domingo, 26 de agosto de 2018

A teoria crítica de Herbert Marcuse e o engajamento: os percalços na articulação teórica e prática



Resumo: A presente pesquisa tem o objetivo de analisar a perspectiva específica de engajamento que nasce da teoria crítica de Herbert Marcuse. O filósofo desenvolve uma concepção de dialética e de revolução, partindo de um viés marxista, com desdobramentos teóricos importantes sobre os caminhos emancipatórios para a transformação social. A emancipação, em sua imbricada relação com o conhecimento, foi configurada por Marx de uma maneira superadora em relação ao programa moderno do iluminismo, originando um sentido particular de crítica pautada na noção de práxis. Esta perspectiva é fulcral para a elaboração deste trabalho na medida em que nos orienta para uma nova compreensão de teoria que se vincula ao engajamento. Dentro deste trilho, o pensamento de Marcuse tem sua contribuição justificada ao pautar o estreito laço entre filosofia e política, teoria e prática, auxiliando-nos na difícil compreensão da dialética presente na categoria de práxis. Dessa forma, o exame da questão do engajamento em Marcuse nos permite avaliar dois aspectos principais. Primeiramente, sua interpretação específica de Marx, permitindo-nos melhor situar seu pensamento tanto na tradição marxista, como na história da filosofia. O outro aspecto é que o percurso de análise aqui traçado - ao caracterizar traços fundamentais sobre a relação entre engajamento e história por um ponto de vista marxista -, abre espaço para um enfoque particular acerca da teoria crítica de Marcuse, permitindo um balanço crítico de sua teoria no que tange aos desdobramentos práticos que surgem de sua reflexão crítica específica.

Palavras-chave: Herbert Marcuse. Engajamento. Karl Marx. Práxis. Teoria Crítica.

Abstract: This current research aims to analyze the specific perspective of engagement born from the critical theory of Herbert Marcuse. The philosopher develops a conception of dialectic and revolution, from a Marxist view, with important theoretical developments on the emancipation paths towards social transformation. The emancipation, in their intertwined relationship with knowledge, was configured by Marx which a surpassing way compared to modern program of the Enlightenment, giving a particular sense of criticism guided by the notion of praxis. This perspective is central to the development of this work in that it guides us to a new understanding of theory that links to the engagement. Within this track, the thinking of Marcuse has its contribution justified to abide the close link between philosophy and politics, theory and practice, helping us in the difficult understanding of dialectic present in the category of praxis. Thus, examining the issue of engagement in Marcuse allows us to evaluate two main aspects. First, your particular interpretation of Marx, allowing us to better situate your thinking as in the Marxist tradition as in the history of philosophy. The other aspect is that the route of analysis outlined here - to characterize key features of the relationship between engagement and history for a Marxist point of view - makes room for a particular focus approach about Marcuse's critical theory, allowing a critical assessment of your theory regarding the practical consequences that arise from your specific critical reflection.

Keywords: Herbert Marcuse. Engagement. Karl Marx. Praxis. Critical Theory.
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Arquivo em PDF
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GOMBI, Vivian Batista. A teoria crítica de Herbert Marcuse e o engajamento: os percalços na articulação teórica e prática. Orientador: Robespierre de Oliveira. Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Filosofia, UEM, Maringá, 2014, 179 f.
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domingo, 19 de agosto de 2018

Edmund Burke e a gênese do conservadorismo


por Jamerson Murillo Anunciação de Souza
ensaio em PDF

Introdução

O conservadorismo tem sido a tônica da política brasileira nos últimos anos. Nas instituições produtoras de conhecimento, esse tema tem ocupado espaço crescente. A razão disso é o significado social que o pensamento e a práxis conservadoras representam. Em um país de inserção periférica, dependente e heterônoma no circuito da divisão internacional do trabalho, como o Brasil, as ideologias conservadoras em geral, e o conservadorismo em particular, tendem a ressoar e a repercutir com intensidade sobre a cultura, a economia e a política.

No âmbito do debate estritamente político, o conservadorismo geralmente é associado às variadas posições contrárias aos avanços das pautas da esquerda. É implicado como conservador o indivíduo ou grupo político contrário, por exemplo, à luta pela universalização dos direitos e às demandas pela radicalização da democracia. Tal posição costuma estar associada, também, à adesão à ideologia do mercado, que envolve desde a defesa da mercantilização cada vez maior da vida social, até a agenda de combate ao avanço dos direitos humanos. Nas instituições de produção de conhecimento, por outro lado, o conservadorismo é, na maior parte das vezes, tomado genericamente. O conteúdo político, teórico e social dessa corrente de pensamento e ação com frequência aparece fundido ao pensamento liberal. Liberalismo e conservadorismo são tomados, corriqueiramente, como sinônimos.

Mas, tal como o liberalismo, entre outras tradições de pensamento fundadas pela modernidade, o conservadorismo tem uma trajetória histórica e uma proposta teórico-política próprias. Em equivalência, o conservadorismo adquire variados aspectos e características particulares de acordo com a formação social em que emerge. Originária da Europa e, mais particularmente, da Inglaterra do século XVIII, essa tradição influenciou intelectuais, políticos e classes sociais, de maneiras distintas na França, na Alemanha, nos Estados Unidos e também em países da América Latina.

No caso do Brasil, em consonância com o clima político instalado em quase todas as instituições da sua frágil democracia burguesa, observa-se, em anos recentes, o crescimento expressivo da publicação de obras e autores de repercussão nacional e internacional, ligados organicamente ao conservadorismo formulado por Edmund Burke. Autores como Russell Kirk, Michael Oakeshott, Roger Scruton, entre outros de expressão internacional, passam a tomar espaço significativo no mercado editorial brasileiro. Ao lado deles, um conjunto de divulgadores brasileiros do liberalismo, comumente inspirados pelas ideias elaboradas pelo Instituto Ludwig von Mises, passaram a defender, também, algumas ideias do conservadorismo. Tudo isso ocorrendo em paralelo à assim chamada “escalada conservadora”, que ganha densidade na cultura e na política institucional.

