terça-feira, 31 de dezembro de 2019

ARTE REALISTA| Tuberculose (Parasita)


Trecho: Para afastar a governanta, o próximo passo do golpe é fazer com que a madame pense que essa sua empregada está com tuberculose.
= = =
Gisaengchung (dramédia, KOR, 2019), de Bong Joon-ho.
= = =

sábado, 28 de dezembro de 2019

O verdadeiro Winston Churchill


por Richard Seymour

Durante os protestos em maio de 2.000 nada enfureceu mais o establishment britânico – imprensa, políticos, tribunais, e opinião respeitável – do que a profanação da estátua de Winston Churchill na Praça do Parlamento. O sangue selvagem vermelho pintado com spray em torno da boca de Churchill, a lívida marca verde que sugeria um corte de cabelo mohawk, transformando o estoico pai da nação em palhaço, era inconcebível.

É difícil transmitir o valor simbólico e emocional deste homem para a classe dominante britânica e um número significativo, embora em declínio, de cidadãos. Aqueles cuja consciência nacional é moldada pelas memórias da Segunda Guerra Mundial, provavelmente o último momento de “grandeza” do império, salvo a vitória na Copa do Mundo de 1966, conhecem principalmente Churchill como o homem que esmagou a ameaça nazista. Dirigindo um governo de coalizão ele exortou o que tinha sido uma nação mal-liderada e esgotada para ousar e vencer. Ele salvou o estado britânico, orientando-o através de uma de suas piores crises. Churchill foi o último líder britânico verdadeiramente amado; ninguém se aproximou disso.

Quando eu estava na escola, na década de 1980, no norte da Irlanda, a joia esmeralda do Império, este ainda era um sentimento poderoso. Nosso professor de história, explicando a Segunda Guerra Mundial, contou com orgulho uma história apócrifa em que Hitler, depois de ter ouvido que Churchill estava liderando o esforço de guerra, disse: “O que faremos agora?” E nós, com as pupilas e olhos brilhantes, ficamos muito satisfeitos pensando nisso. O que você vai fazer agora?

Churchill é, além de mito nacional, objeto de uma pequena indústria artesanal e fonte interminável de nostalgia. Livros comemorando sua sagacidade perversa, canecas enfeitadas com sua imagem, toalhas de chá citando o grande homem, intermináveis historiadores da corte – e quando se trata de Churchill, quase não há outro tipo de historiador – recapitulando suas glórias. Há um filme sobre ele agora, com Gary Oldman? Jogue-o na pilha com o último filme com Brian Cox, e aquele anterior com Brendan Gleeson, e outro antes dele com Albert Finney e o anterior com Michael Gambon. É uma indústria dos “tesouros nacionais”, e um mini-boom agora está em andamento, já que certos sentimentos que o Brexit colocou em circulação alimentam um retorno cultural ao Império.

Para mim, no entanto, seu brilho desapareceu há muito tempo, e fui à Praça do Parlamento para admirar aqueles manifestantes. O que deu errado?

A indústria cultural não é sempre um lugar tão ruim para descobrir a verdade sobre Churchill. O ator Richard Burton, ao se preparar para representar Churchill em um drama de televisão, escreveu para o New York Times
 
Durante a preparação, percebi de novo que odeio Churchill e todos de seu tipo. Os odeio fortemente. Eles tiveram um poder infinito ao longo da história. ... O que um homem são diria ao ouvir sobre as atrocidades cometidas pelos japoneses contra prisioneiros de guerra britânicos e do ANZAC: “Nós os destruiremos, cada um deles, homens, mulheres e filhos. Não haverá uma esquerda japonesa na face da terra”? Essa ânsia de vingança me deixa com horror, devido à sua ferocidade simples e implacável.

Por essa iconoclastia, Burton foi impedido de trabalhar novamente na BBC, acusado de “agir de forma não profissional” e, evidentemente, considerado como traidor. No entanto, ele trouxe algo sobre Churchill que muitas vezes constrange a sensibilidade britânica, de tal modo que geralmente não se fala nisso: o gosto pelo massacre. Em todo canto, parece que Churchill baba sangue. Ele era um fanático da violência.

Churchill vinha da alta aristocracia; era filho do chanceler Lord Randolph Churchill, foi um menino destinado aos altos cargos. É importante notar que o jovem Churchill não era um reacionário total. Membro do Partido Conservador, ele se considerava liberal. Defendia o livre comércio, a democracia e algumas melhorias suaves para a classe trabalhadora – refletindo a ideologia Whiggy (White Guy Groupie), e um liberalismo que estava em declínio. A única exceção foi sua rejeição da ideia de Irish Home Rule – um governo autônomo irlandês.

Mas ser um liberal na época não era de modo algum incompatível com o imperialismo, o racismo, o antisemitismo, o apoio à eugenia e o desdém patriarcal pelo sufrágio universal. Como Candice Millard sugere em Herói do Império, onde conta a história da participação de Churchill na Guerra dos Boer (na África do Sul), ele foi um político criado e formado pelo Império Britânico. Atingiu a idade adulta com um senso avançado de sua grandeza potencial, como alguém que apreciava sua reputação de coragem diante da morte. O Império Britânico tinha milhões de pessoas dispostas a viajar a todo o mundo para dominar pessoas que não tinham a chance desse tipo de aventura. Era um império que dominava 450 milhões de pessoas, cujas revoltas e lutas ocorriam no sul da África, no Egito e na Irlanda. Millard escreve: 
 
Para Churchill, tais conflitos distantes ofereciam uma oportunidade irresistível para a glória e o avanço pessoal. Quando entrou no exército britânico e finalmente se tornou um soldado, com a possibilidade real de morrer em combate, o entusiasmo de Churchill não vacilou. Pelo contrário, ele escreveu para sua mãe que aguardava a batalha por causa dos riscos que oferece.

Churchill conseguiu provar-se um homem dos padrões imperiais, lutando na Índia e no Sudão, ajudando os espanhóis a reprimir os lutadores pela liberdade de Cuba e, após uma breve carreira parlamentar na África do Sul, lutando na Segunda Guerra dos Boers. Esta experiência preparou-o para buscar soluções semelhantes em problemas domésticos. Quando se uniu ao governo liberal de 1906, defendeu medidas agressivamente autoritárias para controlar a desobediência social. A promoção de Churchill no governo, quatro anos depois, ocorreu em um momento de turbulência política crescente no Reino Unido: a luta irlandesa pelo Home Rule, sufragismo, etc. Churchill se opôs a todos com violência.

Há muita ênfase, na hagiografia de Churchill, para refutar a ideia de que ele ordenou o ataque das tropas contra mineiros em greve no País de Gales, algo pelo qual é desprezado na região até hoje. O que de fato aconteceu foi que Churchill enviou batalhões de polícia de Londres e manteve tropas em reserva em Cardiff, caso a polícia não conseguisse fazer o trabalho. Nunca houve dúvida de que Churchill estava ao lado dos patrões, e preparou-se para mobilizar toda a força do estado britânico para resolver as questões. Durante uma disputa com anarquistas armados em Stepney, foi dele a decisão incomum de assumir o comando operacional da polícia durante o cerco; e, finalmente, optou por matar o inimigo ao permitir que eles fossem queimados em uma casa onde estavam presos.

No entanto, esse papel foi de curta duração. Churchill foi nomeado para uma posição militar sênior, que o colocou no comando político da Marinha Real. Um tecnófilo, ele a empurrou para a modernização, o combate aéreo e, mais tarde, os tanques. Mas nada em sua experiência poderia prepará-lo mais para a glória na Primeira Guerra Mundial: “Meu Deus!”, exclamou em 1915. “Isso é história viva. Tudo o que estamos fazendo e dizendo é emocionante – será lido por mil gerações, pense nisso!”.

A natureza guerreira de Churchill pode ter sido culpada pelo desastre militar em Gallipoli em 1915. Num esforço para tomar o Estreito Dardanelos e manter a Turquia fora da guerra, ele foi responsável por uma operação que enviou britânicos, franceses, neozelandeses e australianos – principalmente voluntários, mal treinados – para a derrota na Península de Gallipoli. A debacle que se seguiu destruiu essas unidades e resultou no rebaixamento de Churchill, que deixou o governo e se juntou ao Exército para comandar um batalhão.

Se suas credenciais de classe dominante fossem menos estimáveis, ele teria sido afastado devido àquele fracasso. Em vez disso, retornou ao parlamento em 1916 e mais uma vez subiu nas fileiras do governo – ministro de munições, secretário de guerra, e depois secretário do Ar.

Ele foi um feroz defensor da intervenção para reprimir a Revolução Russa, e escreveu furiosamente sobre o perigo dos “Judeus Internacionais” (comunistas) e sua “sinistra confederação”, contra os quais ele invocou o “judeu nacional” (o sionismo), muito mais aceitável – e isso foi interpretado de maneira mistificada por biógrafos como Martin Gilbert, como prova de seu filossemitismo.

Além de ser motivado por uma dicotomia profundamente antissemita – “bom judeu-mau judeu” – os fundamentos colonialistas do apoio de Churchill ao sionismo foram mais tarde esclarecidos quando se dirigiu à Comissão Real da Palestina, sobre a autodeterminação palestina. Recorrendo ao bestilógico em suas imagens, ele comparou o autogoverno a um cão correndo em seu próprio canil – e ele não reconhecia esse direito. “Eu não admito”, continuou, “que um grande erro tenha sido cometido com os índios da América, ou os negros da Austrália... pelo fato da forte disputa, uma raça de grau mais alto... tenha entrado e tomado seu lugar”.

Como um tático imperial, Churchill recomendou combater a insurgência contra o Mandato Britânico no Iraque com o uso de gás. Na verdade, ele fora pioneiro no uso de armas extremamente mortais na Rússia, contra os bolcheviques. É importante reconhecer que, com o seu apoio ao combate aéreo, ele justificou isso como uma alternativa “humana” e de alta tecnologia a métodos mais brutais. “Sou fortemente a favor do uso de gás envenenado contra tribos não civilizadas”, escreveu e explicou: “O efeito moral deve ser tão bom que a perda de vidas deve ser reduzida ao mínimo”.

