quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

ARTE REALISTA| Fake news


Sinopse: Companheiros, é hora de mamar nas tetas do governo. Saiba mais assistindo a esse vídeo enquanto seu filho brinca de boneca por influência da escola. (Porta dos Fundos)
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Fake news (farsa, BRA, 2018), de Rodrigo van der Put.
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domingo, 16 de dezembro de 2018

Alguns pensamentos sobre Eric Voegelin, Christopher Hill e Norman Cohn


por Rodrigo Silva Do Ó

Eu li recentemente A nova ciência da política, do Voegelin, que é recomendado pelos olavetes. Seria uma recomendação bizarra se eles fossem mesmo conservadores, mas perfeitamente compreensível, já que são tradicionalistas guénonistas disfarçados, já que o Voegelin é um autor contrarrevolucionário tradicionalista (eu fiquei com vontade de ver as posições políticas concretas dele, mas não consegui achar). Aliás, a leitura altamente seletiva de autores conservadores pelos olavetes por si só já mostra que eles têm um viés que ignora um monte de conservadores importantes (por exemplo, o Ortega y Gasset, ou o Raymond Aron), porque têm muito mais simpatia por autores tradicionalistas, ocultistas e de extrema direita.

O mais interessante, pra mim, são algumas semelhanças e diferenças com outros autores que estudaram as heresias desse período que vai da Baixa Idade média até o começo da modernidade. Deles, os que eu acho mais próximos do tema são o marxista Christopher Hill (eu li O mundo de cabeça para baixo, sobre a revolução inglesa) e o conservador Norman Cohn (Na senda do milênio, sobre as heresias medievais). Acho que as diferenças entre eles correspondem a diferenças teóricas e políticas, e os dois ajudam a mostrar a artificialidade da construção histórica do Voegelin.

Não vou resumir aqui o livro (isso não é uma resenha, são alguns pensamentos), mas quero destacar três pontos pelos quais ele passa antes de chegar às caracterização da modernidade.

Eu gostei muito do livro, principalmente o começo. Aqui, ele vai falar de como se tornou possível uma nova ciência da política. E como se tornou? Ele diz que o formalismo positivista pôde ser superado, principalmente pela contribuição do Max Weber, que conseguiu formular uma sociologia da religião bem ampla. Então, pôde ser feito o trabalho de passar da análise formal de tipos de governo, sistemas eleitorais etc, para uma reflexão sobre as fontes de ordem na sociedade (que é o tema da obra principal do Voegelin, Ordem e história).

Sim, mas quais são as fontes, então? Ele faz uma crítica ao Weber: em todo o material imenso que ele recolheu, não tem um estudo sobre o cristianismo medieval. Justamente o que criou a concepção de ordem, para ele, racional, e superior às outras, porque levava em conta a alma humana.

Citando a ideologia tradicional chinesa sobre o Mandato do Céu, ele vai dizer que a ordem política depende de uma visão sobre a ordem cósmica. Aí entra o segundo ponto: ele vai fazer uma “história da alma”, que começa na filosofia grega, mas só se generaliza no cristianismo (esse tema das “sementes da verdade” na filosofia grega é importante na teologia católica). Com a descoberta da alma, o ser humano chega à sua essência, e a partir daí consegue criar uma sociedade conforme, que vai ser a civilização cristã.

Aí entra o terceiro ponto, que eu sempre achei um ponto cego do catolicismo: a gnose. O Voegelin mistura três coisas diferentes, e chama tudo de gnose: o milenarismo, ou seja a crença no fim do mundo iminente, a gnose propriamente dita, e o panteísmo.

Essas três vertentes existiram no cristianismo primitivo. Pra deixar claro, o que eu chamo de gnose aqui são as seitas que acreditam que o mundo material é uma prisão da alma, e que a salvação é ir para um mundo puramente espiritual. Na gnose, o mundo tanto pode representar um princípio maligno (dualismo, como por exemplo no maniqueísmo, que achava que a alma tinha sido criada por Deus, e o corpo, pelo Diabo), como pode ser produto de um Deus menor.

Esses autores, quando falam que o marxismo é uma forma de gnose, erram feio porque, do ponto de vista deles, o marxismo seria panteísmo materialista. A cabala, o sufismo e algumas formas de cristianismo e hinduísmo têm características panteístas, mas espiritualistas (o mundo material como uma emanação de Deus).