A matriz ideológica do conservadorismo é, reconhecidamente, o pensamento de Edmund Burke. Deste autor, e da tradição fundada por ele, provém boa parte das ideias que conferem conteúdo às várias expressões do conservadorismo no cotidiano. Sua influência se faz sentir, na contemporaneidade, em autores conservadores, citados acima, nas posições políticas de vários sujeitos políticos e no discurso cotidiano dos indivíduos, grupos e classes.

Neste texto, procuramos oferecer uma contribuição delimitada ao de- bate, que consiste em recuperar o conteúdo das ideias políticas e das análises de Burke sobre o processo revolucionário na França. Essa recuperação, na medida em que sublinha algumas ideias centrais do conservadorismo, pode fornecer alguns elementos para encetar uma abordagem mais acurada sobre as expressões do conservadorismo na atual configuração da sociedade de classes capitalista. Para tanto, realizamos uma revisão bibliográfica com o escopo de reconstruir a estrutura originária dessa tradição de pensamento e ação, que se organiza, outrora como hoje, como contrarrevolucionária e antirrevolucionária.

Edmund Burke e a crítica à revolução

Há relativo consenso, no debate sobre o pensamento social e político fundado na modernidade, quanto às Reflexões sobre a revolução na França (2014), de Edmund Burke, constituírem-se como ponto de partida do conservadorismo clássico. Manifesto dos interesses políticos e econômicos aristocráticos, as Reflexões se estabelecem como o marco da tradição conservadora. Nelas, estão condensados também os ideais culturais e simbólicos das classes sociais golpeadas pela Revolução Francesa, com destaque para a aristocracia feudal.

O texto foi publicado 1790, imediatamente após o desencadeamento do processo revolucionário jacobino, sendo traduzido e disseminado rapidamente em francês, alemão, italiano e espanhol. Foi bem recebido pelos setores intelectuais ligados e organizados em torno da reação antirrevolucionária, e objeto de crítica dos revolucionários, dos moderados aos radicais.

Estudiosos que procuram criticar a obra de Edmund Burke assinalam, comumente, o tom panfletário, irracional,[1] irascível e pouco profundo do autor. Quanto aos analistas mais simpáticos ao fundador do conservadorismo, pactuam que em Burke há, pelo menos, um ensaio de interpretação histórica sobre a revolução de 1789. Marx, em contraste com ambas as tendências, não poupou críticas duras nas poucas ocasiões em que se referiu a Edmund Burke. O conteúdo dessas críticas expressa claro desprezo.[2]

O que é central e motiva uma recuperação da principal obra de Burke é sua concepção de revolução, que é distinta daquela consagrada pelas várias correntes progressistas existentes no período pré e pós-1789. Para Burke, a revolução não significa a transformação radical de uma sociedade, momento fundador de uma nova sociabilidade e, por isso, crivado por contradições, tensões, mas também por elementos e valores emancipatórios. Para o irlandês radicado na Inglaterra, esse tipo insurrecional de revolução é tomado, de maneira unilateral, como momento de decadência e degradação, no qual a ordem estabelecida é destruída e as tradições, rebaixadas.

Portanto, a imagem de que a revolução insurrecional seria um processo substanciado por um fanatismo laico e dogmático, inimigo da pacífica continuidade e das mudanças contingentes da sociedade, teria sua origem nas Reflexões. Essa ideia se estende aos dias atuais e é basilar para a concepção conservadora de mundo. O conservadorismo, tanto clássico, quanto contemporâneo, renuncia aos modernos ideais de democracia e justiça social,[3] tomando-os como niveladores sociais. Ou seja, utópicos desejos meramente subjetivos de igualdade. Tais utopias seriam inaceitáveis sob o ponto de vista conservador, uma vez que a desigualdade social seria natural e positivamente constituída. Edmund Burke (2014, p. 70) afirma que

aqueles que tentam nivelar nunca igualam. Em todas as sociedades, consistindo em várias categorias de cidadãos, é preciso que alguma delas predomine. Os niveladores, portanto, somente alteram e pervertem a ordem natural das coisas, sobrecarregando o edifício social ao suspender o que a solidez da estrutura requer seja posto no chão.

O autor das Reflexões, protestante e fundador do conservadorismo, foi um parlamentar britânico conhecido por sua defesa de uma monarquia constitucional, em consonância com o partido de inclinações liberais do qual fazia parte, o Whigs. A “Revolução Gloriosa” inglesa, uma revolução “pelo alto”, passou a cumprir um papel icônico na batalha ideológica de Edmund Burke contra qualquer pretensão revolucionária que se aproxime em métodos, discursos ou estratégias jacobinas. “A simples ideia de criar um novo governo é suficiente para encher-nos de repulsa e horror” (2014, p. 53), afirma ele. Sua concepção de civilização era adepta dos ideais da cavalaria[4] e da nobreza britânica, que, segundo ele, foram responsáveis pelos avanços culturais e socioeconômicos da Europa.

