O Podemos! se desmancha e o Syriza há muito se perdeu perante a Troika e em gabinetes com a direita – para o horror do purismo da esquerda do PSOL, para o horror de um Safatle que reclamava do gabinete de Dilma nesse já distante 2014.
Talvez não seja difícil para os povos da América entender que aqui se conseguiu mais com nossos caudilhos do que com nossos intelectuais animados pela última moda europeia. A convergência de um movimento na figura de um líder e do poder executivo, ainda mais um líder militar, pode ser um caminho plebiscitário para concentrar forças contra o conservadorismo difundido e enraizado nas instituições.
No contexto da política venezuelana Chávez foi – e ainda é visto, inclusive por pessoas que não apoiam Maduro – como um símbolo que reuniu forças excluídas da sociedade contra os pilares do elitismo representados pelo Country Club Caracas. Chávez é o líder saído do rechaço das classes populares às velhas classes políticas, incluindo a repressão, a exclusão e as políticas neoliberais.
Quando em Caracas, nos aproximamos de uma mulher conservadora antichavista. Em um dos encontros ela levou uma amiga da mesma igreja (evangélica), mas de classe social mais pobre e marginalizada. Apesar da facilitadora do encontro exercer certa pressão misturada com influência – muito inteligente e de personalidade forte – a amiga nos explicou que as pessoas ainda são muito relutantes em se posicionar contra o chavismo por um “sentimento de gratidão”. Ela se referiu a sua mãe e a própria negritude, que “nos tempos da minha mãe seria inimaginável uma moça negra pobre como eu passeando em um
shopping em Chacao”.
Chacao é um dos bairros ricos de Caracas, com status de município, palco de manifestações de direita e o que vem sendo divulgado nos últimos dias como “ruas tomadas contra Maduro”. E, por Deus, falando em oposição, a figura do líder falecido é tão poderosa que quase nenhum simpatizante da oposição consegue falar mal do regime sem fazer pelo menos um elogio a Hugo Chávez.
O caudilho é tão triunfante que até a oposição golpista reivindica a constituição desenhada por Chávez – viraram fiéis defensores da V República. As linhas de propaganda da guerra informacional de Washington deixam isso claro e indicam que se evite falar mal de Chávez, de preferência demarcando diferenças deste com Maduro.
Sendo justo com Safatle, é verdade que ele não é exatamente um fã de partidos. Prega a superação deles, é fiel a Badiou, pensa nos momentos, na ação política algo espontânea, no acontecimento autêntico, genuíno, que desamarra as instituições e o “realmente existente”, tudo aquilo que amarra a política – o que só pode acontecer na ação revolucionária verdadeira, a participação popular sem limitações e que intervém como poder instituinte soberano.
Mas é trágico que na história tão logo comecem as situações extraordinárias, uma parte considerável dos intelectuais tidos como os mais radicais logo se encolham em seus gabinetes, chegando a se refugiar na respeitabilidade burguesa – no caso de Safatle, qual é a mudança efetiva do discurso dele no coro uníssono na mídia brasileira?
Pasmém, esta “reflexão filosófica” não é sequer tão poderosa quanto um suplemento informativo sobre o que está em jogo na Venezuela. O filósofo se preocupa tanto com a autenticidade que se converte em inautêntico.
É precisamente nos momentos em que a história acontece que eles parecem se afastar. Independente de nossas predileções, a Venezuela passou por uma processo singular nas últimas duas décadas. Foi com Chávez que amarras foram desfeitas, que ocorreu uma explosão das massas e uma correspondente oposição imperial.
Uma parte do que chamam populismo e caudilhismo na América Latina não foram trapaças capitalistas contra as classes dominadas, mas expressões autênticas de nosso processo histórico e canalizadores da política popular. Os intelectuais têm sede pelo “momento revolucionário”, pela rebelião das massas, a ruptura política, mas viram o rosto e se recusam quando este movimento se concretiza na relação dialética das massas populares com líderes e na composição entre caudilho, exército e povo. E não é natural que um processo político que coloque em risco velhas correntes de subordinação internacional tenha que se armar para se defender?
Os caudilhos libertadores eram mais do que militares quando lideravam suas tropas no campo de batalha. Os operários
descamisados transformaram Péron em um general diferente de todos os outros oficiais argentinos.
