade para o homem” (HCC, 40). Na sociedade burguesa, portanto, se opera a totalização do universo social; ora, o seu conhecimento só pode ser obtido “com o ponto de vista do proletariado”, para o qual “a totali­dade da sociedade se torna visível” (HCC, 40).

A problemática sociológica de Weber pode ser, e quase sempre o é, legítima. Mas a aceitação de formas imediatas da objetividade social faz com que sua análise não supere a aparência reificada dos fenômenos: co­mo a perspectiva de Weber não é revolucionária, ela não transcende a própria determinação social do capitalismo. Ou, segundo Lukács: reco­nhecendo “como fundamento do valor científico o modo como os fatos são imediatamente dados e como ponto de partida da conceptualização científica sua forma de objetividade, esta ciência se coloca simples e dogmaticamente sobre o terreno da sociedade capitalista, aceitando sem crítica sua essência, sua estrutura objetiva, suas leis...” (HCC, 25). Mesmo sem levantar a questão dos tipos-ideais, Lukács obliquamente remete à sua li­mitação ao colocar o problema da compreensão unitária do processo his­  tórico: uma formalização deste gênero faz com que “a relação com a realidade histórica... apareça como um problema metodologicamente inso­lúvel” (HCC, 30). Consequentemente, é possível que se “compreenda e descreva de modo essencialmente justo um fenômeno histórico, sem, por isto, se ser capaz de tomá-lo no que ele realmente é, em sua função real no interior do todo histórico a que pertence... (HCC, 31).

A crítica de Lukács à sociologia weberiana é aparentemente dupla: de um lado, sua metodologia é reprochada pela ausência de enfibramento dialético; doutro, afirma-se a sua incapacidade de apreender as reais co­nexões histórico-sociais. Esta duplicidade se resolve na consideração de que as fragilidades se devem à perspectiva do analista: falta-lhe o ponto de vista de classe (proletário), que lhe permitiria atingir a totalidade so­cial: “A totalidade só pode ser colocada se o sujeito que a coloca é ele mesmo uma totalidade... Este ponto de vista da totalidade... somente as classes o representam na sociedade moderna” (HCC, 49).

Ao negar o acesso da sociologia weberiana à realidade social, Lukács não faz mais que lhe contrapor um historicismo abstrato. Não é acidental, pois, que ele não problematize os aspectos particulares do pensamento de Weber. Opondo ao metodologismo formal weberiano uma rigorosa deter­minação classista da ciência social, Lukács apenas abriu o caminho para um sociologismo que não resolveu a questão que ele mesmo colocou: a de um conhecimento totalizante da sociedade[25], A crítica concreta a Weber ainda esperaria quase trinta anos.

A sociologia contra a história

A segunda reação crítica de Lukács à sociologia reveste-se de singular importância. Em primeiro lugar, trata-se de uma visão histórica da evo­lução da sociologia, tomada como vertente ideológico-cultural que tenta responder às propostas do marxismo e à emergência do socialismo. Em segundo lugar, é fruto de um pensamento lukacsiano já corrigido pelas lições históricas do fracasso da Revolução Mundial e pela compreensão do leninismo. Pode-se, pois, considerar esta reação como a mais sistemática formulada pelo professor de Budapeste, exatamente em A destruição da razão[26] (não vou me deter na apreciação lukacsiana sobre os sociólogos cuja produção correspondeu diretamente ao nazifascismo, nem sobre os representantes do darwinismo social).

Lukács situa a sociologia como ciência típica da etapa de decadência da burguesia, iniciada em 1848[27]: “a sociologia, como disciplina inde­pendente, surgiu na Inglaterra e na França com a dissolução da economia política clássica e do socialismo utópico, que eram, ambos, cada um a seu modo, doutrinas que abarcavam a vida social e se ocupavam com os problemas essenciais da sociedade, em conexão com as questões econô­micas condicionantes” (DZDV, 471).

Na medida em que se retiram da economia clássica inferências revo­lucionárias (sobretudo as implicações da teoria do valor/trabalho) e na medida em que o utopismo do socialismo idealista transita para reivindi­cações práticas, o pensamento burguês articula soluções capazes de obstaculizar a síntese teórica desta situação, que se estrutura no marxismo. Tais soluções se agrupam em torno da especialização da economia, que passa a ser uma disciplina profissional de estreito âmbito e “temática muito limi­tada, que renuncia de antemão a explicação dos fenômenos sociais e se propõe como tarefa central fazer desaparecer do campo da economia o problema da mais-valia”, e em torno da sociologia, que “nasce como ciência do espírito, à margem da economia” (DZDV, 471). Assim, a emergência da sociologia como ciência autônoma expressa uma resposta burguesa aos problemas colocados pelas contradições do capitalismo que envereda para o estágio do imperialismo.