Os acontecimentos de 1789 foram, na sua visão, um atentado ao mais elevado patamar civilizacional que a humanidade já havia alcançado: as instituições e tradições do antigo regime. A diferença entre a “Revolução Gloriosa” (1688) na Inglaterra e a Revolução Francesa (1789) é significativa. A primeira, modelo “revolucionário” ideal de Burke, caracterizou-se por uma transição “sem sangue”, via conciliação de interesses. O novo regime monárquico, parlamentar e constitucional, depôs Jaime II e entronizou o holandês Guilherme III, que aderiu ao novo pacto de poder, regido pela Declaração de Direitos, no qual uma parcela em ascensão da burguesia adquiriu reconhecimento e prestígio naquele país. Isso garantiu a continuidade, ao menos formalmente, à institucionalidade política já estabelecida. Foi uma “revolução sem revolução”, uma mudança conduzida “pelo alto”, sem a presença das classes dominadas. A revolução na França, em contraste, haveria realizado uma ruptura abrupta, desnecessária (“fútil”) e violenta com as heranças da tradição.[5] A partir de interesses acusados de serem particularistas, a sociedade francesa teria sido violentada e devastada por revolucionários inconsequentes. Escreve ele:

Leis viradas de cabeça para baixo; tribunais subvertidos; indústria sem vigor; comércio agonizante; impostos sonegados e, ainda assim, o povo empobrecido; uma Igreja saqueada sem o que o Estado obtivesse alívio com isso; anarquia civil e militar transformada em constituição do reino; tudo que era humano e divino sacrificado [...]. Eram necessários todos esses horrores [...] roubos, violações, assassinatos, massacres, incêndios por toda a extensão de sua terra devastada. (Burke, 2014, p. 60-61)

Com esse tom de denúncia e alarme, o conservador tenta convencer seus leitores de que uma revolução insurrecional como essa significa, por si mesma, desordem e destruição. Quanto aos revolucionários, não passariam de agitadores dogmáticos, desprovidos da clarividência da prudência e do respeito às tradições herdadas de um passado remoto. Esse diagnóstico da revolução e dos revolucionários, feito no imediato pós-1789, aparece com tons muitos semelhantes nos conservadores dos séculos XX e XXI.[6] Dessa feita, evidentemente, o alvo das críticas são as correntes anticapitalistas e, particularmente, o movimento comunista. Para Burke, não seria esse o papel de uma revolução. “A Revolução foi feita para preservar nossas antigas e indiscutíveis leis, liberdades e aquela antiga Constituição de governo, nossa única garantia da lei e da liberdade” (Burke, 2014, p. 52), sugere ele, baseando-se no processo não insurrecional de mudança política da Inglaterra. E acrescenta:

Outras revoluções foram conduzidas por pessoas que, ensaiando ou realizando mudanças no Estado, consagravam sua ambição em acrescentar dignidade ao povo cuja paz perturbavam. Enxergavam à distância. Pretendiam governar, não destruir o país. (2014, p. 68)

O objetivo de Burke era preservar as instituições políticas britânicas, que lidavam, na época, com os estágios iniciais do processo de subordinação do trabalho ao capital: a organização do trabalho nos regimes de cooperação e manufatura e as formas seminais das lutas proletárias. Para tanto, uma de suas táticas foi a “batalha das ideias”. Nas Reflexões, o autor faz a crítica aos valores, ideais e princípios que orientaram a Revolução Francesa — aqueles construídos pelo Iluminismo. Eles são pejorativamente apresentados como meras “abstrações”, destituídas de significado objetivo. É assim que as concepções de igualdade, direitos do homem, razão, antropocentrismo, liberdade individual, soberania popular, são identificadas como ideias perigosas à ordem estabelecida, corrosivas de toda a herança cultural e patrimonial das tradições europeias. Sua posição monarquista evidenciava suas escolhas antirrepublicanas e antidemocráticas.[7]

Essa negação das “abstrações”, em favor de um empirismo acentuado,[8] é outro princípio que o conservadorismo produzido a partir da segunda metade do século XX herda, incorpora e amplifica. Para uma estudiosa de seu pensamento, nas Reflexões:
 
[...] Burke exalta as virtudes da Constituição inglesa, repositório do espírito da continuidade, da sabedoria tradicional, da prescrição, da aceitação de uma hierarquia social e da propriedade, e da consagração religiosa da autoridade secular. É particularmente nesta obra que se encontram expostos de forma mais clara os fundamentos e traços conservadores do pensamento de Burke. (Kinzo, in Weffort, 2006, p. 19)

O irracionalismo é outra marca distintiva do pensador da contrarrevolução.[9] Ao identificar a racionalidade e o fazer teórico com a formulação desacreditada de princípios abstratos apriorísticos, descolados das “circunstâncias”[10] mais imediatas, Burke adere à “destruição da razão” (Lukács, 1972). Com essa operação reificada, o conservantista elabora mais um pilar duradouro do conservadorismo: a negação da razão e a entronização de uma concepção pragmática, imediatista, de ação e pensamento. A ciência, entificada, para ele, deveria ter “ficado satisfeita em continuar como instrutora e não aspirasse a ser senhora [...] pois agora [...] a ciência será atirada ao lodo e pisoteada pelos cascos de uma suína multidão” (2014, p. 98).

Mas isso não é tudo. O autor das Reflexões adere a uma concepção teleológica da causalidade, interditando a categoria da alternativa para o ser social. Abraçando o monoteísmo cristão, Burke projeta sobre o ser social suas concepções teológicas, defendendo que o Estado[11] e a sociedade constituem uma ordem natural eterna e divinamente estabelecida — a desigualdade social e a propriedade privada, incluídas. Com essa operação ideológica antropomorfizadora, o fundador do conservadorismo repousa suas ideias sobre o idealismo.