Na Venezuela, o caudilhismo libertador foi a forma como a história varreu pilares sociais que pareciam se eternizar no colonialismo, varrendo e transformando a elite
criolla.
Chávez teve o poder delegado pelo povo venezuelano para reposicionar a Venezuela internacionalmente, depois de anos de políticas que foram entendidas como
explotadoras, hostis a soberania, o que fundamenta uma vocação militar da revolução bolivariana.
Talvez seja a armadilha do intelectual universitário hiper-socializado, dependente, mas distante dos acontecimentos: o impulso do rebelião parece se converter em um nada, um vazio, nesse caso um discurso que pretende defender o político mas no fim retrocede ao niilismo.
O que acontece com a reflexão do filósofo frente as massas tomando as ruas para restituir Chávez ao poder em 2002? Aquilo não foi uma decisão de uma cúpula militar, mas um movimento popular que desafiou militares golpistas, com sua realização simbólica no desafio colocado por peitos desnudos em barricadas, quando muito com pistolas nas cinturas contra a ameaça de fuzis e canhoneiras.
O texto confirma, pela esquerda, o que vem até agora sendo o discurso da direita e do intervencionismo – de que o problema da Venezuela é o “fracasso de um modelo”. Essa postura de esquerdista democrático é comparável a um certo “voluntarismo estalinista” – não é o petróleo, a história venezuelana, a dura situação econômica, a estrutura econômica (as crises que remontam aos anos 80), a sabotagem (fuga de dólares, sanções, guerra cambial, destruição de infraestrutura, etc), mas um problema de linha política e os defeitos dos quadros da esquerda latino-americana que explicam a situação.
A referência à”dependência patológica” evoca uma disciplina psiquiátrica. O direitismo venezuelano tem predileção por tratar o chavismo como uma “patologia”, uma “loucura das massas”, o que por extensão justifica intervenções autoritárias em nome da razão.
E é esse um problema da “esquerda latino americana” ou Safatle dirige isso aos movimentos que tiveram algum sucesso e, em última instância, as massas do continente? Pois não é difícil nos lembrarmos que a esquerda latino-americana de extração universitária denuncia o populismo desde antes de Safatle nascer – provavelmente piorou depois da onda de doutorados na França, mas já era algo compartilhado pelas mentalidades moldadas em Moscou e leais ao Partido Comunista.
De toda forma, cabe relembrarmos aqui os problemas que pontuamos ao falar da economia venezuelana: não é um problema de controle estatal, dos trabalhadores ou privado. É um problema que:
- a – diz respeito a uma política executiva nacional, fora do alcance da democracia direta e da autogestão.
- b – diz respeito ao desenvolvimento nacional e ao problema da industrialização, a ruptura com a dependência do petróleo.
Esse não é um problema que se coloca para a “esquerda” latino-americana, mas para todas nações da América Ibero-Tropical. É o problema central da independência.
Não que eu acredite em estatismo puro ou numa forma de politicismo que exclui a expressão do popular. O problema é que a intelectualidade voltada para o mar, litorânea, tem um sério problema de compreender qualquer expressão “caudilhesca” ou populista como popular ou latino americana, como expressão de movimentos de massa e a realização de lutas por direitos dos trabalhadores. Para bem ou para mal, o peronismo na Argentina – esse movimento “populista” e “bonapartista” por excelência – foi um dos maiores assaltos populares à política na América Latina.
Peronismo que foi logo atacado por hostes de professores universitários que se juntaram a John Foster Dulles em sua preocupação com o “subdesenvolvimento” e a necessidade de educação dessas massas “presas” do populismo.
A figura do líder se converte em núcleo de um movimento de massas populares na proporção inversa que atrai a denúncia e o rechaço unânime das classes antinacionais.
Massas organizadas conectadas por suas emoções a um líder carismático não só criaram movimentos de ameaça ao sistema e trouxeram progresso social, mas pensando de acordo a virtude dos fins, marcou de fato um momento de florescimento independente de nossas comunidades.
O liberalismo sempre se reivindicou republicano
contra o populismo e o caudilhismo, sem perceber o caráter eminentemente republicano desses momentos.