A base da sociologia é, pois, regressiva, o que se evidencia quando se percebe que sua fundação sobre as ciências naturais objetiva “exata­mente eliminar... o caráter contraditório do ser social, ou seja, a crítica a fundo do sistema capitalista” (DZDV, 472). Eis porque o progressismo inicial dos primeiros sociólogos é sincrônico à “burguesia que co­meça a deslizar pelo limbo do declive ideológico”: é um progressismo “que conduz a uma sociedade capitalista idealizada, na qual se vê o ápice do desenvolvimento da humanidade” (DZDV, 472). Mesmo esse pro­gressismo, porém, se revela frágil diante da ameaça socialista e, consequentemente, o “agnosticismo social, como forma de  defesa de posições ideológicas irremediavelmente condenadas, adquire... um estatuto metodológico que funciona inconscientemente” (DZDV, 473).

Numa palavra: a sociologia se constitui como disciplina particular precisamente para, alienando da problemática social o fundamento econô­mico, fortalecer a configuração ideológica burguesa na sua luta contra o socialismo. Ela passa a ser, ao mesmo tempo, um dos mais vigorosos ins­trumentos da apologia indireta do capitalismo: não assume a sua defesa explícita, mas descarta a alternativa possível da sua transformação radical. A sociologia não revela apenas a impossibilidade de um conhecimento so­cial verdadeiro por parte da burguesia: revela o interesse socialmente ne­cessário da burguesia em evitar este conhecimento. A nova ciência se operacionaliza com o objetivo, consciente ou não, de conservar o status quo — é utilizada contra o movimento histórico que solapa as bases da dominação burguesa. Em suma, Lukács vê na sociologia um meio pelo qual a burguesia luta contra a marcha da história.

É sobre tais premissas que ele analisa o essencial do pensamento sociológico alemão anterior a 1945. A avaliação da obra de Toennies é sintomática do estilo crítico-metodológico adotado; a análise desta obra pode ser sumariada em quatro reproches: 1.°) ela dissolve as concretas relações econômicas; 2.°)  ela volatiliza as formações sócio-históricas reais; 3.°) um princípio subjetivo (a vontade) é introduzido na base da estru­tura social; 4.°) a objetividade econômico-social é substituída por um anticapitalismo romântico[28].

O reencontro com a sociologia de Weber se dá mediante ásperas operações críticas. Indicando o caráter antidemocrático da visão de mun­do weberiana — que não passa de um cesarismo bonapartista —, Lukács observa o conteúdo da sua metodologia, que sintetiza posturas neokantianas com as da “filosofia da vida”: “o formalismo extremo..., o relati­vismo e um agnosticismo extremos... que... se amalgamam numa mís­tica irracionalista” (DZDV, 493). A tarefa essencial de Weber seria “encontrar uma teoria para explicar a gênese e a natureza do capitalismo e ‘superar’ o materialismo histórico neste terreno, mediante uma concepção teórica própria” (DZDV, 488). Ou seja: “compreender... a essên­cia do capitalismo sem entrar em seus verdadeiros problemas econômicos (sobretudo a mais-valia e a exploração)” (DZDV, 490). Ressaltando o talento e a honestidade peculiares a Weber, Lukács nota que sua socio­logia, cujos resultados “terminam sempre na demonstração da impossibi­lidade econômica e social do socialismo” (DZDV, 490), “só pode chegar, com suas generalizações, a simples analogias abstratas (DZDV, 495); isto se deve a que a metodologia de que resultam os tipos-ideais “não fornece uma linha de desenvolvimento, mas simplesmente a justa­ posição de uma série de tipos-ideais casuisticamente escolhidos e orde­nados” (DZDV, 494). Enfim, “as categorias sociológicas de Max We­ber... não expressam mais que a psicologia, abstratamente formulada, dos agentes individuais calculadores do capitalismo” (DZDV, 495). Ou, conclusivamente: “o irracionalismo é a forma que adota... a tendência de escamotear a solução dialética dos problemas dialéticos. A aparente cientificidade, a rigorosa ‘liberdade de valores’ da sociologia é, portanto, na realidade, a mais alta fase até agora alcançada do irracionalismo” (DZDV, 497).