Quando alguns no governo britânico da Índia criticaram “o uso de gás contra os nativos”, ele considerou essas objeções “irracionais”. “O gás é uma arma mais misericordiosa do que bombas de alto poder e obriga o inimigo a aceitar uma decisão com menos perda de vida do que qualquer outra arma de guerra”. Essa lógica, como o historiador Sven Lindqvist lembra, tem sustentado algumas das novidades mais bárbaras da guerra. Mesmo o uso de bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki foi justificado em parte como um meio para salvar vidas.

Churchill, como conservador liberal, deveria ter ficado alarmado com a ascensão do fascismo na Europa. No entanto, ele era fortemente otimista e acreditava que Mussolini era um bom governante para a Itália, e o fascismo era útil contra o comunismo. Seu nacionalismo, militarismo e apoio à ordem e à tradição social marcavam sua interpretação do movimento fascista emergente.

“Com o fascismo como tal... ele não teve objeções”, escreve o historiador Paul Addison. "Em fevereiro de 1933 ele elogiou Mussolini... como 'o maior legislador entre os homens'". Paul Mason acrescenta que Churchill agradeceu a Mussolini por ter "prestado um serviço ao mundo" em sua guerra contra o comunismo, sindicatos e a esquerda. Visitando a Itália em 1927, ele declarou: “Se eu fosse italiano, tenho certeza de que deveria ter estado de todo coração com você desde o início para terminar sua luta triunfante contra os apetites e paixões bestiais do leninismo”. Ele escreveu sobre suas “relações íntimas e fáceis com Mussolini, acrescentando que “no conflito entre fascismo e bolchevismo, não havia dúvidas sobre as condolências e convicções”.

Em 1935, Churchill expressou sua “admiração” por Hitler e “a coragem, a perseverança e a força vital que lhe permitiu... superar todas as... resistências em seu caminho”. Addison explica que, enquanto Churchill não aprovava a perseguição do nazismo aos judeus, foram as “ambições externas dos nazistas, e não sua política interna, que causaram o maior alarme de Churchill”.

Mas quais eram as ambições externas que o preocupavam? A invasão da Etiópia pela Itália não perturbou a Churchill. Estava longe, numa zona considerada legítima para a disputa colonial. Quanto ao Terceiro Reich, muitas das suas concepções estratégicas e territoriais inspiraram-se no Império Britânico. Na verdade, o fetiche mais sagrado, “a raça ariana”, foi inventado pelos britânicos, por seus filólogos e arqueólogos que trabalhavam no sudeste asiático. Hitler queria tomar os motivos do império e aplicá-los à Europa.

Isso pode implicar uma guerra de aniquilação contra o “bolchevismo judeu”, e é difícil acreditar que Churchill ou qualquer outra pessoa na classe dominante britânica teria tido algum problema com isso. Mas a expansão no continente europeu era outra questão. Em outras palavras, o fascismo só se tornou um problema quando Churchill reconheceu nele uma ameaça para o Império Britânico e a ordem européia de estados-nação dominante. Só então, e somente a esse respeito, o fascismo se tornou pior do que o comunismo.

Churchill tornou-se um proeminente advogado do rearmamento e um adversário da maioria do establishment militar e político britânico, que queria apoiar Hitler em sua guerra contra a Rússia. No entanto, ele continuou pensando que os nazistas poderiam ser isolados e que um eixo poderia ser criado com os fascismos italianos e espanhóis e, como tal, continuava a lisonjear Mussolini e se opunha a qualquer apoio à Espanha republicana, antifascista. Na Guerra Civil Espanhola, que foi, em muitos aspectos, um prelúdio para a Segunda Guerra Mundial, ele considerou a República como uma “frente comunista” e os fascistas apoiados por Hitler, um “movimento anti-vermelho” apropriado. Certamente, Churchill não poderia ter tido nenhuma objeção a Franco bombardear seus inimigos com gases venenosos, trazendo para território espanhol os métodos de combate usados no Marrocos, uma vez que eram métodos que ele próprio considerava humanos e condignos.

Em última análise, a agressão de Hitler forçou a classe dominante britânica a abandonar sua preferência majoritária pela colaboração com o Terceiro Reich (“apaziguamento”). A invasão da Polônia convenceu o governo de Neville Chamberlain a entrar na guerra. Mas o julgamento do governo sobre a guerra em breve resultou em uma crise, levando-o ao colapso e à sua substituição por uma coalizão liderada por Churchill.

Mesmo após sua nomeação, Churchill persistiu em buscar uma aliança, menos ambiciosa, com os regimes fascistas. A historiadora Joanna Bourke relata o pedido desesperado de Churchill a Mussolini em maio de 1940: 
 
É tarde demais para impedir que um rio de sangue flua entre os povos britânico e italiano?... Os herdeiros comuns da civilização latina e cristã não devem ser voltados uns contra os outros em conflitos mortais. Olhe para isso, eu imploro em toda honra e respeito antes que o sinal de medo seja dado.

 
A política e os interesses da política britânicas são baseados na independência e na unidade da Espanha e estamos ansiosos para vê-la assumir o devido lugar como um grande poder mediterrâneo e como um dos principais membros da família da Europa e da cristandade.

Embora isso não tenha acontecido na Itália, Churchill chegou a uma aliança com Franco que prolongou a vida de seu regime.

É claro que, como muitos sugeriram, a Segunda Guerra Mundial não era apenas uma só guerra. Ernest Mandel argumentou que eram pelo menos cinco guerras: ao lado da guerra entre poderes imperialistas, havia também uma guerra popular anti-colonial envolvendo assuntos coloniais do sul da Ásia e África, a autodefesa da Rússia, a luta da China contra o imperialismo japonês e uma guerra antifascista popular. Havia lutas populares contra o fascismo na Grécia, Espanha, Jugoslávia, Polônia e França, enquanto na China, Vietnã, Índia e Indonésia a resistência era contra o imperialismo japonês. Mesmo na Grã-Bretanha, houve uma forte radicalização após 1940, e esforços concertados para transformar o esforço de guerra em uma guerra popular e antifascista.

Para Churchill, no entanto, era apenas uma guerra imperialista, e a dirigiu como tal. Foram os britânicos que primeiro bombardearam civis durante o conflito, atacando-os nos subúrbios de Berlim. A Grã-Bretanha não conseguiu derrotar o Terceiro Reich através de um enorme exército continental, afirmou, mas “deve destruir o regime nazista através de um ataque absolutamente exasperante e exterminador de bombardeiros muito pesados”. A grande maioria das bombas foi voltada para edifícios e áreas residenciais, em vez da infraestrutura estratégica. De acordo com o diretor da Air Intelligence, citado pelo historiador Richard Overy, as bombas foram direcionadas para “as casas, a cozinha, o aquecimento, a iluminação e a vida familiar daquela parte da população que, em qualquer país, é menos móvel e mais vulnerável a um ataque aéreo geral – a classe trabalhadora". Isso culminou, notoriamente, no bombeamento de Dresden.

A tática de incineração de civis apostou, absurdamente, na ideia de que isso desmoralizaria a população e eliminaria a resistência – uma ideia que o Império britânico devia ter repetidamente aplicado nas guerras coloniais. Uma guerra antifascista poderia ter poupado a população civil, em busca de apoio para um movimento de resistência antifascista que aceleraria o colapso do nazismo. Mas para Churchill, isso era simplesmente impensável. Ele foi o homem que se juntou à carga de cavalaria em Omdurman para se vingar do general Gordon, e cuja carreira militar foi marcada por um entusiasmado amor pelo perigo e pela morte.

Churchill foi o homem que lutou para reprimir os insurgentes em todos os lugares, o homem que considerou adequado bombardear “nativos” onde quer que eles recusassem o domínio britânico. A guerra total foi a culminação lógica.

Após a guerra, quando houve um debate entre os Aliados sobre o uso da dependência de Franco sobre o petróleo para persuadir o regime a moderar, Churchill ficou indignado com raiva, declarando que era “pouco menos do que revolver uma revolução na Espanha”. Você “começa com o petróleo, e acabará rapidamente com o sangue”. Os comunistas, disse,”se tornariam mestres da Espanha” e a “infecção se espalharia muito rapidamente pela Itália e pela França”. Derrotada a agressão nazista, o comunismo era de novo o principal inimigo, e ele daria o sinal disso no discurso onde forjou a expressão “cortina de ferro”, em março de 1946, que anunciou a Guerra Fria.

Quando a guerra acabou Churchill estava enfraquecido. Ele fora extremamente popular durante o conflito, e continuaria a ser muito respeitado por sua decisão de lutar, e sua implacável energia na luta. Mas havia forte demanda por grandes reformas sociais, e isso significou uma mudança entre os trabalhadores.

Churchill gozou de mais um período como primeiro ministro, a partir de 1951 e durante ele, manteve a maioria das reformas implementadas pelo Partido Trabalhista, mas foi principalmente brutal contra a revolta do Mau Mau, no Quênia, e a insurgência malaia. Na da Malásia, Churchill voltou a ser um “modernizador” bélico: a Grã-Bretanha foi o primeiro país a usar o agente laranja e herbicidas do mesmo tipo, e adotou com alegria a mesma política de bombardeio de saturação que os Estados Unidos aplicariam no Vietnã. E então, ficando decisivamente doente, Churchill se aposentou.

Tendo passado grande parte de sua vida repelindo ameaças “nativas” ao Império Britânico, ele ajudou a salvá-lo do Terceiro Reich. Mas as pessoas que julgou aptas para governar, na maioria dos casos conseguiram derrubar essa regra, em parte por causa da mobilização mundial contra Hitler.

Faz sentido que o estado britânico idolatre Churchill. Sua história é a história do império. Mas quem, sabendo o que é essa história, pode participar da reverência a ele?

= = =
[0] Tradução: José Carlos Ruy.
= = =

sábado, 21 de dezembro de 2019

ARTE REALISTA| Desconstruído


Sinopse: Melhor acreditar em Papai Noel do que na sinceridade de um macho desconstruído. (Porta dos Fundos)
= = =
Desconstruído (farsa, BRA, 2019), de Rodrigo Van Der Put.
= = =

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Eu não entendi. Você entendeu?

por Arthur D'Elia

A poesia concretista brasileira possui algumas características essenciais, tais como: realização de experiências com a linguagem poética, incorporação de recursos visuais, aventuras verbais e fragmentação de palavras (BOSCO, 2007). Tais aspectos se evidenciam em alguns poemas. Importante ressaltar, para evitar confusões, que nem todos os poemas da tradição concretista se inserem no tipo de abordagem que será explicitada mais adiante. Certos escritos são valiosos; no entanto, eles não serão expostos com a devida análise no presente texto.