Tal concepção de mundo redunda na naturalização das relações sociais — redundância frequente entre as ideologias conservadoras. A divisão da sociedade em classes e a desigualdade social, portanto, compõem, na visão burkeana, um quadro de hierarquia e ordenamento correspondentes à natureza. Por derivação, tal quadro é interpretado como perene e insuperável. É, pois, um atentado contra a natureza a impostação de um princípio como o da igualdade social. A luta por ela, um atentado contra a ordem divina. Anota ele: “[...] nenhuma designação, poder, função, ou qualquer instituição artificial que seja, é capaz de fazer os homens que compõem algum sistema de autoridade serem algo diferente daquilo que Deus, a natureza, a educação e seus hábitos de vida lhe fizeram” (2014, p. 61).

Apresentando-se como “prudente” analista dos eventos revolucionários na França, tentando com isso se contrapor às mensagens de felicitação que a Sociedade da Revolução inglesa enviara aos representantes da vindoura Primeira República francesa, Burke escreve nas Reflexões (2014, p. 30):

[...] deveria me abster de felicitar a França por sua nova liberdade até que tivesse conhecimento de como esta liberdade se harmoniza com o governo, com o poder público, com a disciplina e a obediência dos exércitos, com o recolhimento e a boa distribuição dos impostos, com a moralidade e a religião, com a solidez da propriedade, com a paz e ordem, com os usos civis e sociais. Todas essas coisas são (à sua maneira) bens, e se vierem a faltar, a liberdade deixa de ser um benefício e tem pouca chance de durar muito tempo.

Entretanto, o que se apresenta, a partir desses termos, são os critérios utilizados pelo autor para avaliar a envergadura das transformações socio-políticas da França. Ou seja: se, e em que medida, essas transformações se ajustam ou destoam da estrutura modelada pelo antigo regime. Burke usa a “Revolução Gloriosa” como exemplo e referência também nesse particular. Referindo-se a ela, ele afirma:

Todas as reformas que fizemos até hoje respeitaram o princípio de referência ao passado; e espero, ou melhor, estou convencido de que todas as que pos- samos realizar no futuro estejam cuidadosamente construídas sobre esse precedente, autoridade e exemplo análogos. (2014, p. 53)

É possível concluir, com base nesses argumentos do autor, que ele anseia por uma “revolução sem revolução”, ou seja, mudanças “pelo alto”, localizadas e específicas, que sirvam para preservar as tradições já estabelecidas e sejam conduzidas por uma distinta parcela da sociedade: os proprietários. Adicionalmente, essas mudanças deveriam ser realizadas com absoluto distanciamento dos componentes insurrecional e popular, o que exclui também os anseios por democracia e a noção de luta por direitos.

Procurando explicações para um evento da envergadura da Revolução Francesa, Burke aponta a Assembleia que convocou os Estados gerais como elemento central para o desencadeamento daquele processo. Justifica sua afirmação apontando que haveria uma representação desproporcional dos interesses da sociedade francesa naquela instituição. O Terceiro Estado, por outro lado, estaria sobrerrepresentado e, por isso, haveria uma tendência prévia à insurreição.

Na visão dele, seria papel da nobreza e dos mais altos signatários das classes dominantes a realização das mudanças políticas na França, não dos setores dominados da sociedade. A Assembleia, todavia, tomada numericamente por pequenos-burgueses (“comerciantes que nunca conheceram nada além de seu escritório” (2014, p. 64), na designação pejorativa de Burke) e membros das classes trabalhadoras [“homens feitos para serem instrumentos e não para exercer um controle” (Idem)], representava, na sua visão, a centelha que deu início aos eventos revolucionários. O resultado de uma composição parlamentar favorável aos interesses populares, para o conservador, não podia ser outro a não ser a desagregação caótica da nação.

A esse quadro que parece sugerir a degradação da Assembleia francesa, Burke opõe o exemplo, que ele considera positivo, da Inglaterra, onde o Parlamento seria composto por “tudo o que o país pode oferecer de mais ilustre posição, descendência, riqueza hereditária ou adquirida, talentos cultivados, distinção militar, civil, naval e política” (2014, p. 64). Isto é, uma instituição que haveria selecionado os melhores quadros da sociedade inglesa e retido a penetração de membros de classes “inferiores”. Disso derivaria, na sua perspectiva, a qualidade superior do Parlamento inglês em relação ao francês, sendo recorrente, nas Reflexões, críticas aos sistemas políticos que cedam espaço de representação às classes dominadas. Burke, avançando sua investigação sobre os possíveis “culpados” pela revolução, ressalta que:

Após ter considerado a composição do Terceiro Estado tal como ele se apresentava na origem, dirigi o olhar para os representantes do clero. Também aqui pareceu haver bem pouca consideração pela segurança geral da propriedade, ou pela aptidão dos deputados para seus propósitos públicos. Essa eleição foi planejada de forma a enviar uma enorme proporção de vigários de aldeia para o grande e árduo trabalho de remodelar o Estado; [...] homens que nada sabiam do mundo para além dos limites de uma aldeia obscura; que, mergulhados em uma irremissível miséria, não podiam considerar a propriedade, fosse secular ou eclesiástica, senão com os olhos da inveja. (2014, p. 66)

Assim, por intermédio das avaliações burkeanas, o tema da suposta “inveja dos ricos pelo pobres”, assim como certo desprezo pelas formas de vida e cultura das classes dominadas, é inserido na pauta de discussão do conservadorismo. Edmund Burke parece derivar, da condição de pobreza originária dos deputados da Assembleia francesa, fossem ou não eclesiásticos, todas as vilanias que ele enxerga sintetizadas na degenerescência daquela instituição. O objeto dessa suposta inveja, a propriedade, precisa, segundo as indicações conservadoras, ser preservada e protegida pelo Estado.