A etapa seguinte da argumentação lukacsiana se ocupa da fragili­dade da “sociologia liberal” de Alfred Weber e Karl Mannheim.

Frisando que em A. Weber o irracionalismo atinge uma graduação inédita, com a sociologia assumindo uma metodologia basicamente intuicionista, Lukács vê nele o modelo do intelectual que, sem condições de “uma luta efetiva contra a reação... se limita a sonhar com a permanência da ‘estabilização relativa’” (DZDV, 511). Sua “sociologia da cultura abertamente mística e intuicionista” (DZDV, 511) abre o caminho para a sociologia do conhecimento de Mannheim, que, arrancando em­bora do materialismo histórico, emascula-o, miscigenando-o ao existen­cialismo e à “filosofia da vida”, do que resulta o espúrio relacionalismo. Denunciando a fraqueza da concepção que engendrou o mito da “inte­lectualidade livre”, Lukács aponta a única postura definida do autor de Ideologia e utopia: o pavor à “democratização radical da sociedade, [à] eliminação real das forças do  capital monopolista” (DZDV, 517). O “ponto de vista tão extremamente formalista” de Mannheim “só permite atingir uma tipologia abstrata (DZDV, 515); daí que o resultado de suas investigações seja paupérrimo, a sociologia do conhecimento ofere­cendo “pouco mais que uma atualização da teoria weberiana do ‘tipo-ideal’” (DZDV, 515).

É com tais antecedentes metodológicos e ideológicos que a sociologia vai sofrer, nas mãos de Othmar  Spann, H. Freyer e C. Schmitt, as adap­tações necessárias ao serviço do nazi-fascismo.

O legado lukacsiano para a ciência social

É perfeitamente compreensível que a negativa relação de Lukács para com a sociologia tenha se operado sempre ao nível metodológico: esta é a instância essencial do estatuto da ciência social, e é dela que derivam todas as outras questões significativas. Contudo, o fenômeno se explica por outras razões. Já observei que toda a obra lukacsiana está vocacio­nada para levantar a possibilidade da intervenção efetiva do agente humano no processo sócio-histórico, numa práxis cuja teleologia seja elevada ao nível da consciência. Procede da medula da reflexão lukacsiana, pois, o aguçado interesse pelas modalidades teóricas através das quais as classes e seus ideólogos elaboram os esquemas conceituais que possam guiar seu comportamento concreto — daí, inclusive, a valorização que sofre, na lente lukacsiana, a função do conhecimento e seus sujeitos. A problemática me­todológica exerce, na crítica lukacsiana, o papel central: é tão ou mais importante averiguá-la que ajuizar resultados[29]. Nisto, aliás, localiza-se uma perfeita congruência com o projeto científico de Marx: considerando-se que a legalidade histórica é específica de períodos históricos deter­ minados, a tarefa primária não consiste no enunciado desta legalidade, mas, antes, na elaboração dos instrumentos capazes de desvendá-la. Só mesmo uma concepção pragmática do marxismo pode pretender a inversão deste projeto.

Por outro lado, a redução da polêmica ao procedimento metodológico qualifica o seu âmbito restrito. Porque não se pode negar que grande parte do impulso metodológico da sociologia contemporânea se  irradia pre­cisamente dos modelos criticados por Lukács. Mesmo aquelas tendências modernas que, à primeira vista, escapam da análise explícita de Lukács, são, na verdade, objeto de notações críticas que, embora laterais, dimen­sionam o seu equivocado posicionamento. Com efeito, o neo-empirismo que vicia boa parcela da sociologia acadêmica recebe seu quinhão crítico: “Evidentemente, todo conhecimento da realidade parte dos fatos. Trata-se apenas de saber quais dados da vida merecem (e em que contexto meto­dológico) ser considerados fatos importantes para o conhecimento” (HCC, 22). E indicando o contrabando ideológico praticado por todo empiris­mo: “Não se vê que a mais simples enumeração de ‘fatos’, a justaposição mais isenta de comentários é já uma ‘interpretação’; não se vê que, a este nível, os fatos já são tomados a partir de uma teoria, de um mé­todo, que são abstraídos do contexto da vida... e inseridos no contexto de uma teoria” (HCC, 22).