Por conseguinte, para que se inicie a análise, alguns trabalhos do autor citado a seguir:


 










Em tais obras, percebe-se uma marcante característica de alguns dos poemas concretistas, que é a hiper-valorização da forma em prol do conteúdo. Ela fica encarregada por informar o sentido do poema. Todo esse jogo de palavras visa passar a informação ao leitor. Esse tipo de posicionamento perante a escrita literária recebeu um tratamento por parte de Marcos Siscar, que tentou situar essa forma de fazer poemas dentro do contexto brasileiro.

Sob o nome de “impasse da modernização”, Siscar ressalta alguns problemas políticos que assolaram a segunda metade do século XX, tais como: anistia e redemocratização após um período ditatorial no Brasil, e a queda do “comunismo” no cenário internacional. Esses acontecimentos teriam influenciado o desenvolvimento literário brasileiro. Em segundo lugar, com o nome de “O enfrentamento das ruínas” se tem a exposição dos seguintes fatos: anos 70/80 marcados por uma profunda desordem moral e estética, degradação dos valores político-poéticos; surgimento de metalinguagem erudita e pragmática; e o abandono do projeto humanista (SISCAR, 2005). Essa última característica, de forma imediata, remete às obras já citadas. A utilização da metalinguagem erudita constitui a pedra angular do concretismo em alguns casos, principalmente no que tange aos poemas de Décio Pignatari. É perceptível, em suas obras já citadas, o giro que a linguagem desenvolve sobre si mesma a fim de que seja possível captar o sentido que está no próprio poema (ele é o tema de si próprio).

Diante do que já foi exposto, cabe uma crítica à tamanha predominância da forma sobre o conteúdo. O estudo da substância humana do homem faz parte da essência da literatura. O bom escritor é aquele que consegue tornar sensível a realidade por meio de sua reprodução elaborada artísticamente. Ele deve se esquivar da mera fotocópia do real, bem como de formulações abstratas que se distanciam deste (LUKÁCS, 1965). Para ficar evidente tal posição:
A verdadeira arte, aprofunda-se sempre na busca daqueles momentos mais essenciais que se acham ocultos sob a capa dos fenômenos; mas não representa esses momentos essenciais de maneira abstrata, fazendo abstração dos fenômenos e contrapondo-se àqueles, e sim apreende exatamente aquele processo dialético vital pelo qual a essência se transforma em fenômeno, se revela no fenômeno, fixando, também, aquele aspecto do mesmo processo segundo o qual o fenômeno se manifesta, sua mobilidade, a sua própria essência (LUKÁCS, 1965, pág. 29).
Para melhor revelar o tipo de abordagem da arte que torna possível problematizar o trabalho de Décio Pignatari, outra consideração de Lukács é importante. Para tanto: 
A estética marxista identifica o maior valor da atividade criadora do sujeito artístico no fato dele assumir nas suas obras o processo social universal e torná-lo sensível (LUKÁCS, 1965, pág. 32).
Diante disso, analisando os poemas de Pignatari, é evidente que sua criação não torna sensível a essência, o conteúdo, tal como grandes gênios da arte o faz. Essa questão não é esquecida por Siscar quando se refere à questão da “metalinguagem erudita” ou a crise da poesia, que afligem, sobretudo, o cenário brasileiro em um determinado momento histórico (SISCAR, 2005). Nesse tipo de exposição concretista, há uma supervalorização do fenômeno ou forma, que fica evidente na máxima “A forma é que informa”.

Entretanto, tal perspectiva parece pressupor uma espécie de hiper capacidade do sujeito de um modo que seja capaz de apreender o conteúdo da obra, retirando assim toda a função do artista desse processo. Isto porque a forma está de modo excessivo. O autor requer da comunidade uma extremada capacidade para desvendar todo jogo de palavras embutido, para depois sim conseguir acessar a sua essência. No poema “coca-cola” isso fica evidente, assim como nos demais já citados. Ainda que, deve-se reconhecer uma relação dialética nestas obras, porém, esta fica meramente abstrata se não é capaz de trazer à tona o que está em jogo no poema.

Aqui deve ser reconhecido também que alguns indivíduos podem conseguir apreender o sentido do poema, mas o ponto de partida para o tratamento da arte não deve ser a vivência individual de cada indivíduo, e sim o modo como na obra em si mesma o artista possibilita a captação do devir humano do ser humano, da substância humana.

Nada mais fraco esteticamente que isso. O bom artista torna sensível a realidade a partir de sua apropriação feita e da adequação artística que torne isso possível. Pode-se dizer que o predomínio na relação obra-contemplador está na obra e não em quem está posto a admirá-la ou posteriormente representá-la. Isso fica evidente quando se depara com o seguinte poema “tirado de uma notícia de jornal” de Manuel Bandeira:
João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
(BANDEIRA, 1930)
No presente poema, ainda que o autor seja um pouco anterior ao Pignatari, há uma relação entre forma e conteúdo ou fenômeno e essência que torna sensível a essencialidade da obra. O objetivo de retratar determinado aspecto da vida cotidiana; um morador de certa comunidade (pobre), que não poderia ser lembrado nem pelo número de sua casa, morre afogado após um pleno deleite sob as amarras do hedonismo desenfreado. Bandeira torna acessível o contato com o modo como se configura a vida desse tipo de pessoa de dada posição social menos favorecida. Problematizando-a. A dialética envolvida não é abstrata como em alguns poemas “concretos”, mas sim concreta e clara.

O que foi até então exposto insere-se na problemática levantada por Marcos Siscar, acerca da relação entre realidade e poesia ou a consideração desta última como certo modo de ler a realidade. A exaustão de sentido, de que ressalta Siscar, bem como sua preocupação com a crise que atinge a poesia brasileira, insere-se nessa questão dos poemas concretistas já analisados (SISCAR, 2005). Para que fique clara, a consideração acerca da obra de arte, sobretudo a literatura, algumas breves considerações a mais são necessárias.

A beleza de uma obra de arte ou de um escrito literário, como bem já foi demonstrada, não reside na extrapolação sentimentalista do autor ou em um princípio de ultraconsciência ou até mesmo no extremo peso jogado sobre a forma a fim de que esta por si mesma repasse o sentido da totalidade apresentada. O belo revela-se objetivamente a partir do tornar sensível a realidade pelo artista, ou seja, depende fundamentalmente da apreensão do real pelo autor e sua exposição de maneira artística de modo que não seja nem fotocópia nem algo extremamente abstrato. A partir disso, para uma última exposição crítica dos poemas já explicitados, um retorno ao texto de Lukács é importante. Para tanto:

Portanto, se a estética marxista identifica o maior valor da atividade criadora do sujeito artístico no fato dele assumir nas suas obras o processo social universal e torná-lo sensível, experimentalmente acessível, e se nessas obras se cristaliza a autoconsciência do sujeito, o despertar da consciência do desenvolvimento social, nada disso implica em uma subestimação da atividade do sujeito artístico, e sim, pelo contrário, temos uma legítima valorização desta atividade, mais elevada do que a de qualquer outro critério precedente (LUKÁCS, 1965, pág. 32).

Diante dessa abordagem, deve-se enfatizar que por mais que se tenha uma crítica, levantamento de questões referentes à realidade, nos respectivos poemas de Décio Pignatari, ele não consegue tornar acessível tal conteúdo. Até mesmo em seu poema “coca-cola”, em que se pretende realizar uma crítica à indústria do refrigerante. Todo o complexo de questões permanece abstrato à espera de um “eu” transcendental capaz de apreender o jogo dialético envolvido. Portanto, a partir disso, fica a pergunta: “Você entendeu”?

= = =
Bibliografia:
BANDEIRA, M. Libertinagem. 1930.
BOSCO, J. Concretismo: a liberdade concreta. Bahia: Universidade Estadual de Feira de Santana, 2007.
LUKÁCS, G. Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1965.
SISCAR, M. A cisma da poesia brasileira. 2005.
= = =

sábado, 14 de dezembro de 2019

ARTE REALISTA| Casal 30


Sinopse: Casais youtubers são tão fofinhos! Eles respondem às perguntas dos fãs e dão dicas super sensatas. (Porta dos Fundos)
= = =
Casal 30 (farsa, BRA, 2019), de Ian SBF.
= = =

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

O freudismo e os “freudo-marxistas”

 
por A. Stoliarov
 
“Freud agitou o mundo. São numerosos aqueles que pensam que a psicanálise mudará a face do globo”. Assim se exprime um dos discípulos de Freud na Europa Ocidental, F. Wittels.

O próprio Freud se iguala a Copérnico e a Darwin. Suas teorias, mal acolhidas pelo “grande público” logo após 1890, dão hoje à Europa burguesa um novo Evangelho. Freud, objeto de um entusiasmo geral, é levado às nuvens. Para numerosos social-democratas ele substituiu Marx.
 
Este entusiasmo penetrou até na URSS. Desnecessário dizer que ele não tem nem poderia ter na sociedade soviética a extensão que tem nos países do Ocidente. Ele tem encontrado na URSS muitos antídotos.

Se, nos países do Ocidente, social-democratas e personalidades de “extrema esquerda” como Henriette Roland-Holst fazem do freudismo o “complemento” do marxismo, na URSS, marxistas, ou para dizer melhor, marxistas deploráveis, tais como M. A. Reissner, manifestaram a mesma tendência. O professor Reissner é o autor das seguintes linhas:
 
Apenas a aplicação da dialética materialista, da doutrina de Marx, pode livrar os germes preciosos do freudismo da envoltura ideológica da sociedade burguesa, das deformações metafísicas idealistas, das contradições e das inconsequências. A ciência marxista deve encontrar em si mesma as forças e a capacidade de submeter a um novo trabalho de elaboração a enorme documentação acumulada por Freud e também de continuar a linha monista e materialista que Freud seguiu antes de mais nada. Somente os participantes da luta de classe do proletariado poderão forjar por meio da teoria de Freud uma arma nova contra a neurose coletiva da religião. 

Pode-se recomendar calorosamente os elementos da psicanálise aos psicólogos e aos sociólogos marxistas, pois eles aí encontrarão as fontes extremamente fecundas do enriquecimento e do aprofundamento de suas pesquisas.[1]

Apreciações deste gênero foram muitas vezes formuladas na imprensa soviética. Mas antes de falar dos freudianos, convém dizer algumas palavras da própria doutrina de Freud.