A característica essencial da propriedade, resultante de princípios combinados de sua aquisição e conservação, consiste em ser desigual. Por conseguinte, torna-se necessário protegê-la da possibilidade de qualquer perigo, uma vez que excita a inveja e estimula a rapacidade. (2014, p. 72)

Esse tipo de operação, que rastreia e imputa a “culpa” pela “degradação da sociedade” às características de certos indivíduos, ou classes, ou grupos, com base na sua “origem” ou condição socioeconômica, ou bases ideológicas, visto em perspectiva histórica, é um dos eixos centrais dos regimes fascistas (ou de inclinações fascistas).

Ao adotar essa ideia como critério definidor das dificuldades encontradas por determinada sociedade (e não as contradições decorrentes de uma estrutura de classes que supõe a propriedade privada), a tendência que comumente surge no cenário político é o estabelecimento de perseguições políticas, ideológicas, xenofóbicas e religiosas (pois aqueles que não aderem ao cristianismo também são vistos com desconfiança no contexto do conservadorismo presente nas Reflexões),[12] subsidiadas pelo discurso do “interesse nacional” e em defesa da “limpeza” e do “expurgo” desses elementos “nocivos” à sociedade. Indivíduos ou grupos dissidentes ou discordantes tendem a ser qualificados como “traidores” da “nação”.

Burke, na condição de fundador do conservadorismo, não poupa censuras à ideia dos “direitos do homem”, cara aos jusnaturalistas — fundamentalmente, a Rousseau. Para o defensor dos “direitos hereditários”, os “direitos do homem” constituem um posto avançado para a difusão perigosa de conceitos antinaturais e abstrações infundadas, como igualdade, democracia, direitos inalienáveis e assim por diante. Segundo ele, trata-se de um “imenso arsenal de armas ofensivas, os direitos do homem” (2014, p. 134). Seus defensores, sob a pena de Burke, são descritos como membros de “clubes compostos de uma mescla monstruosa de todas as condições sociais, línguas e nações” (2014, p. 87). Na longa narrativa dedicada ao assassinato de Luís XVI e família, Burke claramente associa o “crime”, o “terror” e o “horror”, junto com a grande sequência de crimes cruéis que aparenta denunciar, às ideias centrais do Iluminismo. O autor das Reflexões não discute outra possível determinação para o processo revolucionário que não seja o cultivo nocivo das ideias iluministas.

Não é possível silenciar sobre o elogio ao “preconceito” que se encontra como eixo das reflexões burkeanas.

[...] em vez de prescindir de nossos velhos preconceitos, nós os cultivamos em um grau muito considerável e, para nossa maior vergonha, nós os cultivamos porque são preconceitos, de modo que quanto mais tenham durado e mais tenham prevalecido, tanto mais os cultivamos. [...] Muitos de nossos filósofos, em vez de desacreditarem os preconceitos gerais, empregam sua sagacidade em descobrir a sabedoria latente que eles encerram. Se encontram o que buscam (e raramente falham), consideram mais sensato continuar com o preconceito, juntamente com razão que o envolve, do que, prescindindo desta capa, deixar a razão nua; porque o preconceito torna a razão ativa; e pela afeição que lhe inspira, confere-lhe permanência. O preconceito é de aplicação imediata em casos de emergência; dispõe previamente a mente a um curso constante de sabedoria e de virtude, não permitindo que o homem, no momento da decisão, fique hesitante, cético, confuso e indeciso. (Burke, 2014, p. 106)

Ainda que seja feita a ressalva quanto ao sentido empregado pelo conservadorismo aos “preconceitos” — segundo o qual estes últimos consistiriam em um referencial estabelecido pelo acúmulo das experiências[13] — ao fundamentar as escolhas, ações e pensamentos em “preconceitos”, o conservadorismo abole qualquer perspectiva de debate racional sobre a formação social e econômica de determinada sociedade. Além disso, passa a enquadrar indivíduos e grupos em padrões previamente estabelecidos. As exceções, por derivação, tendem a ser encaradas como “desvios”, “anomias”, “doenças”, como “casos” a serem reconduzidos ou reprimidos, posto que representam “ameaças”.

Com alguma variação (relativa mais à forma de exposição que ao conteúdo em si mesmo), esse princípio dos “preconceitos” como fonte de orientação ideal e de conduta moral é abraçado pelos conservadores da atualidade — muito embora ele apareça, nos contemporâneos, atenuado, quando comparado à formulação do fundador do conservadorismo clássico.[14] Mais tarde, a sociologia de Émile Durkheim se baseará nesse tipo de critério para definir o “normal” e o “patológico” no “organismo social”. Não obstante a maior sofisticação do pensamento durkheiminano — em relação ao burkeano —, o sistema de conceitos do primeiro funcionalista redunda em um levantamento das causas e consequências dos comportamentos e condutas desviantes, assim como os possíveis “remédios”[15] a serem empregados a fim de recuperar a condição de “harmonia” conferida pelo avanço da “solidariedade orgânica”.