Com igual clareza se compreende porque Lukács se relaciona com a sociologia em dois momentos bem determinados da sua evolução, em 1923 e em 1953[30]. Nos dois casos, Lukács polemizava em duas frentes: contra certas tendências do pensamento burguês e contra certas defor­mações do marxismo. A unidade deste combate só é paradoxal se consi­derada superficialmente; em profundidade, a questão é só uma: o res­gate do projeto marxista de “somente uma ciência, a ciência da história”[31]. Se isto é evidente para a primeira polêmica, não o é tanto para a segunda, mas basta evocar o voluntarismo econômico e a ausência de mediações que fundou o taticismo da era estalinista  para que a leitura de A des­truição da razão adquira um sentido crítico elíptico, além das necessárias citações de Stálin. Ora, precisamente a sociologia oferecia-se como objeto privilegiado, nos dois casos: primariamente porque constituía uma res­posta burguesa a candentes problemas sócio-históricos; secundariamente por­ que os ecos da crítica retornavam ao interior do movimento socialista. Realmente, denunciar o imediatismo metodológico da sociologia era abrir à crítica tanto o sociologismo de Bukhárin (o que podia ser feito às claras) quanto o praticismo de Stálin; denunciar o compromisso ideoló­gico da sociologia era vulnerabilizar tanto o revisionismo de Bernstein (o que devia ser feito abertamente) quanto o caráter apologético da ciência social-estalinista.

A atualidade científica do legado de Lukács, neste domínio, reside, porém, noutra instância — exatamente aquela que retoma a noção de “somente uma ciência, a ciência da história”. Quando os cientistas sociais desengajados do establishment começam a descobrir que a sociologia não tem passado de sociografia, que a história não tem passado de historio­grafia, que a economia não tem passado de econometria, e assim por dian­te, e quando a totalidade restaura sua prioridade pelos interstícios de um conhecimento que se estilhaçou em saberes compartimentalizados  — então o legado  lukacsiano se insere como um cânone para a ciência social. De fato, a enérgica recusa de Lukács à sociologia é a recusa de um saber social singularizado: a pretensão sociológica de um objeto específico autô­nomo é fundamentalmente equívoca.

Na hora em que este equívoco se desnuda e os velhos territórios cien­tíficos se desmoronam, o texto lukacsiano retoma então uma meridiana legibilidade: “O isolamento — por abstração — de elementos, tanto de um domínio de pesquisa, quanto de grupos particulares de problemas ou de conceitos no interior de um domínio de pesquisa, é certamente inevitável. Mas o que é decisivo, no entanto, é saber se este isolamento é apenas um meio para o conhecimento do todo, ou seja, se ele se integra sempre num correto contexto de conjunto que pressupõe e a que se prende, ou se o conhecimento — abstrato — do domínio parcial isolado conserva sua ‘auto­nomia’, permanecendo um fim em si” (HCC, 48). Mais ainda: é nesta hora em que o cientista social redescobre a vinculação do seu ofício com a alternativa da libertação do homem concreto que a determinação lukacsiana do substrato social da ciência readquire integral oportunidade: “Não há nenhuma ideologia ‘inocente’” (DZDV, 4).

A “ciência da história” como ciência social unitária retorna como pro­jeto possível, não sobre a base de uma totalidade posta pela intelecção, mas como resultante de uma ontologia do ser social, compreendido em sua espe­cificidade abrangente[32]. O método emergente é o histórico-sistemático, vale dizer, “uma concepção que seja historicista sem cair no relativismo e que seja sistemática sem ser infiel à história”[33]. Mais concretamente, este mé­todo, cuja exigência de princípio (ontológico) é a consideração da socie­dade como “um complexo composto de complexos[34], implica a pesquisa  genética: “devemos tentar pesquisar as relações nas suas formas fenomênicas iniciais e ver em que condições estas, formas fenomênicas podem tornar-se cada vez mais complexas e mediatizadas”[35].

Com tais parâmetros, a ciência social reencontra — para além de distinções determinadas por uma divisão do trabalho intelectual deformadora e alienante — a sua matrização originária, de gnose unitária da his­tória, gnose que viabiliza um alto conhecimento humano, gnose que se instrumentaliza como componente fundamental na práxis mediante a qual o homem se instaura como autor de sua livre socialidade.