Independente da saúde mental da esquerda latino-americana, Safatle termina se referindo a um “cenário ideal” quando temos um cenário concreto que beira a uma guerra internacional disfarçada de guerra civil ocorrendo na América do Sul e que trará consequências desastrosas para todo o continente.
Já existem “ações imperialistas abertas.” Ninguém começa uma guerra em um ato único, como um botão que se aperta – a guerra se constrói através de um conjunto de ações que incluem a desestabilização e as sanções econômicas (a Guerra do Iraque pode ter começado com Bush em 2003, mas centenas de milhares de crianças já tinham suas vidas ceifadas pelas sanções de Clinton-Albright nos anos 90). Reconhecer em pouquíssimo tempo um presidente auto-proclamado, que sequer tomou parte nas eleições, já é uma ação aberta. O que Safatle chama de “perigo” já é uma realidade de anos.
Publica e oficialmente os Estados Unidos gastaram somente entre 2000 e 2005 mais de 27 milhões de dólares através do NED e do USAID para apoiar grupos opositores na Venezuela.
Já faz anos que a presidência dos EUA, a Secretaria de Estado, a CIA e o Comando Sul-Americano (SOUTHCOM) expõem um tanto abertamente seu intervencionismo. O SOUTHCOM, que é um comando militar, está efetivamente envolvido nos novos planos de deposição de Nicolás Maduro.
Em verdade, os acontecimentos atuais na Venezuela são a continuação de uma estratégia militar dos Estados Unidos para a região que remonta a, pelo menos, o governo George W. Bush – sendo a Rússia que representou o maior problema para a política externa norte-americana nos últimos anos e a Turquia um aliado “rebelde” que abre as asas com a decadência da hegemonia da super potência atlantista. Na primeira década do chavismo essa estratégia se orientava para a internacionalização do conflito colombiano, incluindo reconhecimento tácito às forças paramilitares direitistas que causavam um desastre humanitário na Colômbia com uma guerra punitiva contra comunidades camponesas e que ameaçavam se estender até o país vizinho para assassinar Hugo Chávez.
A Colômbia, depois de anos com um presidente amigo dos paramilitares, depois de um teatro de desarmamento da AUC (o maior grupo paramilitar), viu o paramilitarismo reaparecer na forma de grupos ainda mais difusos, ousados, politizados e dispostos a tirar proveito do desfalque dos cartéis colombianos. Muitos falam de narco-estado, mas outra palavra que passa a definir o espaço colombiano é a para-política. Em violação aos acordos de paz, paramilitares se dedicam a caçar guerrilheiros ressocializados e organizados em partidos políticos na Colômbia, mas o fim do conflito militar com as FARC permitiu que muitas forças de direita dirigissem sua atuação para a Venezuela.
Em estados como Zulia e Táchira paramilitares colombianos circularam com liberdade considerável, ostentando armas e entrando em conflito contra forças venezuelanas. Mesmo em Caracas era possível sentir o clima tenso nas eleições devido a uma presença oculta de paramilitares, às vezes quase identificáveis por sua atitude e tatuagens específicas.
No período Chávez, o governo direitista do estado de Zulia (rico, 40% das reservas de gás e petróleo) ameaçava sedição e secessão.
Tal era a internacionalização do conflito que o paramilitarismo contava com assessores israelenses. Israel, tão distante, desempenhou na América uma espécie de função de “Cuba contrarrevolucionária”, auxiliando na repressão sangrenta em que se especializaram na condição de projeto colonial e no seu confronto existencial com os palestinos. É especialmente relevante mencionar esses fatores quando o clã Bolsonaro possui sua própria predileção pelo paramilitarismo brasileiro (as milícias cada vez mais politizadas) e pelo sionismo internacional.
O petróleo é uma prioridade da geoestratégica dos Estados Unidos. Isso é declarado abertamente e foi tratado no nosso pensamento nacional na obra de Moniz Bandeira (“preserve access to a reasonably priced and secure supply of oil”, como elencou Robert J. Art como terceiro dos interesses prioritários dos Estados Unidos em seu “Grand Strategy for Contemporary America”, da Century Foundation). O petróleo do continente e mais especificamente o venezuelano já se convertia em uma prioridade na estratégia da Secretaria de Estado Hillary Clinton e o desengajamento no Oriente Médio.
Os cálculos geopolíticos vão além de petróleo, não obstante.