O freudismo nasceu de uma tendência particular da medicina que estuda as doenças psíquicas ou nervosas. O método de tratamento das doenças nervosas que Freud e sua escola usam chama-se psicanálise. Freud foi conduzido por seus trabalhos a concluir que todas as neuroses têm por base tendências sexuais, são consequência destas ou, mais exatamente, a resultante de seu recalque, quer dizer, da recusa em satisfazê-las que se impõe à personalidade, o próprio pensamento de sua satisfação não sendo admitido na região da consciência. “As neuroses, explica Freud, são de certa forma doenças específicas da função sexual; a questão de saber se uma pessoa pode, em geral, estar atacada de neurose, depende da quantidade de libido e da possibilidade de satisfazê-la e de lhe dar uma saída através da satisfação”.

O termo libido designa para Freud a atração sexual (amorosa, “erótica” e sexual no sentido estrito da palavra), “a energia pela qual se manifesta na vida espiritual a atração sexual”.[2]
 
A psicologia humana se baseia em duas atrações que se situam, por sua natureza, entre o físico e o psíquico propriamente dito. A psicanálise distingue dois grupos essenciais, dois complexos de atrações: aqueles do “eu” (aspiração à conservação) e o da atração sexual.

A neurose se produz mais frequentemente quando a atração sexual não pode ter resultado prático nem satisfação, em consequência do conflito interior resultante da oposição entre “a aspiração-eu” e o “princípio da realidade”, quando acontece que a aspiração sexual sob sua forma dada é inadmissível, estando em contradição com o instinto de conservação da personalidade ou com o respeito que esta tem por si mesma, sendo antissocial, ou por qualquer outra razão análoga.

Tem lugar uma “seleção” das aspirações, uma “triagem” efetuada à revelia da consciência e sem a participação da consciência. Na opinião de Freud, atua uma força psíquica particular; Freud chama-a “censura”.

Em seu estado primitivo e na sua primeira infância, o homem não se inspira, segundo Freud, senão em um princípio fundamental, o Lustprincípio ou “princípio do prazer”. Nada é ainda “proibido”. Mais tarde, chegando aos graus superiores de seu desenvolvimento, o homem vê aparecer o “princípio da realidade”. A aspiração ao prazer, chocando-se com o princípio da realidade, é frequentemente recai cada fora da esfera da consciência, pela ação da “censura”.

Diversas aspirações “perversas”, que na infância constituem a forma costumeira de emoções sexuais inconscientes, e no ser adulto representam um retorno ao estado infantil, são assim recalcadas. As tendências incestuosas e o narcisismo, ou seja, o estado psíquico no qual a libido tem por objeto seu próprio eu, jogam neste processo um papel enorme.[3]

Segundo a teoria de Freud, a libido do homem, na infância, tem sempre uma tendência ao narcisismo. Só mais tarde ela se relaciona com os objetos exteriores (outras pessoas etc.), e ainda assim não inteiramente. O perigo de um retorno doentio “ao estado infantil” pela neurose subsiste sempre.

O “complexo de Édipo”, quer dizer, a atração sexual das filhas pelo pai, dos filhos pela mãe etc. acompanhado de um sentimento de ciúme das mães com relação ao pai etc., desempenha para a escola psicanalítica um papel enorme na formação das neuroses. A própria designação deste complexo psíquico liga-se ao mito grego do rei Édipo, que matou seu pai e desposou sua mãe. Freud considera que o mito de Édipo caracteriza todo um período da história real da humanidade, período ao qual remontam as origens da exogamia, do culto totêmico, do poder do primogênito etc. O “complexo de Édipo” é o modelo de aspirações “antissociais” em contradição com o “princípio da realidade” que o aparelho psíquico da “censura" se esforça para recalcar, para não deixar chegar ao limiar da consciência. As tendências sexuais antissociais são “eliminadas” da esfera da consciência da personalidade em consequência de um conflito psíquico. O homem pode muito bem não ter nenhuma consciência da existência passada ou presente nele de semelhantes aspirações; elas estão ausentes de sua consciência, mas permanecem na qualidade de “pensamentos inconscientes”.

Estes “pensamentos inconscientes”, “recalcados” e afastados do limiar da consciência por serem inadmissíveis para o “eu”, constituem o “mundo” oculto do “inconsciente espiritual” de Freud.
 
O conteúdo deste “inconsciente” de Freud caracteriza“-se por dois fatores principais: 1) Ele é formado de emoções inteiramente provindas do passado, de “aspirações ao prazer” herdadas do homem pré-histórico e de emoções sexuais da primeira infância à qual nada era “proibido” e para a qual faltava o “princípio da realidade”; 2) o Inconsciente de Freud é necessariamente hostil à consciência, seu conteúdo é necessariamente “inadmissível” é consciência, oposto aos princípios da consciência.
 
A psicologia sexual dos povos primitivos, semelhante à psicologia primitiva da infância, se coloca na esfera do “inconsciente”. Lá se agitam nas sombras todos os “demônios” dos impulsos incestuosos, do complexo de Édipo, do narcisismo, da “aspiração à repetição”, do “complexo de castração”, do erotismo anal etc.

Recalcadas nas esferas do inconsciente, todas estas tendências nem por isso perdem sua força e sua significação. Elas continuam a agir sobre a conduta do homem e sobre o estado de seu sistema neuropsíquico. Sua influência se manifesta com força sobretudo sobre as pessoas portadoras de doenças nervosas.

A vida espiritual da histérica — escreve Freud — está cheia de pensamentos inconscientes, mas ativos; daí todos os sintomas do mal. Na realidade, o que caracteriza sobretudo o estado histérico da psique, é que ela está inteiramente em poder de representações inconscientes. Se uma mulher histérica tem náuseas, pode estar sob influências da ideia da gravidez. Esta mulher não sabe, entretanto, nada desta ideia, ainda que a psicanálise possa facilmente revelar-lhe sua presença em sua vida interior e torná-la acessível à sua consciência.[4]

A influência dos “pensamentos inconscientes” não se manifesta só nas doenças. Ela existe também nas pessoas sadias. Ela se manifesta através de perturbações funcionais, por erros de memória, por lapsos, pelos sonhos cotidianos. Freud considera a interpretação dos sonhos como um de seus maiores méritos. No final das contas a vontade do homem aparece submetida a obscuros instintos sexuais cujas origens remontam a tempos findos de há muito. Fenômenos obsedantes e inconscientes pesam sobre o homem como uma fatalidade, como o destino, como o fatum, como um poder inexorável, semelhante a esta tendência à repetição dos estados anteriores, primitivos, assinalados por Freud, e que é, em última instância, uma tendência para a morte.

A humanidade, diz Freud, está impregnada de narcisismo nas primeiras fases de seu desenvolvimento. Ela considera o homem como o centro e o coroamento do mundo e sua força como ilimitada. Copérnico e depois dele Darwin solaparam esta representação do mundo imbuída de narcisismo. O terceiro golpe psicológico, o mais sensível ao amor próprio do homem, é trazido pelo próprio Freud, que demonstra que “o eu humano não é o senhor em sua própria casa”, em sua própria alma.

Os freudianos não se limitam em seus trabalhos à neuropatologia e à psicologia individual. Eles têm propensão a estender os métodos da psicanálise ao estudo dos fenômenos sociais.
 
Freud, em seu Totem e tabu, aborda a explicação de problemas puramente sociais. Neste livro ele apresenta seu método ao sociólogo especialista nos seguintes termos: “Que ele se disponha a considerar que nossos trabalhos não têm outro objetivo que o de incitá-lo a fazer melhor a mesma coisa ao aplicar, aos assuntos que ele conhece, o instrumento que nós lhe podemos dar”.

Já vimos que certos sociólogos marxistas levaram este conselho muito a sério e interessante conhecer os resultados da aplicação do método de Freud à sociologia pelo próprio Freud e seus discípulos mais próximos.

A psicologia dos povos primitivos se explica em Freud por sua analogia com a psicologia das neuroses. A origem da sociedade, os primeiros passos desta, se prendem ao famoso “complexo de Édipo”. O primeiro estado da sociedade é a horda primitiva. Freud diz: a respeito: “Não há ali mais que um pai cruel e ciumento que se reserva todas as fêmeas e expulsa seus filhos ainda na época de crescimento. Nada mais”. A passagem à fase seguinte das relações sociais se efetua assim: “Os irmãos um belo dia se reúnem, matam e comem o pai e põem fim à horda fraternal. Eles se identificam com o pai devorando-o; cada um assimila uma parte de sua força. O banquete totêmico, que é talvez a primeira festa da humanidade, é a repetição e a reminiscência deste crime memorável que marca as origens de muitas coisas: da organização social, das restrições morais e da religião”.

A religião, segundo Freud, é a “neurose geral dos estados de obsessão”. As outras ideologias, tais como a arte etc., são sublimações (quer dizer transformações superiores) das aspirações sexuais; são as transfigurações do incesto. Freud chega algumas vezes a ideias simplesmente “admiráveis”. De onde vem por exemplo a aviação? Quem diria! Da aspiração sexual infantil! “A aviação, escreve Freud, que enfim atinge hoje seu objetivo, tem uma origem “infantil erótica, porque o desejo de voar em sonho significa apenas o desejo apaixonado de ser capaz de atividade sexual”.

Quando um dos alunos e discípulos de Freud, Kolney desejou fazer uma análise teórica freudiana da vida social contemporânea, chegou aos seguintes resultados: o comunismo é um retorno à psicologia infantil, uma variedade da loucura; o comunismo agrário corresponde mais especialmente à aspiração primitiva eterna dos filhos-irmãos às relações sexuais com sua mãe comum (Kolney faz aqui um jogo de palavras fortalecendo a expressão “mãe-terra”); o leninismo é uma psicose de guerra; o revolucionarismo proletário é o produto de um excesso de libido acumulada; as queixas do proletariado que se crê explorado não passam de formas da mania de perseguição; a divisa “Proletários de todos os países, uni-vos!” é, enfim, uma expressão homossexual do amor unissexual.

Tal é, se podemos dizê-lo, a sociologia do freudismo!