Já o nazismo, sim, teria traços gnósticos, como a necessidade de purificar o mundo e a própria visão da humanidade dividida em castas, em que só os superiores podem chegar à salvação.

Outra coisa muito diferente é o milenarismo. No cristianismo primitivo, ao lado das seitas gnósticas, existiam seitas milenaristas, como uma teologia totalmente diferente (e mais próxima da ortodoxia), como foi o caso do montanismo. O Tertuliano, que foi montanista, por exemplo, escreveu várias obras contra os gnósticos.

Pois bem, então o Voegelin (mas não só ele) vai misturar tudo e falar que a modernidade é gnóstica porque quer criar um paraíso na terra, e que, pra criar esse paraíso, vai ter que esmagar a alma humana, que tem a liberdade de escolher entre o bem e o mal.

O próprio marxismo sempre viu no cristianismo primitivo e em algumas heresias uma tentativa de estabelecer o comunismo, essa tanto é a posição do Engels como do Kautsky, que escreveu As fontes do cristianismo, sobre isso. A direita católica, claro, vai inverter o argumento, e dizer que o marxismo é uma nova forma de heresia milenarista. Na academia, o Karl Manheim, no Ideologia e utopia, deu “respeitabilidade” pra essa tese, e daí ela passou pra literatura anticomunista da época da guerra fria.

Diferente do Voegelin, tanto o Christopher Hill como o Norman Cohn vai dar ênfase ao aspecto prefigurativo do pensamento herético, sendo que o Hill vai apontar para as possibilidades revolucionárias que, só na época em que ele escreveu (anos 1970) teriam se tornado possíveis, e o Cohn vai colocar como um elemento irracional que impede uma luta gradual por reformas sociais.

Quem tá certo? Acho que a resposta tá nas omissões e distorções do Voegelin.

Se o Voegelin fosse consequente com a sua defesa de que o catolicismo medieval conseguiu criar uma ordem racional baseada na liberdade da alma humana, ele teria que rejeitar a modernidade em bloco, como fazem os integristas católicos.

Só que não é essa a análise que ele faz. Ele vai pegar o místico franciscano do século XII Joaquim de Fiore, e colocar a interpretação da história em três eras (do Pai, do Filho e do Espírito Santo) como o paradigma de todas as visões progressistas. A Era do Pai é o Antigo Testamento, baseado na Lei, a do Filho é o Novo, baseado na Graça, e o Joaquim de Fiore anunciou a chegada iminente da Era do Espírito, baseada na liberdade absoluta, onde a igreja seria substituída pela comunhão direta com Deus.

O Cohn vai ver o esquema marxista comunismo primitivo-sociedade de classes-comunismo como uma transposição das três eras do Joaquim de Fiore (eu não gosto dessa interpretação; acho sim que existem tons cristãos nesse esquema trinitário que o Marx trouxe do Hegel, mas que o equivalente seria Paraíso-Queda-Novo Mundo, eu comecei a estudar as visões marxistas críticas à concepção de comunismo primitivo mais aceita justamente pra tentar arruinar esse esquema, e acho que a valorização da superioridade do capitalismo sobre as sociedades sem classes, e a crítica à ideia de proletariado como classe essencialmente revolucionária são parte dessa tarefa).

Já o Voegelin vai ver a própria ideia de modernidade como uma imanentização crescente da ideia da Era do Espírito Santo, e dizer que a modernidade é um tumor na civilização ocidental. As duas formas de gnose são a evolucionista e a radical, colocando então todas as correntes liberais na primeira categoria. Um Plínio Corrêa de Oliveira da vida diria o mesmo, só que imediatamente mostraria como o livre exame, a democracia e o socialismo são os resultados da destruição da ordem baseada em Deus. O Voegelin, então, vai dizer que o Reino Unido, os Estados Unidos e a França só conseguiram sobreviver como nações porque as suas respectivas revoluções aconteceram cedo o suficiente para que a sua essência cristã não fosse destruída, e que a Rússia e a Alemanha não tiveram a mesma felicidade. Desculpa muito esfarrapada, se a gente for levar em consideração a radicalidade da revolução americana nos seus princípios democráticos (pra não falar da força absoluta do protestantismo, com influência teísta e maçônica), e a radicalização política da revolução francesa, mesmo que a forma de república democrática com separação total entre Estado e igreja tenha demorado mais de um século pra se realizar. O único caso em que teve mesmo um compromisso foi o da revolução inglesa, com a revolução gloriosa, mesmo assim depois da fase extremamente radical e herética que o Hill documentou.