Conclusão

Seria um erro subestimar a influência política e a importância de Edmund Burke na base da formação do pensamento conservador e do conservadorismo como vertente política. Domenico Losurdo,[16] atento às nuances adquiridas pelo conservadorismo na Europa, destaca sua penetração na “atrasada” Alemanha da época, mas também a tendência à ampliação internacional de sua influência:

É inegável a grande influência de Burke sobre o conservadorismo alemão durante toda a sua evolução, até o século XIX. [...] Edmund Burke fornece o primeiro modelo de crítica à revolução, assesta as armas e o arsenal teórico que depois será utilizado também em outros países durante a luta também contra as revoluções posteriores. (2014, p. 373; grifos nossos)

As Reflexões, nesse sentido, não apresentam apenas a síntese dos interesses contrarrevolucionários de uma aristocracia golpeada. Constituem-se também em um manual antirrevolucionário, na medida em que constrói um quadro de referência ideológica e política elaborado como antítese da revolução insurrecional, aquela que funda uma nova sociabilidade por intermédio do “assalto ao céu”. Em seu lugar, prescreve um ideal e uma prática “revolucionária” de mudanças políticas e econômicas “pelo alto”, conduzidas pelos setores mais elevados das classes dominantes. Edmund Burke não aprova alianças ou coalizões com classes sociais emergentes em função de serem destituídas de tradições, heranças e ideais de nobreza e cavalheirismo, tais como, à época, a nascente burguesia industrial e também a mercantil. Tais classes, excessivamente ligadas ao enriquecimento privado, na visão do autor, seriam desprovidas de uma visão mais geral de ordem pública, típica dos nobres feudais. Essa posição será, depois, revista pelos demais conservadores.

Com isso, Burke insere uma ideia cara e central ao conservadorismo: aquela segundo a qual a política deve ser feita por proprietários, pois estes seriam sujeitos “naturalmente” propensos à preservação da ordem e à manutenção da sociedade vigente. Nesse sentido, Burke funda uma matriz de pensamento que se tornará ampla e multifacetária com o passar do tempo, mas articulada em seus fundamentos ao conjunto de proposições e análises expostos nas Reflexões. Mais tarde, a partir de 1848, o pensamento liberal constituirá um dos pilares de sustentação do conservadorismo, significando uma mudança importante no seu eixo. Isto é, de pensamento antiburguês, passa a se constituir como mais uma ideologia conservadora típica da sociedade capitalista. Losurdo registra essa tendência: “É toda a burguesia europeia que, depois de 1848, em função antijacobina e antiproletária, exalta, transfigurando-a, a tradição política inglesa” (2014, p. 389).

O caráter assistemático das Reflexões — que dispensa o uso de categorias de análise, conceitos racionais e afasta a própria razão ao identificá-la como fonte de tirania e fonte de erros — fundou também a forma característica de construção do discurso conservador. A maioria dos conservadores da contemporaneidade tende, outra vez, a elevar as “paixões”, os “sentimentos”, as “intuições”, ao patamar de fonte verdadeira de conhecimentos, posto que são provenientes “das verdades profundas da alma humana” e, por isso, seriam mais “puras” que as conclusões eivadas pelo crivo “artificial” da razão e do método científico. Esse afastamento e essa “destruição da razão” (Lukács, 1972), tal como concebida pela modernidade, permitem situar Edmund Burke como um dos pioneiros do irracionalismo.

O conservadorismo burkeano se particulariza, assim, no espectro mais amplo das ideologias conservadoras, como uma coletânea quixotesca de princípios aristocráticos, empunhados não apenas contra a revolução insurrecional, mas também contra quaisquer ideias progressistas oriundos da modernidade. Nessa medida, o autor das Reflexões parece incorporar a “hipocondria da antipolítica”, designação crítica que Domenico Losurdo recolhe de Hegel para qualificar “uma visão de mundo, que torna difícil ou impossível a participação ativa e consciente na vida política” (2014, p. 9). Isto é, determinada matriz de pensamento e ação que se afasta, abstrai e mistifica as relações sociais estabelecidas pelo modo de produção capitalista, procurando substituir a realidade objetiva por abstrações moralizantes.