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Notas
[1] N. Timasheff, Sociological theory (its nature and. growth), New York, Ran- dom, House, 1955. Neste alentado volume, menos de três páginas são dedicadas a Marx!
[2] Entre 14 e 21 de setembro de 1968, o conselho de redação da revista parisiense L’homme e la société (editada pela Anthropos) organizou em Cerisy- -la-Salle um colóquio centrado nas relações entre Marx e a sociologia. O número 10 da revista (outubro-novembro-dezembro de 1968) publicou as intervenções efetuadas no encontro.
[3] Apesar dos tratamentos diferentes que deram às ideias de Lukács, entre nós, pensadores como Antônio Cândido, José Guilherme Merquior, Guerreiro Ramos, Nelson Werneck Sodré, Wamireh Chacon, Roberto Schwarz, entre outros, a verdade é que as referências mais importantes, no Brasil, se esgotam nos textos de Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho. Além dos vários ensaios, já traduzidos, de Lucien Goldmann, há a consultar, em português, apenas dois livros: o de Francisco Posada, Lukács, Brecht e a situação atual do realismo socialista (Rio de Janeiro, ed. Paz e Terra, 1970) e a lamentável obra de G. Lichtheim, As ideias de Lukács (S. Paulo, ed. Cultrix, 1973). Dentre a numerosa bibliografia estrangeira, ressalte-se: H. Arvon, Lukács (Paris, éd. Seghers, 1968); E. Bahr, La pensée de Lukács (Toulouse, éd. Privat, 1972); G. H. R. Parkinson, org., Georg Lukács: the man, his work and his ideas (London, ed. Weidenfeld and Nicolson, 1970; há edição espanhola: Barcelona-México, ed. Grijalbo, 1973); G. E. Rusconi, Teoria crítica de la sociedad (Barcelona, ed. Martinez Roca, 1969); Helga Gallas, Marxistische literaturtheorie (Newvied, ed. Luchterhand, 1971); L. Goldmann, Lukács et Heidegger (Paris, éd. Denoël-Gonthier, 1973). Como exemplo modelar do obscurantismo da esquerda, consulte-se Vv. Aa., Georg Lukács und der revisionismus (Berlim, ed. Aufbau, 1960).
[4]“Blum era o pseudônimo de Lukács na luta clandestina do PC da Hungria. Nestas Teses [apresentadas em 1929 - J. P. N.] ele antecipava os princípios da Frente Popular, que só viriam a se tornar política oficial do movimento comu­ nista internacional em 1935, quando do VII Congresso do Cominter” (Carlos Nelson Coutinho, introdução a Realismo crítico hoje, Brasília, ed. Coordenada, 1969, p. 9).
[5] Cfr. o prólogo de Sociologia de la literatura, Barcelona, ed. Península, 1968. Ludz refere-se a uma provável “sexta fase”, iniciada por volta de 1962, mas não se detém sobre ela.
[6] Cfr. Vv. Aa., Sociologia da literatura, Lisboa, ed. Estampa, 1972, p. 113 e ss.
[7] Cfr. a introdução à obra Georg Lukács, the man..., citada na nota 3.

[8] E republicado em Vv. Aa., El joven Lukács, Córdoba, ed. Cuadernos de Pasado y Presente, 1970 (n.° 16).
[9] O jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista, só publicado no pós-guerra.
[10] Cuja publicação ainda está em curso e, portanto, só será levada em conta, aqui, pelas referências a ela feitas em entrevistas, sobretudo as coligidas em Vv. Aa., Conversando com Lukács, Rio de Janeiro, ed. Paz e Terra, 1969.