Durante todo o livro, ele vai discretamente tirando algumas conclusões políticas, ao refletir sobre os exemplos de como Santo Agostinho e Hobbes pensaram o combate às heresias. Para ele, quando o catolicismo se tornou a religião oficial do Império Romano, não deveria ter aceito que continuassem os cultos pagãos e, no outro extremo, o Hobbes corretamente, segundo ele, reconheceu o papel da religião estabelecida para a manutenção da ordem, mas não ficou indiferente ao conteúdo de verdade da religião, como se pudesse tanto ser o cristianismo como qualquer outra. Para o Voegelin, os dois não entenderam que deve haver um equilíbrio, em que a religião permite uma ordem civil separada, enquanto tem a liberdade de reprimir as heresias (ele defende que os gnósticos tem que ser censurados, se baseando num escrito de Hooker contra os puritanos). Mais uma vez, eu vejo aí uma acomodação com a ordem política moderna, com a projeção para o passado de um modelo de separação entre Estado e igreja que só surgiu no século XIX.
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sábado, 15 de dezembro de 2018

ARTE REALISTA| Boca artesanal


Sinopse: Você sabe quem faz as suas drogas? Em que condições de trabalho? De que material são feitas e de onde vêm? Qual o impacto no meio ambiente? Procure saber. (Porta dos Fundos)
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Boca artesanal (farsa, BRA, 2018), de Rodrigo van der Put.
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quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

O lugar de fala de Djamila Ribeiro

por Inês Maia

Considero se tratar um equívoco a afirmação que a questão da raça e racismo no Brasil nunca foi levada a sério. Tal premissa é no mínimo ingênua, senão oportunista. Há uma ampla bibliografia consistente lançando luz sobre a forma pela qual a exploração do capital por aqui se deu a partir de uma estrutura escravocrata, que de fato jamais foi superada. Escavando um pouco a nossa velha bibliografia, teremos uma visão ampla, profunda e aguda da nossa formação social que eleva o componente racial como algo central. Também temos críticos/militantes interessantes, como Abdias do Nascimento e Lélia Gonzalez.

Se a aposta liberal era a de que a modernidade capitalista por si só faria evanescer as relações de violência racial, logo se viu seu engodo, e se vê, na estrutura própria de nossa exploração capitalista, o componente racial tornado um dispositivo de controle dos corpos negros marcados não só pela exclusão, salários baixos e degradação existencial, como pelo auxílio na construção de um inimigo do Estado a ser sempre combatido pela forma de seu braço armado: a polícia. Exatamente aquilo que Mbembe chamou, com muita razão, de necropolítica. Grosso modo, uma política estatal que autoriza quem pode morrer e quem pode viver.

Então com duzentos anos de modernização capitalista, nesses tristes trópicos, é factível a impossibilidade de superação do racismo contra os negros baseados nas premissas básicas de um sistema no qual a exploração radical é o que o mantém vivo. É equivocada a crença na possibilidade de ascensão racial em um sistema que inventou as raças, que inventou um continente para dividir, controlar e usurpar suas riquezas. Tratar da questão racial é, portanto, refletir radicalmente sua fundamentação na estrutura de modernização colonial propulsora do capitalismo desde o seu berço.

Isto significa, sobretudo, que foi justamente a escravidão a condição de possibilidade do capitalismo e, com ela, a construção ficcional das raças como diferenças engendradas socialmente pela necessidade predatória de sua acumulação primitiva. É preciso acabar de vez com a ingenuidade da ciência etnológica pois desde sua fundação ela teve um único princípio: controle e submissão dos povos “não civilizados”. É preciso entender, como Mbembe deixou claro, que o projeto de neoliberalismo é uma tentativa de reedição da escravidão num novo patamar produtivo. É disso que se trata o devir negro do mundo.

Esse deveria ser o bê-á-bá de todos aqueles que se dizem antirracistas. Infelizmente não é o caso. Diga-se logo: o livro de Djamila Ribeiro não é sequer um livro anticapitalista. Feito esse preâmbulo, podemos passar para uma análise mais crítica de suas premissas e dos seus desenvolvimentos internos.