Os Estados Unidos estão lidando com novas realidades globais, sua incapacidade ser um hegemon dominador absoluto, a inviabilidade política e estratégica de grandes espaços econômicos, a crise nos centros de decisão do Primeiro Mundo, a incidência de variáveis demográficas globais, a ruptura da coalizão atlantista (incluindo a projeção independente de interesses britânicos na América do Sul), a configuração de novos polos regionais, a evolução relativa dos poderes militares.
São uma conjunção de fatores que colocam a potência em uma trajetória declinante, infundindo a crença, nos estrategistas, de uma reformulação do papel externo dos EUA, o que muitos entendem como uma era de “
selective engagement” no campo militar (vide Robert J. Art novamente). Tentam transformar sua relação com a ONU e, no caso dos republicanos, o retorno ao pan-americanismo, ao
big stick, uma política mais direta de intimidação pela força e a renovação de um excepcionalismo evangélico-calvinista (
Make America Great Again).
A Bacia do Caribe ocupa um papel central nessas considerações. A começar pelo enclave representado por Cuba (ou a
ditadura cubana, na
fala de Safatle), pequena ilha que selou o destino da estratégia dos Estados Unidos para o resto da América por toda metade do século XX. A Venezuela renovou essa preocupação quando o caudilho Chávez sentou na gigante reserva de petróleo, foi contra o Consenso de Washington e Neoliberalismo, misturando retórica militar-bolivariana com socialismo e cristianismo. Pior do que isso, o caudilho iniciou uma política de expansão militar, compra de equipamentos, criação de novas forças e distribuição de armamentos, adotando uma doutrina militar francamente anti-intervencionista e uma política contrária a expansão militar gringa na América Latina (vide Plan Colombia).
Eles não podem tolerar que a Venezuela seja uma praça de armas. Isso tem significados muito graves para a América do Sul e as dinâmicas de multipolaridade. Mesmo que os dirigentes venezuelanos tenham feito concessões diversas, os estrategistas norte-americanos pensam no pior dos casos. Não derrubaram Saddam Hussein no Iraque para ter outro aqui – precisam do petróleo sul-americano como garantia perante o caos do Oriente Médio.
No período Chávez, a Venezuela se converteu em um centro de interesse estratégico de interesse global, com uma proposta de integração regional sul-americana bancada com armas e petróleo. No exercício da influência ideológica (ou do que chamam de “
soft power”), a Venezuela afirmava os valores positivos de sua “Revolução Bolivariana” enquanto esta desmantelava o velho sistema político, ressuscitava a solidariedade terceiro-mundista, chegando ao ponto de usar a PDVSA para manter um
programa assistencial que beneficiou mais de 1,7 milhões de pobres de Washington, no coração dos Estados Unidos. A diplomacia do petróleo também serviu para fortalecer aliados que pipocavam no continente, na Bolívia, no Equador, na Nicarágua e, claro, Cuba.
De maneira mais trivial, uma vitória contra a Venezuela poderia se estender em uma vitória contra Cuba, o que seria crédito para o enfraquecido governo de Donald Trump. A ofensiva é liderada por políticos republicanos neo-protestantes da máfia cubana de Miami, com largo histórico de envolvimento com o terrorismo. Os venezuelanos pertencentes a rede de apadrinhamento dos Democratas, com estética mais preocupada com os “Direitos Humanos”, vão atrás.
No pior dos casos, a estratégia norte-americana sai do neo-expansionismo republicano, preocupado em espalhar “democracia, mercado” e modelos institucionais próprias, para assumir a forma radical quase apocalíptica dos strausserianos e alunos do falecido Almirante Cebrowski, que acreditam no desmantelamento dos estados nacionais fora dos países centrais, a criação de
stateless zones, no caos e na destruição como estratégia. Se inviável que todos sejam ricos, que os pobres sejam inviabilizados – esta seria uma resposta “razoável” aos fatores de declínio. De toda maneira, as duas visões tem como foco “minimizar a capacidade de ação de Estados de fora do círculo da democracia e do livre mercado”.