E é esta teoria que seduz alguns de nossos “marxistas”! Acredita-se comumente que eles repelem inteiramente e sem reservas a sociologia do freudismo e se limitam a conservar a psicologia individual que, em sua opinião, em nada se opõe ao marxismo. Estas duas afirmações são falsas. É falso que os marxistas seduzidos pelo freudismo repelem por completo os elementos sociológicos da teoria de Freud. Já citamos o professor M. Reissner que fala, como Freud, da religião como uma neurose e pensa evidentemente que ela é nociva quando se apropria da energia psíquica da libido, que poderia, sob outras formas, “aniquilar os exploradores”[5]. M. Reissner atribui também ao pensamento dos primitivos um fundamento sexual. “Em particular a descoberta (por Freud) do pensamento dos primitivos e das crianças, formas de representações essencialmente sexuais, não poderia ser desprezada pela doutrina do materialismo histórico”. Ele fala também da origem sexual das ideologias das classes e das épocas, assim como da sublimação e do recalque no domínio da ideologia. Ele encontrou naturalmente na doutrina de Freud “raízes puramente materialistas”, “bases rigorosamente científicas e materiais”[6].

Depois de Reissner vem o camarada A. Variash. Em sua Introdução à História da nova filosofia, no capítulo “Da natureza das ideologias”, o camarada Variash estuda minuciosamente as “leis da vida espiritual inconsciente” de Freud (o “adensamento”, a “transferência”, a “segunda elaboração” etc.). Em sua opinião, ele o faz porque acha possível explicar, baseando-se nestas “leis” os fenômenos da psicologia social; da ideologia etc. Porque ele considera que, com algumas reservas, o inconsciente de Freud é no fundo uma noção marxista, aplicável aos fatos da vida social e à explicação das ideologias.
 
Em seu relatório à Academia Comunista, o camarada Variash diz que Freud e outros psiquiatras “projetaram uma nova luz sobre o mecanismo do sonho, as perturbações psíquicas, a formação dos mitos e das religiões, as instituições primitivas do homem: o totem, o tabu, os costumes nupciais, os ritos, as representações religiosas, as ideias sobre a alma, o problema da morte, as primeiras instituições do poder e as primeiras decisões sociais”.[7]

Na edição posterior deste relatório, incluída na História da nova filosofia, o camarada Variash, cedendo à crítica marxista, modificou ligeiramente esta frase e colocou no lugar de “projetou uma nova luz”, “procurou formular uma nova teoria”[8]. A despeito desta retratação, manteve suas antigas posições.
 
Seu artigo “O freudismo e sua crítica marxista” (em A dialética na natureza Vol. 1, 1926) é muito característico a este respeito. Ao dessolidarizar-se de Freud repetidamente, sob pressão da crítica marxista ortodoxa, A. Variash tende visivelmente a “aproximar” o marxismo do freudismo. É assim que ele aproxima nitidamente a nação freudiana do inconsciente, profundamente idealista quanto a seu fundamento (retomaremos a isso), das noções do inconsciente que se encontram em Marx (quando, por exemplo, Marx fala das relações sociais que se estabelecem independentemente da vontade e da consciência dos homens que delas participam). Variash considera que se trata da mesma categoria, apenas com algumas variações, em Marx e Freud. Ele escreve: “Nós sabemos que esta categoria (grifo de A. S.) desempenha um papel na filosofia social de Marx e de Engels. Mas Freud concebe esta noção de uma maneira extraordinariamente estreita, individualista e não dialética (se bem que dinâmica)”. “Nós pensamos que (...) o próprio Freud reprova a limitação excessiva da noção do inconsciente. Mas se alargarmos esta noção e a explicarmos por causas econômicas e políticas, chegaremos à noção expressa por Marx. Freud estreitou esta noção marxista”.

Parece, portanto, segundo Variash, que “o próprio Freud” considerava necessário “alargar” sua noção de “inconsciente” de modo a torná-la “marxista”. A característica específica do “inconsciente” de Freud permaneceu impenetrável para Variash... para não dizer que as categorias do marxismo lhe são igualmente impenetráveis. Embora haja entre as categorias do freudismo e do marxismo uma diferença essencial de metodologia geral, Variash considera que os métodos freudianos são em princípio aceitáveis e não exigem mais que algumas correções de pouca monta. Ele escreve o que se segue:

O freudismo elaborou toda uma documentação, voltou sua atenção para fenômenos pouco conhecidos até o presente (o incesto), mas os psicanalistas, não conhecendo o marxismo, não podiam chegar a conclusões justas. Também a maneira como o freudismo abordou os fenômenos sociais até o presente nos é inútil (nada mais que “inútil”? A. S.), ao nos desorientar em muitos pontos (?) Mas se, como acontecerá certamente, médicos especialistas, que sejam também marxistas, se ocuparem do freudismo, poderão obter muitos resultados positivos (grifo de A. S.).

Assim, a “condenação” do freudismo por Variash é acompanhada de tantas “pequenas reservas” que ela se reduz em realidade à dupla diretiva seguinte: Freudianos, venham à escola do Marxismo! Marxistas, vão à escola do freudismo! O que dará esta síntese? Evidentemente uma sorte de freud-marxismo que já desencaminha alguns camaradas.

O camarada Zalkind está entre os “freudo-marxistas” ou “freudo-comunistas” atuais. O camarada A. B. Zalkind, na sua “sociologia”, apoia-se no método freudiano onde o pivô é a noção do inconsciente. Ele é de opinião que a doutrina do inconsciente ao estabelecer, a despeito de seu autor, Freud, as claras leis da origem social da “seleção psíquica”, contribui grandemente para o estudo da “consciência” e da “subconsciência” de classe (psico-fisiologia de classe) e para o esclarecimento dos mecanismos de classe do processo criador (no domínio da ciência, da arte, da atividade social etc.).[9]

Vemos que o freudismo completa o marxismo. A. B. Zalkind não se limita ao elogio platônico da metodologia de Freud; tenta aplicá-la ao estudo dos fenômenos sociais atuais. Devem-se à sua pena muitos artigos: “A revolução do ponto de vista psiconeurológico”, “Da psicologia do Partido Comunista da Rússia”, “O reflexo do objetivo revolucionário”. Nós ficamos sabendo neles que “a revolução russa de Outubro justificou firmemente, por seu desenvolvimento vitorioso, suas sãs origens neuropsíquicas”; que a revolução começou a abalar os fundamentos do misticismo decadente das massas populares" e outras coisas do gênero, algumas vezes bastante “singulares” (como a “natureza decadente” das massas populares no momento em que a revolução atesta suas “sadias origens neuropsíquicas”).
 
Para o camarada Zalkind, o freudismo “apresenta aos olhos dos biólogos marxistas, e também dos psicólogos marxistas, um imenso interesse metodológico”.

Carece dizer, mais especialmente no que concerne ao camarada Zalkind, que ele é, quanto ao método científico, um eclético típico que não se limita a reunir o marxismo e o freudismo, mas agrega ainda ao freudismo o “reflexologismo”. De sorte que não chega a nada de coerente.
 
Se escritores marxistas sujeitam-se em tal grau à “sedução” da “sociologia” e da metodologia do freudismo, não é necessário dizer que o freudismo fornece às “doutrinas” burguesas numerosas ocasiões de desenvolvimento falso e reacionário.

As observações freudianas semeiam as obras contemporâneas de psiquiatria, de biologia etc., chegadas há pouco na URSS. Pode-se encontrá-las em representantes da escola materialista em biologia, cujo método científico deveria, ao que parece, distanciar-se do subjetivismo arbitrário e do misticismo dos “psicanalistas”.

O professor V. V. Savitch escreve, no entanto, em seu pequeno livro As bases da conduta do homem (1927):

É preciso mencionar entre outras manifestações superiores da sexualidade a fé (...) A fé cega (...) A fé conduz comumente ao sacrifício: é o que melhor a caracteriza. “Glória a vós, sombras queridas, que destes vossa vida pelos outros”, tais são as inscrições que se pode ler nas arcadas da Praça das Mártires da Revolução.

O camarada Savitch substitui aqui a reflexologia do freudismo; e o freudismo se manifesta abertamente nele como uma ideologia reacionária que se lança contra a revolução reduzida a uma manifestação “cega” da “sexualidade”. Esta utilização das ideias freudianas na literatura antimarxista e reacionária é muito característica.

A apreciação metodológica geral do freudismo por nossos “marxistas-freudianos” coloca-a no fundo, como uma sã doutrina materialista que os marxistas devem aproveitar. “Freud e seus alunos, diz o camarada Variash, não sabem provavelmente que sua ideia mestra é a do marxismo”. “Eu penso que o freudismo se relaciona com o marxismo como a teoria do movimento browniano com a eletrodinâmica. Assim como toda psicologia, o freudismo se integra ao materialismo dialético, como uma de suas aplicações a um caso particular”.[10]

Estes filósofos têm razão no fundo?

Coloquemos a questão.
 
Em primeiro lugar, o freudismo não constitui um sistema harmonioso; suas assertivas são frequentemente as mais contraditórias, confusas e indeterminadas. No domínio particular da neuropatologia, a interpretação exclusivamente sexual das neuroses suscita objeções decididas dos especialistas. Mas é a crítica metodológica de Freud, e não esta crítica particular que nos interessa.
 
O método de Freud provoca objeção antes de mais nada por seu psicologismo absoluto, por seu caráter “antifísico”. Ele é o antípoda do método objetivo da reflexologia. Se a afirmação de Hegel de que “só se pode estudar aquilo que foi mensurado” é justa, o método subjetivo, puramente psicológico, da psicanálise, não pode servir ao estudo científico do objeto.

Os freudianos consideram que ultrapassaram as fronteiras dos métodos da introspecção sobre os quais se baseava todo o edifício da velha escola subjetiva em psicologia. Mas eles apenas se iludem. Não que a psicanálise faça da introspecção um de seus métodos. Não se poderia prescindir da introspecção no estudo da vida psíquica do homem. Mas seus métodos devem desempenhar no sistema da psicologia um papel subordinado; eles devem ser controlados pelos métodos do estudo objetivo das reações do organismo vivo. A psicanálise opera na realidade com conceitos sobre o homem (objeto de seu estudo) baseados exclusivamente na introspecção. Em outras palavras, a psicanálise opera exclusivamente sobre dados psíquicos subjetivos e não materiais, que não são passíveis de nenhum estudo quantitativo, de nenhuma mensuração.