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Notas
[1] Para ilustrar sua forma peculiar de argumentação, basta reproduzir uma passagem escolhida entre outras possíveis: “Mediante um apolítica constitucional que opera segundo o padrão na natureza, recebemos, conservamos e transmitimos nossas propriedades e nossas vidas. Recebemos e legamos aos outros as instituições políticas no mesmo rumo e ordem que os bens da fortuna e as dádivas da Providência. Nosso sistema político encontra-se em justa correspondência e simetria com a ordem do mundo, e com o modo de existência decretado para um corpo permanente composto de peças transitórias, no qual, por meio da disposição de uma estupenda sabedoria que molda a grande e misteriosa encarnação da espécie humana [...]” (2014, p. 55-56).
[2] Em O capital, no capítulo XI, Marx atribui os adjetivos de “sofista e sicofanta” (1985a, p. 257) a Edmund Burke. No capítulo XXIV, o filósofo alemão reitera seu conceito e acrescenta: “Edmund Burke [...]. Esse sicofanta, que a soldo da oligarquia inglesa bancou o romântico em face da Revolução Francesa, do mesmo modo que, a soldo das colônias norte-americanas, bancara no início dos motins americanos o liberal diante da oligarquia inglesa, era sob todos os aspectos um burguês ordinário: ‘As leis do comércio são as leis da Natureza e consequentemente as leis de Deus’. [...] Não é de admirar que ele, fiel às leis de Deus e da Natureza, vendeu sempre a si mesmo no melhor mercado! [...] Em face da infame falta de caráter, que predomina hoje, e da crença mais devota nas “leis do comércio”, é dever estigmatizar, sempre de novo, os Burkes, que se diferenciam de seus sucessores apenas por uma coisa: Talento!” (1985b, p. 292).
[3] Marx advertiu sobre esse estreitamento do horizonte sociopolítico burguês, que se expressa na pauta do conservadorismo. Em O 18 de brumário de Luís Bonaparte, ele afirma: “Toda e qualquer reivindicação da mais elementar reforma financeira burguesa, do mais trivial liberalismo, do mais formal republicanismo, da mais banal democracia é simultaneamente punida como ‘atentado contra a sociedade’ e estigmatizada como ‘socialismo’“ (2011, p. 37).
[4] Na chamada “literatura universal”, a ironia com que Cervantes retrata seu Dom Quixote de la Mancha (2002), em aventuras que contrastam a fantasia do herói e a realidade social objetiva, oferece uma perspectiva crítica sobre o idílio dos “ideais de cavalaria”. No limite, o nobre cavaleiro perde qualquer contato com a realidade e orienta suas ações e escolhas com base no arsenal literário fantástico que acumulou durante a vida. A partir da oposição entre nobreza, ingenuidade, delírio, grandiloquência e realidade concreta, permeada por contradições e interesses mesquinhos, Cervantes apresenta a comédia e a tragédia da sua personagem. Burke, em várias ocasiões em sua obra, lamenta-se que tenha passado o tempo da cavalaria, com suas honras, prestígios e ideais de nobreza e devoção.
[5] O tema da “tradição”, como se sabe, é recorrente entre os conservadores. Burke não destoa. Aparentemente emulando a “voz do povo”, ele descreve o que considera como sendo a força das tradições dos ingleses e sua repulsa às propostas de mudança: “O povo da Inglaterra não vai macaquear as modas que nunca experimentamos; nem voltar àquelas que, por experiência, achou daninhas. Ele olha para sucessão hereditária legal de sua coroa como um de seus direitos, não como um de seus erros; como um benefício, não como um agravo; como uma segurança para a sua liberdade, não como um símbolo de servidão. Ele olha para a estrutura de seu Estado, tal como existe, como sendo de valor inestimável; e concebem a inalterada sucessão da Coroa como promessa da estabilidade e perpetuidade de todos os demais membros de nossa Constituição” (2014, p. 48). Como se pode notar, o autor poucas vezes consegue defender suas ideias com argumentos que ultrapassem uma petição de princípios.
[6] Entre outros, Michael Oakeshott e Roger Scruton reproduzem esse tipo de avaliação. Conferir: Sobre a história (2003) e O que é conservadorismo (2015), respectivamente.
[7] No caso da democracia, vale recuperar as palavras do autor: “Uma perfeita democracia é, portanto, a coisa mais vergonhosa do mundo. Sendo a mais vergonhosa, é também a mais temível” (2014, p. 112).
[8] “De que adianta discutir o direito abstrato de um homem ao alimento ou aos remédios? A questão está em saber em como consegui-los e administrá-los. Nessa deliberação, sempre aconselharei que se solicite a ajuda do agricultor e do médico, e não a de um professor de metafísica” (Burke, 2014, p. 81). Chama a atenção essa prescrição burkeana pela ressonância que parece obter entre os meios políticos na contemporaneidade. Qualquer debate em torno de direitos e políticas sociais é tensionado à subordinação aos assuntos “técnicos”, da mais pragmática “administração”, onde vigoram a predominância do orçamento e a sacralização da racionalidade contábil com vistas ao pagamento das dívidas externas e internas. Pouco importa que essa tendência seja ou não baseada no pensamento de Burke. O central, nesse quesito, são as condições objetivas da sociedade de classes que conduzem a esse estreitamento dos horizontes civilizatórios. Desde Burke até o presente, como disse Marx, os homens “não o sabem, mas o fazem” (1985a, p. 72). “A razão política é um princípio calculador” (Burke, 2014, p. 82), observa o conservador.
[9] São abundantes, em Burke, as referências que subestimam a razão ante o imediatismo. Simultaneamente, há um elogio do agir irrefletido e espontâneo, irracional, com base nos “instintos” nos “sentimentos”, presentes na natureza (entificada) e nos homens. “De acordo com o mesmo plano que nos fez adequar nossas instituições artificiais à natureza, e apelando à ajuda de seus infalíveis e poderosos instintos para fortalecer as débeis e frágeis invenções de nossa razão, derivamos diversos outros benefícios, e não certamente pequenos, do fato de considerarmos nossas liberdades à luz da herança. [...] Fazemos respeitar nossas instituições civis segundo o princípio pelo qual a natureza nos ensina a reverenciar os indivíduos, isto é, de acordo com a idade deles e daqueles de quem descendem. Nenhum dos sofistas de seu país poderá inventar algo mais bem adaptado a preservar uma liberdade racional e viril do que o caminho que adotamos, procurando seguir a natureza ao invés de nossas especulações, nossos sentimentos ao invés de nossas invenções, e fazendo deles a salvaguarda e o depósito de nossos direitos e privilégios” (2014, p. 56).