Demorou muitos anos para que uma intelectual negra tivesse algum tipo de destaque no Brasil. E Djamila é, sem dúvida, uma comentarista que trouxe para o debate público temas candentes e urgentes. A grande questão é que, como estudantes de filosofia, sabemos que a forma de abordar o problema define radicalmente os limites de sua resposta.

Com estudos em Simone de Beauvoir e Judith Butler, com um grande trabalho desenvolvido nas redes sociais, e agora entre os livros mais vendidos, seu nome já não é desconhecido. E sua prática, é preciso assinalar, tem sido até aqui coerente com sua teoria. Se o arcabouço teórico do livro limita-se a restituir humanidades negadas através da escuta das vozes silenciadas, podemos dizer, que a massiva aceitação de seu livro, que o convite aceito para sua participação em programas Globais, que o seu nome atrelado à indústria dos cosméticos indicam que pelo menos, segundo sua própria teoria, a sua humanidade fora restituída.

Necessitamos ler seu livro com estes olhos, como aquilo que efetivamente tem provocado na práxis política; os resultados causados no seio da militância, em especial àquela do movimento negro. Em primeiro lugar, os pressupostos do livro são inteiramente liberais-reformistas, não pensa em nenhum momento ultrapassar o horizonte formatado pela modernidade capitalista, mas, em se adequar ao seu interior, criando espaços de visibilidade para “subjetividades coletivas” invisibilizadas. Aliás, a palavra capitalismo aparece duas vezes no livro. Em segundo lugar, trata de trazer à tona a demarcação das diferenças identificando-as passo a passo, aceitando de antemão os pressupostos colonialistas que basearam essas diferenças.

Tendo isso exposto, não se trata de um livro cuja busca seja iluminar aquilo que se ocultou com a invenção das raças e do racismo, tampouco reflete a fundamentação do racismo a partir dos pressupostos da desigualdade e competitividade capitalistas, trata-se apenas de uma posição culturalista, ou melhor, moralista.

A discussão caminha assim para a tentativa de visibilizar uma disputa no interior do próprio feminismo. Ora, é evidente que a radicalidade do feminismo negro deve dar o horizonte e fornecer o mapa de quaisquer feminismos numa posição em que, no campo da luta política, as diferenças sejam concebidas para tornarem-se indiferentes na prática. Quer dizer, a hierarquia necessita ser expulsa do horizonte de lutas do movimento feminista, ao passo que, as vozes necessitam poder encarnar em qualquer corpo.

O paradoxo, não vislumbrado, é que as hierarquias são fornecidas pela desigualdade social radical cujo motor é a racialização da própria dinâmica do mercado e consumo, mas nada disso é dito. Não é o que importa à Djamila Ribeiro.

Ainda presa aos prognósticos do feminismo de donzelas do século XIX, até importa-se em colocar em xeque a posição social do feminismo que, em termos sintéticos, nas suas premissas, deixou de lado não só o componente racial, mas, como aparece nas desgostosas arengas de Truth, ficou afastado de uma base social pobre, entretanto, a posição social é reforçada só para sustentar um discurso que passa ao largo das questões de classe.

Apesar de tipificar o surgimento de um feminismo que era alheio a questão racial, Djamila, além de projetar uma fundamentação do feminismo norte-americano como um dado universal – por exemplo, não diz qual foi, ou como se deu, o desenvolvimento do feminismo no Brasil –, não deixa claro também, por exemplo, as condições de possibilidades que invisibilizaram a questão racial no interior do movimento feminista norte-americano, a não ser algo como uma espécie de cegueira moral daquelas primeiras feministas. Tal atitude argumentativa elide as condições objetivas e violentas, além das contradições existentes, em cada Estado da federação. Nessa perspectiva, portanto, o racismo torna-se sobretudo uma questão moral.

Lançando mão do conceito de “narrativas”, um olhar para o passado a partir do presente, a autora afirma que a luta no interior do movimento feminista era uma disputa de narrativas. Anacrônica ou não, essa perspectiva lança as bases para o que a comentarista tentará sustentar.