[11] Que há de ser empobrecida por qualquer esquema expositivo. O que apresento aqui é certamente passível de críticas e correções, como, aliás, todos os elaborados até agora.
[12] I. Mészáros, “El concepto de la dialéctica en Lukács”, en Georg Lukács, the man... trad. esp. citada na nota 3, pp. 47-49.
[13] Publicada originalmente em 1911, esta obra teve recente edição francesa (Paris, ed. Gallimard, 1974).
[14] Sabe-se que a negação da dialética da natureza à moda engelsiana foi um dos motivos evidentes para tornar História e Consciência de Classe uma obra “maldita” no interior do marxismo oficial.
[15] Publicado em 1923, em Berlim, como nono volume da Pequena Biblioteca Revolucionária, pela Malik Verlag, o livro foi considerado como “revisionista, reformista, idealista” pelo V Congresso da Internacional Comunista, em junho de 1924. O Pravda, em edição de 25 de julho de 1924, também condenou a obra que, um mês antes, recebera ataques de Kautsky. Em 1933, no citado Meu Caminho até Marx, Lukács fez autocrítica; mas foi só em 1967, quando da edição italiana do texto, para a qual elaborou longo prefácio, que ele realmente avaliou a significação de História e Consciência de Classe.
[16] Sabe-se que Lukács, em 1941, foi preso pela polícia política de Stálin, sendo liberado graças ao empenho de Dimitrov.
[17] “Introducción a los escritos estéticos de Marx y Engels”, em Aportaciones a la historia de la estética, México, ed. Grijalbo, 1966, p. 233.
[18] Durante esta terceira fase, estendendo-se até as vésperas do XX Congresso do PCUS, algumas citações protocolares de Stálin e vários silêncios táticos permitiram que analistas superficiais ou adversários identificassem em Lukács simpatias para com o promotor dos “processos de Moscou”. Uma leitura atenta e integral da obra lukacsiana desautoriza uma tal interpretação. No entanto, é sobretudo em torno desta fase que se articulam os preconceitos tendentes a construir de Lukács uma imagem grosseiramente servil e oportunista.
[19] Isolamento que não se anula pelo fato de obras suas terem tido, inclusive, traduções japonesas, nem, muito menos, pela constituição, em torno da sua pessoa e nos últimos tempos, da significativa “escola de Budapeste”, integrada, entre outros, por Agnes Heller, Ferenc Fèhér, M. Vajda e G. Markus.
[20] Mészáros, no ensaio citado na nota 12, elabora inteligente interpretação para este fato.
[21] Conhecendo profundamente os clássicos da sociologia, Lukács jamais estabeleceu uma discussão maior com sociólogos franceses, ingleses ou americanos. Se acompanhou com interesse a atividade, por exemplo, de C. W. Mills, o fato é que sua crítica direta incidiu sempre sobre a componente sociológica da cultura alemã até o período do nazi-fascismo, embora constatemos umas poucas, e irônicas, referências à “escola de Frankfurt”.
[22] Prefácio de 1962 à La théorie du roman, Paris, éd. Denoël-Gonthier, 1971, p. 7.
[23] Rusconi, Op, cit. na nota 3, p. 83.
[24] Histoire et conscience de classe, Paris, éd. Minuit, 1965, p. 47. Nas citações seguintes, refiro-me a esta obra como HCC e os números entre parênteses reme­tem às suas páginas.
[25] Problema idêntico ao de Leo Kofler (S. Warynski), mais de vinte anos depois, com Die wissenschaft von der gesellschaft (1944).
[26] Utilizo aqui a tradução espanhola, El asalto a la razón, Barcelona-México, ed. Grijalbo, 1968. Nas citações seguintes, refiro-me a esta obra como Destruição e os números entre parênteses remetem às suas páginas.
[27] Quanto a esta questão, remeto ao meu ensaio “Sobre o conceito de decadência: esboço para uma abordagem lukacsiana”, em revista Hora & Vez, Juiz de Fora, ed. Universidade Federal de Juiz de Fora, janeiro de 1971, n.° expe­rimental.

[28] El asalto a la razón, ed. cit., cap. VI, seção III.
[29] Questão que se inverte totalmente quando Lukács aborda temática estética: aqui, o fundamental são os resultados, ou seja, a obra conclusa.
[30] Datas de publicação de História e Consciência de Classe e A Destruição da Razão.

[31] L’ideologie allemande, em Oeuvres philosophiques, Paris, éd. Costes, 1953, t. VI, p. 153.
[32] A ontologia do ser social parte da premissa de que “não é possível estabelecer analogias entre o mundo orgânico e a vida social” (Conversando com Lukács, ed. cit. nota 10, p. 20).
[33] Lukács em entrevista a Leandro Konder, publicada no caderno especial do
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, edição de 24-25/8/1969.
[34] Conversando com Lukács, ed. cit., p. 16.

[35] Idem, p. 13.
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NETTO, J. P. “Lukács e a sociologia”. In: Contexto, São Paulo, n. 1, p. 61-77, nov., 1976.
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