A estratégia formulada por Cebrowski e Donald Rumsfeld durante o governo Bush incluía a famosa lista de países árabes a ser atacados para “mudar a balança de poder no Oriente Médio” – a segunda fase seria a Bacia do Caribe. John R. Bolton, o atual conselheiro de segurança nacional de Trump e que veio visitar Bolsonaro, fazia parte do grupo de Rumsfeld no núcleo de relações externas do Governo Bush, ardoroso aderente dessas doutrinas e que vem desde o ano passado discursando sobre a “necessidade” de se destruir a “Troika da Tirania” (Havana-Managua-Caracas), “ninho do comunismo no hemisfério ocidental.”
Infelizmente, a posição política de esquerdistas como Safatle trás um deslocamento da geopolítica, que vai para o escanteio. Pensar na dominação como um sistema internacional com atores políticos específicos (não no “capital” difuso) nos leva a refletir sobre a dimensão revolucionária do estado, do nacionalismo e do exército.
Imaginação em tempos de guerra
Ao invés de dependermos da imaginação, ainda mais da imaginação de Safatle (que não propõe nada concreto, de toda forma), podemos pensar no que já existe, no que está dado. Por enquanto, está dado que há quem queira uma guerra na Venezuela, e isto é péssimo para nosso país.
De negativo temos isso, existe algo minimamente positivo?
Desde as manifestações violentas de 2017 – com repressão correspondente – existe um arranjo institucional de negociações, incluindo uma mesa internacional de diálogo na República Dominicana. Na prática, isso é reconhecer que existem forças beligerantes.
Esclarecer isso já seria um salto para o público da Folha, que deve entender que a alternativa a política aventureira de Bolsonaro é ser “Madurista”. A Igreja Católica compreende isso e endossa os esforços pacificadores. Estes são os tempos que vivemos: o cardeal oferece mais do que um filósofo.
Maduro mantém uma postura mais pacifista enquanto a oposição radical mantém outra; de distensão, tentando usar a violência como ingrediente para a desordem, o que deve ser indicativo da correlação de forças. Maduro pelo menos sabe que ainda tem bases de apoio e provavelmente calcula que o exército é relutante em assumir tarefas diretas de repressão – seu ministro da defesa, Vladimir Padrino López, se preserva publicamente.
Minha imaginação não deixa de apontar que, se realmente Maduro se degradar demais, serão os militares chavistas que intervirão como pacificadores nacionais e defensores do bolivarianismo. Daí talvez possamos falar de bonapartismo.
O apologeta do professor pode me responder que sim, Safatle se referiu à violência “dos dois lados”, de que “com Maduro ou oposição haverá banho de sangue”. O problema é que nesse caso o filósofo não tece considerações verdadeiramente políticas, mas tão somente moralistas e individuais. Está determinando que ele, o filósofo, não vê nada na Venezuela a altura de suas ideias avançadas e seu humanismo imaculado.
Filósofos também tomam decisões políticas, mas o texto de Safatle não parece decidir nada, nem dizer nada que já não foi dito, além de engrossar a sinfonia de “lamentos pela situação venezuelana” com uma estética de esquerda. No fim, não sei se leio uma coluna de um filósofo ou a coluna de um servidor público afundado em uma espécie de distância complacente do que ele pretende comentar – “ah sim, Venezuela, entre dois lados terríveis, fico comigo mesmo, é uma pena cavalheiros, e isso é tudo que tenho para dizer”.
Do alto de sua montanha moral, Safatle aponta o dedo e sugere que certos setores da esquerda nacional apoiam um governo que atira em manifestantes – como se isso fosse uma política de governo e a posição de seus adversários fosse redutível a isto.
Completa: “a violência fascista não é combatida com métodos fascistas de violência”.
Não frequentei as aulas de lógica do Departamento de Filosofia, mas se eu entendi, ele está reconhecendo a oposição como fascista e violenta. A título de curiosidade, se combate como? Citando Adorno?
O texto não denuncia a oposição e nem tão pouco o intervencionismo imperialista, só paga um pedágio nesse caminho de afirmação da independência e superioridade moral do autor. Não passa pela cabeça do filósofo que é possível desprezar Maduro e denunciar os radicais da oposição que apostam em uma crise internacional.