É nesse ponto que entra pela janela do texto uma noção de privilégio, mais ou menos, empírica, e diga-se de passagem plenamente liberal; o privilegio aí não advém do monopólio da riqueza, mas sim de um aspecto epidérmico biologizante. A culpa, segundo essa perspectiva, não é do sistema capitalista, cuja fundamentação colonial propiciou uma hierarquização social efetivada pela epiderme, mas sim do branco que nasceu branco. Como é parcial a forma de articulação do problema, também é parcial sua resposta e, dessa forma, aposta numa posição de mudança no interior dos limites postos pela vida baseada na competição e no fetichismo de mercado.

Naturalmente, a necessidade de reconhecer a estrutura de desigualdade racial de nosso mercado de trabalho é central – Ribeiro passa longe dessa discussão talvez porque esta seja de uma outra classe que não a sua – no entanto, não se preocupando com isso, o argumento é válido para alimentar o identitarismo de extrema direita que se utiliza dos mesmos argumentos, porém, de maneira invertida. Para a esquerda liberal, que aposta nessa noção unilateral sobre a construção dos privilégios, é como se uma cor (branca) tivesse tudo, para a extrema-direita, que se aproveita dessa posição, é como se uma cor (negra) quisesse roubar tudo. O problema é que estamos no Brasil e a miscigenação ocorreu – embora, algumas almas destroçadas e inúteis queiram torná-la crime de genocídio (deixa só o Pegida ou o Aurora ouvirem essa argumentação!).

E com a sustentação teórica, algo genérica, baseada em algumas referências a Lélia Gonzalez, reduz o debate epistemológico e científico a questão da raça excluindo não só o debate contra a neutralidade da ciência, como ainda, optando por excluir a própria ciência do horizonte emancipatório, já que é algo de privilegiado. Assim, é melhor lutar por um outro conhecimento, por uma outra episteme, “negra”, porque, segundo a autora, no escopo da ciência branca, há vozes que são legitimadas e vozes que não. Nada original; a posição problemática de Grada Kilomba ressoa no texto de maneira rebaixada.

Ora, combater a neutralidade epistemológica não é o mesmo que simplesmente negá-la, assim, quando a autora se apossa de Lélia Gonzalez, como instrumental para defender os próprios pressupostos, apenas aponta de maneira genérica quais pontos de vista que permeavam a práxis de Lélia, que, tendo ou não seus equívocos, de fato foi importante para trazer a questão racial para o interior do movimento feminista. A discussão sobre o fazer ciência envolve radicalmente a política econômica que é não apenas a ciência dominante como ciência da dominação. Sem dúvida, a questão do racismo governa os castelos conceituais da ciência é preciso combatê-lo, no entanto, sem petite-negre que, em termos grosseiros, significa um racismo crente de que o negro não conseguirá entender, jamais, Kant ou Hegel.

Sabemos que, ao contrário de Fanon que detestava o petite-negre, Gonzalez era entusiasta da liberdade gramatical como polo de resistência e suposta herança cultural. Aceitando de saída a alcunha redutora de que “eles não poderão ler os nossos livros”, tal noção acaba por limitar-se ao terreno minado criado para balizar o negro no interior da raça e defini-lo a partir dos pressupostos coloniais. Pois é exatamente aí que Djamila Ribeiro se sustenta para combater o “universalismo”. A todo momento não se saí da lógica colonial e se busca uma reafirmação do “eu” para disputar internamente aos pressupostos simbólicos do significante raça.

E assim salta para os argumentos de Alcoff com intuito de buscar valorizar outros saberes. Olhados agora, sabemos que essa é justamente a palavra de ordem do mercado: tragam para nós seus saberes “originários”, ou esse romantismo putrefato que volta, como tragédia, à esquerda e à direita. Mas, mais que isso, qualquer saber tem como intuito a transformação ou a conservação da realidade em sentido amplo; uma busca incessante pela produção da verdade significando que sua disputa é política e múltipla. Não se trata pois de querer criar, como se fosse um ato de decisão, uma nova metafisica, trata-se antes de colocar em xeque o mundo no qual essas epistemologias são autorizadas como discurso da verdade. Já sabemos que a ciência é um acordo que produz realidades, a questão é: o que e quem autoriza esse acordo?