A fisiologia e estados fisiológicos do organismo parecem não existir para o freudismo. Ele não considera nada além do encadeamento puramente psíquico dos fenômenos que aparecem e que também se desenvolvem sobre uma base puramente psíquica, logo após conflitos subjetivos psíquicos (espirituais) etc. É verdade que o “inconsciente” é observado, de certa forma, de fora; pode-se pensar que nós saímos aqui dos quadros da introspecção. Mas isto é falso. Na realidade, o próprio Freud disse que “não podemos conhecer o inconsciente senão pela consciência”, precisamente pela consciência do praticante, pela consciência do próprio homem cujo “inconsciente” é estudado.
 
A psicologia marxista, ou seja, autenticamente científica, não pode limitar-se nem ao emprego do método subjetivo da introspecção, nem ao emprego exclusivo do estudo exterior dos reflexos fisiológicos. “A psicologia marxista aspira superar do ponto de vista do materialismo dialético a natureza unilateral da psicologia subjetiva e da psicologia objetiva, objetivando fazer sua síntese. A fórmula básica da psicologia marxista é: a introspecção sob o controle dos métodos objetivos”. (A. Deborine, A Revolução e a Cultura, n. 2, 1927). Deste ponto de vista, o freudismo é uma doutrina “unilateral, subjetiva ao extremo”.

Pensa-se às vezes que se Freud constrói todo o seu edifício sobre a atração sexual, sua teoria da libido é terrivelmente física (talvez mesmo “ultra-física”?) e materialista. E falso. A própria definição da “atração” e da “libido” é muito vaga em Freud, muito “psicológica”. Freud quase nunca menciona a reprodução, que é só o que confere um sentido biológico à atração sexual. Pelo contrário, há em Freud, na base, não um “princípio” biológico da reprodução: há não se sabe qual “princípio” fatal do “prazer”, alguma coisa de puramente psicológica, de abstratamente psicológica. A libido de Freud está imbuída de narcisismos. Ela não se preocupa com a reprodução. E um tipo de libido assexuada.

Wittels, na obra que mencionamos, se expressa assim sobre este ponto:

O glorioso ancestral de Freud, Platão, negligenciava completamente a diferença entre os sexos. Para Platão, no final das contas, o amor não é mais que o amor do ideal (...) O estudo do amor, tal como Freud nos mostra, com seu início no auto-erotismo da criança e seu fim nos cimos da sublimação, ressuscita aos nossos olhos o pensamento antigo. Eras não tem sexo. O lado animal do homem impõe a Eros o jugo do sexo. Mas sua natureza aspira evadir-se rumo aos céus.[11]

Esta característica da sexualidade, tal como Freud a compreende, é uma definição feliz do espírito “antifísico”, antimaterialista, de todo o seu sistema, de todo o seu método.

A natureza idealista da psicanálise salta igualmente aos olhos no exemplo da teoria freudiana da “aspiração” à repetição. Segundo esta teoria, a tendência do organismo à conservação não tem a significação que lhe deram até o presente. O organismo tende a repetir os estados anteriores, mais primitivos, dos quais o mais antigo e o mais primitivo é o não-ser, a morte. Tudo é atraído para a morte. A morte é o sentido da vida. (Freud).

Freud muitas vezes indicou o parentesco entre a noção da “atração"[12], empregada pela psicanálise, e a noção de “vontade” do filósofo idealista Schopenhauer, segundo o qual o mundo é “vontade e representação”. Freud chama Schopenhauer seu predecessor[13]. Mais especialmente a propósito da "aspiração à morte” ele diz: “Sem nos apercebermos, nós jogamos a âncora no porto da filosofia de Schopenhauer, para o qual a morte é o resultado e, em consequência, o objetivo da vida, ao passo que as atrações sexuais realizam a aspiração à vida”[14].

Freud invoca frequentemente, tanto quanto Schopenhauer, com quem sente uma afinidade particular, outros filósofos idealistas. Ele escreve em seu livro que acabamos de citar, que foi confirmada pela psicanálise a doutrina de Kant, onde o espaço e o tempo não são mais que formas de representação independentes das coisas em si. Esta confirmação é de que a noção de tempo não se aplica ao “inconsciente” freudiano. Freud diz mais uma vez:

Os processos do sistema UBW (o inconsciente) estão fora do tempo; em outras palavras, eles não se seguem no tempo, não se modificam com o tempo, não têm em geral nenhuma relação com o tempo.

Mesmo assim Variash e outros repetem que o “inconsciente” de Freud é o mesmo de Marx, quando Marx diz que os homens fazem a história sem intenção preconcebida, inconscientemente!

Mas não é tudo. O “inconsciente” de Freud não está somente fora do tempo. Nós aprendemos mais adiante que “os processos do UBW (quer dizer, do “inconsciente”) pouco tomam em consideração a realidade. Eles são submissos ao princípio do prazer, seu destino depende exclusivamente de sua força e da maneira como eles respondem às exigências da regulação do prazer e do não prazer".[15]
 
“Este princípio do prazer” de Freud introduz no sistema elementos puramente teleológicos. Freud faz observar que nos raciocínios biológicos, é quase impossível não recorrer aos aspectos teleológicos do pensar [16]. E o fato é que sua “maneira de pensar" é em todos os sentidos teleológica.[17]

Freud chega a uma completa ruptura idealista entre o conteúdo psíquico da personalidade, a vontade em primeiro lugar e o meio social real. O “inconsciente" dirige no escuro a vontade do homem. A vontade do homem está sujeita a poderosas atrações sexuais primitivas (arcaicas) insuperáveis. Estas atrações determinam o conteúdo do psíquico. A significação do meio material contemporâneo, do meio social, é reduzida a nada, “revogada”. Escusado é dizer que esta teoria se opõe sob todos os pontos de vista aos princípios fundamentais do materialismo histórico, e mais particularmente à afirmação de que “a natureza do homem (...) é na realidade o conjunto das relações sociais”.

No final das contas, Freud considera a atividade psíquica como primordial e o mundo exterior como secundário, e de certa forma, derivado. Freud fala do caráter primordial do “princípio do prazer”.
 
Ele pensa que é só quando este “princípio” se revelou insuficiente para satisfazer as tendências ao gozo, que o “aparelho psíquico teve que se resolver a se representar as relações reais do mundo exterior e a tender à sua transformação real”[18]. O meio exterior real é formado, segundo esta teoria, pelo dispositivo psíquico do “recalque”, “o qual trata das irritações interiores desagradáveis como se elas fossem exteriores, isto é, reportando-as para o mundo exterior”.[19]

É oportuno observar a propósito destas notáveis conclusões de Freud que, embora o camarada Variash considere Freud como um materialista do tipo francês do século XVIII, seus argumentos filosóficos são normalmente chamados na simples linguagem humana argumentos procedentes do mais puro idealismo subjetivo... (“Tais são as conclusões do freudismo que constituem, em suma, um retorno ao materialismo do século XVIII”, escreve o camarada Variash na História da nova filosofia, t.1, p. 59 ed. russa).

Henriette Roland-Holst deu provas de um espírito mais consequente que o camarada Variash e os outros marxistas freudianos. Ela terminou por “saturar-se" da realidade, do racionalismo e da matéria. Assim escreve:

O comunismo deve enfim compreender que não se pode racionalizar tudo de toda a vida do homem (...) Somente o freudismo, colocando na base do processo histórico o homem considerado como uma força criadora,pode afastar este perigo. Ele salvará a cultura ao não se ajoelhar ante os ídolos do Racional e do Mecânico e ao libertar-se do culto da matéria e da adoração técnica.

“Libertar-se do culto da matéria” e das representações materialistas não é ainda se libertar da matéria real. Em compensação, estando “livre” do materialismo chega-se inevitavelmente a se “livrar” de todo o vestígio do marxismo e do comunismo. Foi o que aconteceu com Henriette Roland-Holst.

Procedendo com rigorosa lógica de interpretação freudiana da psicologia do “inconsciente”, H. Roland-Holst chego à negação da luta de classes. A arte, a moral etc., são, pensa ela, humanas em geral, as bases, as raízes do psíquico do homem “mergulhando numa esfera situada fora do tempo". Tais são as peças que o “inconsciente” freudiano prega a certos marxistas.

Parece simplesmente monstruoso que depois disto Zalkind e Reissner atribuam um mérito particular a Freud por haver “socializado” a psicologia. Eles são de opinião que o materialismo histórico, o marxismo, encontrou em Freud um novo e poderoso aliado. Enganam-se. A psicologia de Freud é “antissocial” por causa de sua característica ultra-individualista. O freudismo não tem nada em comum com o marxismo e o materialismo. Ele obscurece e reduz a significação da luta de classes. O caráter antiproletário da ideologia freudiana se manifesta tanto no caráter geral idealista de seu método e de seu sistema, como nos seus detalhes. Manifesta-se tanto na superestimação da importância específica do “princípio do prazer” e do erotismo, quanto na superestimação dos elementos do narcisismo (e do individualismo). Manifesta-se ainda no fatalismo decadente de sua “aspiração à repetição” e de sua “aspiração à morte”. Manifesta-se por seu ceticismo e seu pessimismo com relação à ciência e ao poder humano. A onda de entusiasmo freudiano que passou sobre a Europa Ocidental é uma onda de reação burguesa contra o materialismo, uma onda de decadência. Se ela se detém nas fronteiras da União dos Sovietes e se o freudismo não teve uma grande penetração entre nós, devemo-lo em grande parte à nossa literatura marxista consequente, que soube apreciar a tempo, em sua justa medida os desvios freudianos e dar-lhes a resposta merecida.