O filósofo às
vezes fala de ilegalidade, de violência, de caos, muito confiante e revolucionário. “O caos é superestimado”. Tão logo os pentes começam a tilintar na encruzilhada da história, no momento constituinte primal, acima de qualquer formalidade, que o entusiasmo revolucionário desaparece. As categorias idealistas de Safatle aqui se tornam mais problemáticas do que as usadas na hora de criticar a esquerda. “Carnificina haverá com governo ou com oposição”; pode parecer uma formulação concreta e específica, mas não é.
Qual posição está mais favorável à conciliação e manutenção da estabilidade? O que ele acha que se seguirá de um assalto ao poder de uma oposição apoiada por paramilitares e uma intervenção bélica estrangeira? Maduro sequer deu um autogolpe. Não existe ilegalidade massiva. As manifestações do dia 23 foram reprimidas com bombas de gás. Sua política é evitar o escalar do conflito, sabendo do que ocorreu na Síria, por exemplo.
Que tipo de carnificina seguiria uma mudança de regime nesses termos? Se Maduro até agora concorre eleições com os opositores, que de forma geral estão para lá e para cá se encontrando com diplomatas estrangeiros, em alguns casos sendo judicialmente assediados. Não é razoável dizer que no curto prazo esse é o mesmo tipo de “carnificina” que se seguirá a um assalto ao poder por um grupo revanchista que pede auxílio ao estrangeiro em oposição às próprias Forças Armadas.
Não seriam só os bombardeios sangrentos, mas os expurgos que se seguiriam. A aposta aventureirista de uma oposição que usa táticas de
contras, de aumento da violência para causar distensão, tem implicações muito sérias em um país que tem chavistas de cima abaixo.
Se a preocupação dele é com a paz, com a ideia de que a política existe para defender a paz frente à possibilidade do conflito armado, ele poderia ter usado seu espaço para defender a estabilidade na Venezuela, incluindo as instituições de diálogo e negociação que citamos, como faz o Vaticano.
Ele poderia ter denunciado as operações psicológicas dos Estados Unidos e a escolha do
23 de Enero, data comemorativa que sempre conta com manifestações públicas, como escolha oportunista para ter as ruas cheias no dia do anúncio da revolta. Poderia ter denunciado a irresponsabilidade da aventura golpista.
Acima de tudo, poderia ter denunciado o governo brasileiro por apoiar os aventureiros da oposição e o intervencionismo externo, ao invés de usar sua influência para estimular a pacificação do país vizinho.
Golpistas anunciaram animados que realizaram um encontro com o chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, para “definir ações contra a ditadura de Maduro”, pouco antes da crise estourar. O encontro foi com Júlio Borges, Antonio Ledezma e Carlos Vecchio. Os três são radicais, sendo Ledezma um líder histriônico de um partido há anos inexpressivo no campo eleitoral e Vecchio coordenador do Voluntad Popular, que agora foi escolhido como representante de Guaidó em Washington. Ledezma estava na prisão por “conspirar com os EUA para derrubar o governo” (bom, provavelmente só começou a conspirar depois que fugiu, não é mesmo?)
O filósofo já
imaginou que, se o Brasil entrar em estado de guerra, a nossa Constituição permite a aplicação da pena de morte? Fora todas as outras consequências no ambiente interno.
Safatle preferiu fazer apenas mais um texto de intelectual denunciando a “falência do populismo”, para dizer que não gosta de ninguém e que gostaria de coisas bonitas saídas do mundo da imaginação. Nem o PT, participante do jogo eleitoral, foi tão inconsequente.
Talvez “certos setores da esquerda nacional” só estejam mais preocupados com uma intervenção imperialista na América do Sul. Guaidó não só fez uma manobra questionável ao reivindicar a presidência depois das eleições, mas assumiu uma postura iminentemente belicista de convite a um ataque estrangeiro conduzido pelos Estados Unidos, “autorizando” a entrada de navios ianques em águas venezuelanas.
O filósofo convoca nossa imaginação, mas é difícil de usar a imaginação debaixo de bombas e no meio da sinfonia infernal da crepitação metálica dos fuzis automáticos. Nessas horas, o cérebro se dedica a humaníssima tarefa de não morrer.
É mais difícil ser intelectual nas condições de guerra, ser criativo. Falo por experiência própria, dado que reconheço meu fracasso em produzir nas condições desfavoráveis da Guerra Ucraniana.