E com essa carta na manga a autora diz: “Seria preciso, então, desestabilizar e transcender a autorização discursiva branca, masculina cis e heteronormativa e debater como as identidades foram construídas nesses contextos”. Desestruturar a autorização discursiva branca, masculina cis e heteronormativa não se dá pela manutenção através da competição no interior das instituições heteronormativas senão pela desestruturação dos próprios espaços e lugares onde a possibilidade de política está morta. Não se busca manter um lugar, mas acabar com o lugar; a desterritorialização do espaço político como possibilidade de encarnar as múltiplas vozes do coro dos “Condenados da Terra” em um objetivo comum e para o comum. É claro que qualquer epistemologia não é neutra porque social, então por que não se questiona a fundamentação social da epistemologia em nenhum momento no livro?

O fato de não criticar, em nenhuma passagem do livro, a fundamentação social dessa epistemologia, sustenta a posição de hierarquização e disputa no interior dos pressupostos e limites dados pelo capitalismo e sua posição que no lado sul do globo jamais deixou de ser colonial. Nada disso interessa aí.

Com uma teoria supostamente original, a aporia de sua estrutura se mantém inabalável do início ao fim. É uma teoria de significante colonial. A solução encontrada é então a criação de nichos de mercados conforme a súmula dos democratas americanos. Mas, nada disso se diz claramente senão que é preciso escutar as mulheres negras para que assim os quatrocentos anos de escravidão, trabalho precário, nadificação de sua existência sejam pagos através da garantia do lugar de fala! Trata-se de acessar a humanidade pelo ato da fala.

Naturalmente esta teoria é uma teoria de gestores da classe trabalhadora, aqueles que reivindicam um acento na política pública, ou um departamento de pesquisa na universidade. As trabalhadoras negras, aquelas que estão nas ruas pelas cinco da manhã e voltam às dez da noite, depois de um transito infernal, estão pouco se lixando para coisitas tais! Então, em primeiro lugar, é preciso estabelecer o lugar de fala dessa teoria e ele é o lugar da classe-média!

Esse lugar da classe média ilustrada é interessante ser posto em xeque porque acentua não apenas a dimensão ilusória de seus diagnósticos e de seus resultados, como nos faz entender como e o porquê a esquerda se afastou radicalmente da vida comum, das pessoas comuns. É patente a importância da discussão racial como aquela que possibilita interpretar a superexploração radical dos negros numa estrutura subdesenvolvida e dependente de capital, só que nada disso importa para essa classe-média.

A transformação social radical será negra, ou não será, mas para tanto é preciso que nós negros tenhamos dimensão concreta daquilo que possibilita o racismo e o mantém inalterado. É preciso sairmos dos limites coloniais que nos identifica, nos diz o que somos e como devemos agir. Mbembe diz, mais ou menos, que nada garante que o fim do capitalismo possa proporcionar o fim do racismo. Tudo bem! Mas, nós temos a certeza de que com a manutenção do capitalismo o racismo jamais terá fim. Arrisquemo-nos!
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segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

O morenismo à deriva diante da vitória de Bolsonaro


por Thiago Rodrigues

Com diferentes nuances, todo o morenismo serviu de quinta roda para o avanço do autoritarismo judiciário. Com o apoio ao impeachment ou à Operação Lava Jato, se posicionaram ao lado das forças mais reacionárias, que com o apoio do imperialismo buscavam avançar num ataque sem precedentes às condições de vida das massas, num nível muito mais profundo e acelerado do que o próprio governo petista já se propunha.

O golpe institucional de 2016 e sua continuidade com a prisão arbitrária de Lula e a manipulação eleitoral que favoreceu a vitória de Jair Bolsonaro, foi um divisor de águas na esquerda brasileira. As organizações morenistas, que reivindicam a tradição do dirigente trotskista argentino Nahuel Moreno (PSTU além de MES, CST e Resistência, que fazem parte do PSOL, essa última vinda de uma ruptura recente com o PSTU e com uma evolução política distinta) perderam qualquer critério de classe para sua orientação e navegam os agitados mares da política nacional sem nenhuma bússola.

O que marca a política atual do morenismo brasileiro é o criminoso apoio ao golpe institucional (para uma visão mais completa da política do morenismo frente ao golpe institucional, ler aqui).