= = =
Notas
[0] Artigo editado na União Soviética, em 1931, pela revista Literatura Proletária.
[1] REISSNER, M. Prefácio ao livro de F. Wittels, Freud, p. 31-32 (edição russa).
[2] Freud, As teorias psicológicas fundamentais na psicanálise.
[3] Freud atribui ao recalque uma importância capital em todo o seu sistema. “A doutrina do recalque, escreve ele, é o pilar sobre o qual repousa todo o edifício da psicanálise".
[4] Freud, obra citada.
[5] Ver prefácio à edição russa do livro de Wittels.
[6] Idem.
[7] Revista da Academia Comunista, n. 9.
[8] História da nova filosofia.
[9] A. B. Zalkind, Ensaio sobre a cultura da época revolucionária.
[10] Discurso publicado no n. 9 da Revista da Academia Comunista.
[11] Wittels, obra citada.
[12] Algumas vezes temos traduzido a mesma palavra pelo termo “atração” e pelo termo “aspiração”. A palavra russa tem as duas nuances.
[13] Freud, obra citada.
[14] Freud, Além do principio do prazer.
[15] Freud, As teorias psicológicas fundamentais na psicanálise.
[16] Freud, Ensaios sobre a psicologia da sexualidade.
[17] Teleologia, “doutrina idealista segundo a qual tudo no mundo foi criado por Deus e tende a um fim”. Engels escreve que após os teleólogos "os gatos foram criados para comer os ratos, estes para serem comidos pelos gatos, e o conjunto da natureza para demonstrar a sabedoria do Criador" (A dialética da natureza).
[18] Freud, As teorias psicológicas fundamentais.
[19] Freud, idem. Ver também Além do princípio do prazer.
= = =
STOLIAROV, A. “O freudismo e os freudo-marxistas”. In: Princípios. Edição 8, Maio, 1984, p. 31-37.
= = =

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

O racismo estrutural e o saneamento básico


Coordenação Nacional do Coletivo Negro Minervino de Oliveira

As condições de vida das comunidades negras e a privatização do saneamento básico no Brasil

A colonialidade do sistema de saneamento brasileiro

A história das primeiras infraestruturas de saneamento nas cidades brasileiras tem a ver com a mudança no modelo econômico escravocrata a partir da vigência do Império do Brasil. Durante o período há um aumento no número de escravos negros urbanos trazidos do campo pela confluência de dois aspectos: um primeiro aceno do país à industrialização via bens de consumo sem, no entanto, alterar as bases das relações de trabalho; uma tentativa do Império de desarticular insurreições anticoloniais cada vez mais frequentes, com o surgimento das Irmandades de Homens Pretos e associações de Libertos, influentes nas transformações correntes no país.

Há, desde o período, associação entre a ampla oferta de abastecimento e saneamento básico, com o fortalecimento das atividades urbanas desempenhadas por escravos nestes locais. Categorias como os ‘tigres’ eram responsáveis, por exemplo, por lançar os detritos das casas onde trabalhavam em valas ou galerias abertas. O nome desta categoria se relaciona com as manchas listradas que ficavam no corpo destes escravos devido ao manuseio de detritos humanos. Nos primeiros cortiços dos centros urbanos do Brasil, na ausência destas galerias os dejetos eram lançados na própria rua. A situação favorecia a proliferação de doenças relacionadas à precariedade do sistema de saneamento, e fazia perecer a maioria da população negra nestas cidades.

A situação não era diferente no quesito abastecimento. A coleta de água em bicas com latas d’água era a função das escravas de casa, e nas áreas centrais, bicas e chafarizes eram as únicas fontes de água (precariamente tratada) para os cortiços ou bairros proletários longe dos centros. Na ausência desta opção, os bairros negros mais afastados abasteciam suas casas com água de córregos e nascentes próximas, compartilhando inclusive do mesmo lugar onde se jogavam os detritos domésticos.

Junto à primeira grande urbanização brasileira, vêm a promulgação da lei de terras e o fim nominal ao tráfico de escravos, em 1850. Neste período se criam no Rio de Janeiro os primeiros estudos que procurariam viabilizar um sistema de saneamento básico no Brasil, em meio a surtos de febre amarela e uma forte estiagem causada pelo assoreamento de mananciais e aumento significativo do desmatamento em regiões próximas às fazendas. Passa-se nesta mesma época à implantação de tubos hidráulicos importados da Inglaterra, com o objetivo de comercializar as instalações de água na cidade.

Mesmo com a implantação preliminar deste sistema, subsistiu por muito tempo o abastecimento por latas d’agua e o lançamento de esgotos em galerias abertas nos bairros que não receberam o tratamento devido. Em meio à disputa de duas empresas inglesas quanto à comercialização do serviço, foi inaugurado em 1876 um sistema de tratamento e abastecimento de água que assistia apenas a 30 mil habitantes da cidade do Rio de Janeiro, a partir de um contrato do Império com empreiteiros locais.

A rede de esgotos e abastecimento na cidade era de baixa qualidade, o que implicava em contínuas trocas dos encanamentos, vazamentos e comprometimento do solo. As manutenções eram, no entanto, garantidas nos bairros da elite imperial e áreas centrais, dificultando o acesso da rede aos bairros negros do Rio e em regiões encortiçadas. Dificilmente neste período havia algum acesso destas populações ao saneamento, sendo coincidentes a fronteira entre os bairros das classes dominantes e a amplitude do serviço.

O aspecto racial da urbanização brasileira

A rápida urbanização causada pelo êxodo rural relacionado à abolição da escravidão e o retorno dos combatentes na guerra do Paraguai pressiona a oferta de infraestrutura urbana nas grandes cidades brasileiras. As reformas na região empreendidas por Pereira Passos, na área central do Rio de Janeiro, vêm para demarcar o caráter higienista na oferta destes serviços, sendo a derrubada dos cortiços e criação de grandes avenidas, estratégica para fortalecer os setores que comercializavam o acesso à água e o tratamento de esgoto na cidade.

A indústria da construção civil e as cidades brasileiras


Em 1891, é promulgada junto à constituição uma norma que entrega as riquezas do subsolo e rios aos proprietários dos terrenos, municipalidades e estados, de administração encarregada pelos poderes locais. A iniciativa fortalecia as oligarquias locais e dificultava o acesso da população negra à terra e à infraestrutura urbana, diante das ampliações das reformas nas regiões centrais.

A primeira tentativa de federalizar o assunto do saneamento surge em 1933, com a criação de obras no entorno da Baía de Guanabara, articuladas com outras obras de urbanização no Rio de Janeiro empreendidas por Saturnino de Brito no escopo da Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense. Neste período, há uma nova urbanização acelerada nas grandes cidades em detrimento de uma nova tentativa de industrializar o país por parte do governo de Getúlio Vargas. Em 1940, cria-se o Departamento Nacional de Obras de Saneamento, como aceno do Governo federal às Empresas de Construção Civil Pesada, buscando fortalecer o setor. As obras eram organizadas pela agência estatal, abrangendo grupos organizados no Clube da Engenharia, que atendiam a estas obras, quando outros ramos de atuação estavam em baixa.

O período coincide com a formação de grandes extensões de bairros populares nas grandes cidades, com aumento dos fluxos migratórios regionais e promoção de loteamentos baratos longe de regiões centrais, organizados pelo mercado imobiliário. Tais loteamentos eram assistidos apenas de infraestrutura viária (sem asfaltamento), quando muito, acesso à água encanada. O descarte de esgoto e resíduos sólidos neste momento, se dá ainda com o despejo em córregos e mananciais. Entre 1945-60, a luta contra reintegrações de posse em loteamentos ocupados migrantes e pela maioria da população negra se articula nas Associações de Bairro conduzidas por sindicatos locais e pelo Partido Comunista Brasileiro também com a pauta do saneamento básico e acesso à água tratada.

O setor da construção civil, fortalecido de forma vultuosa durante a ditadura empresarial-militar (1964-85), encontra frentes de atuação sustentadas pelas políticas do Banco Nacional de Habitação e financiamentos de planos locais pelo SERFHAU. A criação de grandes conjuntos habitacionais no período era a condição pela qual se estruturaram as empresas que ofereciam os serviços de saneamento. De atuação dissociada das construtoras, a infraestrutura hidráulica era oferecida aos moradores apenas no período posterior à ocupação, sem incluir no planejamento favelas ou bairros já consolidados distantes dos novos conjuntos.

A desarticulação crônica entre o PLANASA (Plano Nacional de Saneamento) e a política habitacional do BNH impediu a prestação de serviços de tratamento e abastecimento nas comunidades negras e pobres do Brasil. A atuação de ambas instâncias se voltava prioritariamente a empreendimentos em bairros centrais ou circuitos de atuação tradicional do mercado imobiliário.

A título de exemplo, os investimentos do Plano e as áreas de atuação mais veiculadas no Clube da Engenharia eram do Sistema de Águas de Niterói, Centro e Zona Sul, empreendidos pela Companhia City de Melhoramentos Urbanos. A modernização do esgoto sanitário, promovida pela Sanerj, Esag e IAE, se inscreveu nas regiões do Irajá e demais subúrbios da Zona Sul. Tais regiões eram plenamente abastecidas em meados dos anos 70.

Nos morros ou nas bordas da cidade, as instalações hidráulicas foram construídas com restos de obra dos sistemas de abastecimento realizados em Niterói. Noutras áreas periféricas, o abastecimento era feito por sistemas autônomos ou individualizados construídos pela Sanerj a partir de ramais dos sistemas de Laranjal e Guandu. São Gonçalo era atendida por um ramal de Niterói numa pequena extensão, com abastecimento abaixo da oferta para a população pobre da região.

Em 1974, os programas relacionados à Construção Civil leve e pesada no Brasil passam a aderir gradualmente às campanhas do Banco Interamericano de Desenvolvimento, com a chamada Agenda BID para as Cidades.

Dentre as iniciativas da agenda, está a descentralização da oferta de habitação, transporte e infraestrutura urbana (saneamento, abastecimento e tratamento de resíduos). As propostas têm adesão nas municipalidades e são amplamente propagadas pelos veículos de comunicação das empreiteiras nacionais. Como consolidação histórica da defesa da integridade fundiária nos bairros periféricos, organizada pelos movimentos sociais, com o enfraquecimento do regime militar e crise financeira, a atuação do setor da construção civil se volta para os bairros consolidados ou recém regularizados.

Nestes locais, cresce a demanda por água encanada e tratamento do esgoto, que é parcialmente atendida, no sentido em que é garantido o encanamento e registro formal para as famílias, porém, num processo lento e de tratamento incompleto, à medida em que persiste o despejo direto dos resíduos em córregos e rios, contribuindo para acometer a saúde da população pobre e majoritariamente negra que mora nestas proximidades. O fim da ditadura militar coincide com o fortalecimento da luta pela reforma urbana nos bairros populares, onde as demandas por moradia, saneamento e seguridade fundiária são as principais pautas.

Em meio aos programas de privatização do governo Fernando Henrique Cardoso, havia contratos sendo articulados pelo Programa de Fomento à Parceria Público/Privada para estender a participação das grandes empresas de construção civil na prestação de serviços de abastecimento e esgotamento sanitário, a serem instituídos via BNDES. O programa fortaleceria a participação privada e oferece seguridade institucional à atuação das grandes empresas, à medida em que relega aos municípios e estados o papel de contratar obras de saneamento.