Vida ou morte. No fundamental, é esta dualidade que está se colocando para várias forças políticas venezuelanas, criando uma situação que beira ao insustentável e que leva os nossos intelectuais a discutirem aporias enquanto nosso continente beira a uma guerra destruidora. A esquerda brasileira, infelizmente, sequer compreende que
golpe é guerra e insiste em projetar as questões em termos ideológicos, como diferenças programáticas, discursivas, narrativas.
A Venezuela está experimentando a verdade de que, em última instância, a política é conflito militar.
É uma situação de poderes constituintes em que diferentes forças políticas reivindicam o reconhecimento internacional e disputam o monopólio da violência. Acima desse retrato nacional, existe uma configuração global do conflito.
Em 2002, cérebros ianques coordenaram para um golpe de estado coincidir com manifestações de massa contra Chávez, golpe que contou com a participação direta de militares da alta cúpula e a não-oposição de outros. O jogo só virou quando o povo, principalmente dos
barrios, das favelas, foram em massa para a rua defender a legitimidade Hugo Chávez, o que abriu espaço para a ação de unidades militares lealistas e coincidiu com o desagrado que o golpista Carmona causou nos militares que até então consentiam ou posavam de “neutros”.
Se Safatle quisesse fazer jus ao título do seu artigo e descrever um
país em colapso, explicaria os pormenores deste conflito, ao invés de fazer um discurso ideológico sobre o que a esquerda deveria fazer no continente. A tertúlia venezuelana atualmente é na base do fogo.
Já em 2005, segundo Harold Trinkunas
[2], atores políticos e eleitores venezuelanos começavam a ver a polarização política como ameaça existencial mútua – como uma inimizade que a qualquer momento poderia descambar em guerra civil. O livro Venezuela Speaks! contém relatos que não são difíceis de ouvir em Caracas, com membros do Centro Cultural Simon Rodriguez narrando as perseguições, castigos e desaparecimentos da época do Punto Fijo, quando os partidos AD e COPEI nomeavam chefes civis responsáveis por reprimir paróquias locais, aparelhando também a Guarda Nacional, a polícia e a inteligência militar.
Coisa parecida ouvimos de professores universitários da Universidad Simón Rodriguez, que também condenavam Maduro por fazer acertos com grandes monopolistas e velhos oligarcas como os donos da Polar (o que também nos foi narrado por um jovem engenheiro de origem humilde, que já perdia simpatias pelo chavismo, apesar de ser mais do tipo apolítico), mas temiam a oposição mais do que tudo.
Esquerdistas foram mortos e perseguidos durante muito tempo na democracia do Punto Fijo. Muitas pessoas da política de esquerda e das favelas ainda se recordam do Caracazo, mais recente, se recordam dos assassinatos, dos desaparecidos, do exército saqueando as favelas e punindo os moradores.
Para alguns, é evidente que por morarem em comunidades historicamente marginalizadas, eles não se importam de receber comida pelos CLAPs, por um sistema assistencial, não se importando com a crise de abastecimento no mercado comum por se recordar de passar fome nos anos 90 (ou antes), não conseguindo comer ou consumir nada de toda maneira (outros, no entanto, se lembram da explosão de consumo do período Hugo Chávez e ressentem a atual crise).
Conhecemos simpatizantes da oposição totalmente receosos de pisar em áreas chavistas. Conhecemos chavistas repletos de medo de ser incendiados por guarimberos oposicionistas (como fizeram com pessoas inocentes no meio de 2017).
Visitamos também um centro cultural que foi atacado e completamente incendiado por
guarimberos, oposicionistas radicais.
A antecipação de violência é real.
Também reconheço uma espécie de fracasso nessa viagem da Venezuela, o fracasso da insistência de fazer jornalismo com limitação de recursos. Nossa falta de dinheiro não nos impediu de aprender algumas coisas, que sempre prezamos por passar para nossos leitores-associados – no caso venezuelano, a de não decretar sentenças absolutas a partir de nossos cumes ideológicos ou cadeiras universitárias.
Nossa América é um campo de batalha, não um auditório.
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Notas:
[1] Tomei a liberdade de usar o termo brasileiro para me fazer mais claro, sem confusões.
[2] “Crafting Civilian Control of the Military in Venezuela: A Comparative Perspective”, The University of North Carolina Press, 2005.
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