Com diferentes nuances, todo o morenismo serviu de quinta roda para o avanço do autoritarismo judiciário. Com o apoio ao impeachment ou à Operação Lava Jato, se posicionaram ao lado das forças mais reacionárias, que com o apoio do imperialismo buscavam avançar num ataque sem precedentes às condições de vida das massas, num nível muito mais profundo e acelerado do que o próprio governo petista já se propunha.

Uma capitulação aberta à opinião pública burguesa e à campanha permanente contra a corrupção petista, como se essa fosse quase monopólio do PT. O que estava de fundo nessa cruzada anti-petista da opinião pública burguesa nunca foi o combate à corrupção, mas deslegitimar não o que o PT tem de burguês, mas deslegitimá-lo como representação política (ainda que distorcida, nós sabemos), da classe trabalhadora. Assim o PSTU (e também a CST) levantou o "Fora Todos" que começaria pelo "Fora Dilma", mas nunca prosseguiu para nenhum outro. O MES se transformou no campeão da Lava Jato até o final e até adotou como lema nas eleições municipais de 2016 em Porto Alegre o “candidata de mãos-limpas” para Luciana Genro, uma referência explícita à operação italiana na qual se inspira Sérgio Moro.

Sua política pretendia o absurdo de que o debilitamento do PT, mesmo que fosse pelas mãos da direita, faria avançar o processo de experiência de massas com o PT e abriria espaço para a esquerda revolucionária. A realidade não demorou para desmentir essas ilusões. O autoritarismo judiciário, ao tirar Dilma, ao prender Lula, ao perseguir o PT, teve efeito contrário. Por um lado ajudou a que amplos setores da classe trabalhadora tirassem conclusões pela direita, e não pela esquerda, da sua experiência com o PT. Por outro lado, fortaleceu na visão de milhões de trabalhadores a ideia do PT como o principal partido de esquerda. O golpe institucional ao invés de debilitar o PT nesses setores, apenas o fortaleceu.

Frente a esse descalabro, cada setor morenista seguiu seu caminho em meio à confusão generalizada. O PSTU se dividiu em dois, e a maioria segue a mesma política de quinta roda do golpismo, sem tirar nenhuma conclusão do processo.

O MES avança por um caminho ultra pragmático. Já em 2016 reviu a posição de apoio ao impeachment na última hora passando a caracterizá-lo como golpe parlamentar. Uma definição que deixa de fora justamente o pilar da ofensiva autoritária que é o judiciário, que expressa sua recusa em reconhecer o caráter reacionário da Lava Jato e a posição pró-imperialista do juiz Sérgio Moro. Vão tentando abandonar suas posições golpistas e se colar na base petista, mas sem rever seu apoio ao judiciário, com definições como a de que a entrada de Moro no governo Bolsonaro "daria lugar a um processo de experiência com esse juiz", que seria menos pior do que “alguns dos marginais políticos que acompanham Bolsonaro”. Talvez sirva ao menos para que a direção do MES faça sua experiência com um juiz que está a serviço da entrega do Pré-Sal e de outros interesses imperialistas.

Resistência: rompendo com o golpismo para aderir ao petismo?


A Resistência se recusou a romper com a política golpista do PSTU antes ou durante o golpe institucional, ou mesmo vir a público com as suas posições, abandonando o combate público contra a opinião pública burguesa e a luta por uma orientação correta para a vanguarda num momento crucial da história do país.

A Resistência, que rompeu com o PSTU a partir do questionamento correto à política golpista do PSTU, não fez nenhum balanço profundo das posições morenistas que levaram ao descalabro de apoiar o golpe institucional, e deu um giro de 180 graus na sua política, passando do PSTU ao seguidismo ao PT.

Uma forma diferente de cometer o mesmo erro: apostar em setores de classe alheios aos trabalhadores para resolver as tarefas que seriam dos próprios trabalhadores. Ao invés de fazer seguidismo aos golpistas para debilitar o PT, agora fazem seguidismo ao PT para debilitar o golpismo.

É um avanço, sem dúvida, reconhecer a existência do golpe institucional e o caráter reacionário da Operação Lava Jato. Porém, um giro que não vai até o final no balanço teórico e estratégico do morenismo os leva a repetir um erro que é o oposto simétrico ao do PSTU, se diluindo na maioria do PSOL e numa política quase acrítica ao petismo.