Ainda que a Política Nacional de Saneamento esteja garantida em nível federal por parte dos investimentos públicos, a articulação destas instâncias por meio das PPPs nos municípios tem cedido à pressão do empresariado urbano para dissociar os orçamentos municipais de programas efetivos de universalização do tratamento de esgoto e saneamento básico no Brasil.

A Lei de Concessões de 1995 favorece a criação de amplos espaços de atuação que formulam contratos de gestão ou administração privada dos recursos no setor de saneamento, por meio dos BOTs (Build, Operate and Transfer), modalidade em que o setor privado ganha a garantia de planejar, construir e capitalizar empreendimentos, que após determinado tempo de operação tem sua gestão transferida de volta ao setor público.

O fomento desta modalidade estagnou durante a década de 90 os investimentos em saneamento básico em quase zero. Houve, no ano de 2000, concessão integral das prestações de serviço de saneamento em Manaus a uma concessionária privada. 19 anos depois, o município apresenta os piores dados nos indicadores nacionais de universalização do acesso ao direito.

O mesmo foi empreitado em Tocantins, em 1998. A compra da Saneatins pela Odebrecht Ambiental apresentou em 2010 piora no atendimento de 78 municípios onde se oferecia o serviço, em que apenas a região metropolitana de Palmas apresentava indicadores positivos com relação à abrangência da atuação, ilustrando a prioridade do investimento privado em regiões com maiores índices per capta, precarizando o abastecimento em regiões pobres dos Estados.

Dados do saneamento básico no Brasil contemporâneo

O número de obras de infraestrutura urbana acompanha a flexibilização contínua de contratos e atributos jurídicos para facilitar a atuação do setor privado, sendo este dado a raiz do impasse na universalização do saneamento básico no Brasil. Os dados gerais sobre o saneamento no país apresentam graves disparidades regionais. No âmbito nacional, o índice de atendimento urbano é de 90%, enquanto que em regiões como a Norte, o alcance chega apenas a 70%, segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento.

Dados do Instituto Trata Brasil de 2010 nos permitem ter um panorama do acesso das famílias negras e pobres ao saneamento básico no Brasil, ainda que a instituição seja financiada por grandes corporações interessadas na privatização dos recursos hídricos, como a Coca-Cola e Ambev. Segundo os diagnósticos da organização, aliados a estudos do IPEA, a média das internações por diarreia nos 10 municípios com a pior cobertura de saneamento se encontra nas periferias negras do Estado do Rio de Janeiro.

Ainda que tenha havido um aumento geral na amplitude dos serviços de esgotamento e abastecimento, em benefício aos setores negros e proletarizados, um estudo do IPEA de 2011 enfatiza que a oferta dos serviços “não se equipara à cobertura do serviço entre a população branca”, em bairros onde o índice de saneamento chega à margem dos 90% de cobertura. O estudo coloca em evidência que as regiões com menor cobertura estão em domicílios chefiados por cônjuges negros (88,5%), persistindo o caráter racializado da oferta de serviços básicos de infraestrutura urbana aos trabalhadores brasileiros.

Em domicílios chefiados por mulheres negras, o dado é mais grave. Apenas 61,8% destas moradias são assistidos pela infraestrutura de saneamento. O desamparo na infraestrutura de saneamento básico impacta diretamente o sistema público de saúde brasileiro. Entre 2009 e 2018, houve 3 milhões de internações no SUS relacionados a parasitoses e demais complicações relacionadas à insuficiência no tratamento de esgoto e água limpa.

Acesso da população negra ao saneamento básico e a PL 3261

A articulação para redigir marcos legais favoráveis à privatização do setor de saneamento tem sido mobilizada pela Associação Brasileira de Infraestrutura e Indústrias de Base. O grupo apresenta a Medida provisória 844, ainda durante a presidência de Michel Temer, que propõe dar respaldo federal à desarticulação de contratos realizados entre as municipalidades e autarquias ou empresas públicas que oferecem o serviço de saneamento.

Mesmo com apoio integral de setores relacionados à infraestrutura urbana, o projeto conseguiu ser derrotado no final de 2018. No entanto, Mac Cord, presidente da Associação, entra para uma das secretarias do Ministério da Economia de Paulo Guedes. Os dados sobre o abastecimento e saneamento no país e a disparidade na oferta dos serviços são alarmados e instrumentalizados pela iniciativa privada como tentativa de dar respaldo político à privatização do sistema.

Os dados utilizados provêm da Trata Brasil, que se alimenta de diagnósticos e análises realizadas pelo Ministério do Desenvolvimento Regional e uma Consultoria associada ao empresariado urbano, que tem atuação em pequenos e médios municípios.

A privatização do serviço interessa à Secretaria de Infraestrutura Urbana do Ministério da Economia, porém, a MP não foi levada a tempo para a votação. No entanto, o Senador do PSDB Tasso Jereissati voltou a trazer a pauta à tona, tramitando no Senado em regime de urgência. Como continuidade do processo de privatização de direitos básicos, tônica do sistema capitalista brasileiro que mercantiliza serviços essenciais à vida humana, o PL 3261 visa tornar irregular a existência de contratos entre prefeituras e autarquias estaduais que oferecem o serviço de saneamento.

O já limitado sistema de subsídios cruzados seria desmontado por completo diante da obrigatoriedade desta norma. Regiões metropolitanas superavitárias na oferta do serviço atualmente contribuem para oferecer abastecimento e tratamento para municípios que não têm alcance. Não há garantia alguma prevista no Projeto de Lei, de que estas mesmas regiões superavitárias terão excedente garantido para transferir via gestão municipal às regiões mais pobres. Há também no projeto de lei a previsão de que, para ter o serviço disponibilizado, será cobrada uma taxa domiciliar para que se possa conectar à rede.

O Plano Nacional de Saneamento em vigência prevê em escala federal um investimento de 304 bilhões entre 2014 e 2033 para universalizar o acesso em todo o país. Baseado na média aplicada entre 2014 e 17, ter-se-ia 11,7 bilhões disponíveis para atingir a marca de 16,1 bilhões prevista para a marca de 2019, pouco mais de 4 bilhões, que muito pouco representa frente ao orçamento da União para este ano, de 3,38 trilhões.

A relatoria da MP pela Associação e posteriormente entregue ao Senador do PSDB se relaciona com os negócios familiares do parlamentar, que mantém 56 milhões em ações da Calila Administração e Comércio S/A, e possui o controle sobre a distribuição de produtos da Coca-Cola no Nordeste e Centro-Oeste do Brasil. Caso o PL seja aprovado, sua regulação será entregue à Agência Nacional das Águas (ANA), porém, sua representação nas matérias da proposta não são seus diretores, mas o Coordenador do Projeto Infra 2038, Carlos Motta Nunes, ligado à Fundação Lemann.

Em encontros do Projeto, foram traçadas metas balizadas pelo Fórum Econômico Mundial, para inserir o Brasil nas altas posições dos rankings de infraestrutura da Organização, com metodologias e diretrizes moldadas pelos setores empresariais relacionados à grandes obras de Construção Civil leve e pesada, dentre os quais, estava no grupo de trabalho em Saneamento Diego Mac Cord da Associação Brasileira de Infraestrutura e Indústrias de Base.

Com apoio de parlamentares que representam a Fundação Lemann, como Felipe Rigoni do PSD do Espírito Santo, emendas foram adicionadas ao texto que contemplam às metas do grupo para obras de alcance nacional na Infraestrutura Hídrica no país.

A promessa do governo federal é de que as privatizações propostas irão render 702 bilhões de investimentos, além da universalização do saneamento até 2031. No entanto, conforme o Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente aponta, a cobertura em regiões administradas pelo setor privada, nos últimos anos, é deficitária com relação aos investimentos de ordem pública. As taxas cobradas pelas concecionárias privadas são 20% mais caras do que as operadas pelo setor público, de acordo com o SNIS. O estudo revela ainda que o alcance do tratamento de esgoto em municipalidades geridas por autarquias estatais é de 74,46%, contra 53,8% da iniciativa privada. Em Manaus, conforme exposta a experiência de maior concessão ao setor empresarial na gestão do serviço, a AEGEA Saneamentos, empresa privada, apresenta um índice de 12,25% de cobertura, o pior indicador do país.

Pode-se ler a proposta do PL 3621 como continuidade de uma agenda colonial e racista para as cidades brasileiras, na medida em que mantém a proeminência dos setores empresariais urbanos no planejamento e oferta de serviços básicos à vida dos trabalhadores das cidades. Também instrumentaliza o abastecimento e tratamento de resíduos com base em leituras de organismos estrangeiros como o BID, que possui lastro em operações do Banco Mundial. Isto se insere no conjunto de medidas que reduzem o Estado brasileiro a ser o aparato de violência e repressão da burguesia contra a classe trabalhadora pobre e negra, na medida em que nada custa às classes dominantes jogar os trabalhadores nas condições mais insuportáveis de vida e acesso a recursos básicos.

Frente aos mais explícitos ataques à classe trabalhadora negra do Brasil, a privatização do saneamento básico acentuará a precariedade das condições de vida nas favelas e bairros metropolitanos. Mediados por interesses privados, já não haverá garantia alguma de que investimentos voltados à universalização do serviço cheguem até estes locais.

A mercantilização de direitos essenciais à dignidade da classe trabalhadora já não encontra escrúpulos. As concessões ou modelos de Parceria Público/Privada que antes eram legitimadas por relegar ao Estado apenas a gestão dos assim chamados ‘setores estratégicos’ ou básicos, não encontra maiores limitações. Qualquer direito básico que seja oportuno à extração de valor para o interesse das classes dominantes será atacado em nome da racionalidade econômica e contábil, radicalizando o papel do Estado brasileiro de tropa de choque da burguesia, facilitador de seus projetos por um lado, e dispositivo racista de violência contra a classe trabalhadora por outro.

A votação do PL está prevista para o dia 12 de dezembro e conta com a articulação dos setores especializados na pauta, entre sindicatos e movimentos sociais voltados ao tema. No entanto, há pouca capilaridade e divulgação de mais este ataque à população negra e pobre do Brasil, a maior vítima da continuidade de um sistema de infraestrutura urbana privatista e de inspiração colonial, à medida em que inscreve a maioria da população nas mais degradantes situações de insalubridade e restrição a direitos básicos de existência, como a água.
= = =