A diluição de todos os morenistas na frente ampla petista

No seu ecletismo as organizações morenistas combinam o seguidismo ao golpismo da direita, mesmo que de forma mais aberta, como o PSTU e CST, ou de forma cada vez mais envergonhada como o MES. O que emparenta essas três organizações é que, de uma forma ou de outra, frente à vitória de Bolsonaro, aprofundam a adaptação ao petismo.

MES e Resistência estão participando mais uma vez acriticamente da Frente Democrática ou Frente Ampla do PT contra Bolsonaro. As figuras parlamentares do MES participaram dos atos petistas no segundo turno e dos dois atos #elenão em setembro (apoiados inclusive por setores burgueses), e buscam agora conformar um bloco parlamentar com o PT. Não se trata de um pouco mais de crítica ou um pouco menos de crítica ao PT. Uma política independente do petismo deveria mostrar a impotência estratégica da Frente Democrática e apontar a luta de classes e a frente única da classe trabalhadora como único caminho para enfrentar os ataques de Bolsonaro e seu governo, mas mesmo isso não basta. É preciso também uma orientação correta para os sindicatos petistas, que ajude a base desses sindicatos a pressionar suas direções a tomar medidas efetivas de luta e organização e que ajude a acelerar sua experiência com essas direções, disputando a política do conjunto do movimento.

Depois de ter apoiado o impeachment da direita mais reacionária, colocado a tarefa de "superação do PT" nas mãos da pró-imperialista Lava Jato e Sérgio Moro, e calado qualquer delimitação com as burocracias sindicais petistas, o PSTU conclui que o "Fora Todos" foi um sentimento que ajudou a eleger Bolsonaro.

Ainda que envergonhada, trata-se da confissão de que sua política desde 2015 ajudou a jogar água no moinho de Bolsonaro, do golpismo e da direita, pois os dois "Fora Todos" conviveram bem nas paredes da FIESP. Agora, frente à necessidade de enfrentar Bolsonaro, aplaude acriticamente as manobras da burocracia sindical da CUT e demais centrais, que não apenas freiam qualquer plano de luta, mas propõem uma "reforma da previdência alternativa", um verdadeiro escândalo.

Por um lado nega a demanda de liberdade para Lula, a principal referência política do PT, o que é na pratica uma negação de uma frente única real (na luta de classes, para objetivos práticos de ação, a verdadeira acepção da frente única na concepção marxista) com setores da base petista. A posição do PSTU se torna ainda mais absurda, na medida em que não se diferencia da política das direções sindicais petistas para combater a reforma da previdência – lembrando que o elemento fundante da tática de frente única deveria ser a superação, na experiência concreta, das direções reformistas. Na prática acaba embelezando as direções petistas e, pela via da Conlutas, aderindo ao chamado capitulador e divisionista das centrais sindicais de fazer uma campanha por uma reforma da previdência distinta da que o governo Temer propôs e que Bolsonaro pretende aprofundar.

Um dos argumentos dos morenistas do MES, PSTU e CST, que buscam retroceder das suas posições anteriores sem nenhum balanço, é a importância do combate à corrupção e de que a esquerda não deixe essa bandeira nas mãos da direita. Para isso, de uma forma ou de outra terminam exigindo da própria justiça golpista que leve a luta contra a corrupção até o final, e ao fazer isso entregam a bandeira da corrupção e também sua independência programática para a direita contra a qual supostamente estariam disputando.

O combate à corrupção de uma perspectiva de classe e revolucionária tem que apontar não só contra a casta política, mas também judicial e militar. Com um programa que combine o fim de todos os privilégios de casta, o fim da justiça militar, o julgamento por júri popular de todos os crimes de corrupção e, nas conjunturas que antecederam a vitória eleitoral de Bolsonaro, a luta por uma assembleia constituinte para enfrentar o conjunto da casta política podre.

É preciso que essas organizações revejam criticamente sua estratégia desde o golpe institucional. De todos os zigue-zagues que o MES tenta para abrir diálogo com a base petista o que não muda é seu amor pelo judiciário. Muito menos o chamado a uma unidade acrítica com as centrais sindicais, mantendo todas as posições golpistas, como faz o PSTU, oferece uma política independente da Frente Democrática. Também um giro de 180 graus como fez a Resistência, sem rever as bases teóricas e estratégicas dos erros do PSTU, pode só conduzir a uma política de diluição no petismo.
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