[10] Nos parágrafos iniciais das Reflexões, lemos: “São as circunstâncias [...] que, na realidade, dão a todo princípio político sua cor própria e seu efeito particular. São as circunstâncias que fazem com que qualquer sistema civil e político seja benéfico ou nocivo à humanidade” (2014, p. 29-30). Com essa referência reiterada à força do significado das circunstâncias, o autor pretende relativizar a interpretação dos acontecimentos, evitando assim representações unilaterais sobre fenômenos históricos. Todavia, o resultado efetivamente alcançado por ele parece se restringir a um relativismo rudimentar. Mais à frente, ele exemplifica como esse princípio das “circunstâncias” serve para colocar em perspectiva os acontecimentos. Escreve ele: “Falando em abstrato, o governo, assim como a liberdade, é bom [...]. Iria eu cumprimentar um assaltante e assassino que tenha fugido da prisão, por ter readquirido seus direitos naturais?” (2014, p. 30). Um argumento, como se pode notar, eivado pelo senso comum.
[11] Sobre a natureza e a função do Estado, o irracionalismo de Burke transparece de um idealismo desconectado da realidade material: “O Estado é uma associação que participa de todas as ciências, todas as artes, todas as virtudes e todas as perfeições. [...] Cada contrato de cada Estado particular é apenas uma cláusula no grande contrato primitivo da sociedade eterna, que liga as naturezas inferiores às superiores, conectando o mundo visível ao invisível, de acordo com um pacto fixo sancionado pelo inviolável juramento que mantém todas as naturezas morais e físicas em seus respectivos lugares” (2014, p. 115).
[12] “Sabemos, para nosso orgulho, que o homem, por sua constituição, é um animal religioso; que o ateísmo é contrário não apenas à nossa razão, mas também aos nossos instintos, não podendo prevalecer por muito tempo. [...] aquela religião cristã que, até agora, tem sido nosso motivo de orgulho e nosso consolo, assim como uma grande fonte de civilização entre nós e muitas outras nações, ficaríamos apreensivos (sabedores de que a mente não suportará o vazio) de que alguma superstição grosseira, perniciosa e degradante devesse tomar seu lugar” (2014, p. 110).
[13] Robert Nisbet, entre outros conservadores, afirma essa ressalva: “[...] preconceito é a essência de toda uma maneira de conhecer, compreender, sentir [...]. Para Burke, o preconceito é um resumo, na mente individual, da autoridade e da sabedoria contidas na tradição” (1987, p. 57-58).
[14] Tem se avolumado no Brasil uma bibliografia conservadora significativa, ligada ao conservadorismo clássico de Burke e empenhada em substanciar um projeto societário nesse país. Sobre essa questão do papel dos preconceitos no conservadorismo, por exemplo, já é possível consultar em português a obra de Theodore Dalrymple, Em defesa do preconceito: a necessidade de se ter ideias preconcebidas (2015). João Pereira Coutinho também aborda esse tema em seu As ideias conservadoras: explicadas a revolucionários e reacionários (2014).
[15] “Os homens prudentes aplicarão seus remédios aos vícios, não aos nomes, às causas permanentes do mal, não aos órgãos efêmeros pelos quais elas atuam e às formas transitórias que assumem" (2014, p. 157). Os vícios, a que Burke se refere, seriam espécies degeneradas de conduta moral, que ele especifica: “[...] orgulho, ambição, avareza, vingança, luxúria, hipocrisia” (2014, p. 157); a lista segue.
[16] Em A hipocondria da antipolítica (2014), Losurdo faz um levantamento relevante dos autores, obras e órgãos de imprensa conservadores inspirados por Burke na Europa, incluindo-o também como uma das fontes “teóricas” que lançaram as bases do “darwinismo social”.
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Referências bibliográficas
BURKE, E. Reflexões sobre a revolução na França. Tradução José Miguel Nanni Soares. São Paulo: Edipro, 2014.
CERVANTES, M. de S. O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha. Tradução Sérgio Molina. São Paulo: Editora 34, 2002. Livro I.
COUTINHO, J. P. As ideias conservadoras: explicadas a revolucionários e reacionários. São Paulo: Três Estrelas, 2014.
DALRYMPLE, T. Em defesa do preconceito: a necessidade de se ter ideias preconcebidas. Tradução Maurício G. Righi. São Paulo: É Realizações, 2015. (Abertura Cultural.)
KINZO, M. D. G. Burke: a continuidade contra a ruptura. In: WEFFORT, F. C. (Org.). Os clássicos da política. 11. ed. São Paulo: Ática, 2006.
LOSURDO, D. A hipocondria da antipolítica: história e atualidade na análise de Hegel. Tradução Jaime Clasen. Rio de Janeiro: Revan, 2014.
LUKÁCS, G. El asalto a la razón: la trayectoria del irracionalismo desde Schelling hasta Hitler. Barcelona: Grijalbo, 1972.
MARX, K. O capital: crítica da economia política. Tradução Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. 2. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985a. (Col. Os economistas; Livro I, v. I).
______. O capital: crítica da economia política. primeiro. Tradução Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. 2. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985b. (Col. Os economistas; Livro I. v. II.)
______. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. Tradução Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011. (Col. Marx-Engels.)
NISBET, R. O conservadorismo. Tradução M. F. Gonçalves de Azevedo. Lisboa: Editorial Estampa, 1987. (Temas de ciências sociais.)
OAKESHOTT, M. Sobre a história. Tradução Renato Rezende. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003.
SCRUTON, R. O que é conservadorismo. Tradução Guilherme Ferreira Araújo. São Paulo: É Realizações, 2015. (Abertura cultural.)
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Resumo: O artigo procura recuperar o conteúdo das ideias políticas e das análises de Burke sobre o processo revolucionário na França. Através de uma revisão bibliográfica, destaca as principais posições do fundador do conservadorismo. O objetivo consiste em reconstruir a estrutura originária do conservadorismo como uma das ideologias conservadoras surgidas no período moderno.

Palavras-chave: Conservadorismo. Edmund Burke. Revolução.

Edmund Burke and the genesis of conservatism


Abstract: In the article it is sought to recover the content of Burke’s political ideas and analyses about the French revolutionary process. By means of a bibliography review, it highlights the main positions of the founder of the conservatism. The aim is to rebuild the original structure of the conservatism as a conservative ideology which emerged in the modern period.

Keywords: Conservatism. Edmund Burke. Revolution.
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SOUZA, J. M. A. de. “Edmund Burke e a gênese do conservadorismo”. In: Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 126, p. 360-377, maio/ago. 2016.
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terça-feira, 7 de agosto de 2018

O ateísmo religioso dos niilistas secularizados


A religiosidade sem Deus

Conforme Lukács, Schopenhauer inaugura esta última expressão da apologia ao capital. Daí provém o seu pessimismo: elevando as misérias do capital à condição humana,o filósofo abstém-se então de qualquer luta. Afinal, uma luta contra as contradições intrínsecas à alma do homem está fadada ao fracasso; não haveria batalha consequente contra a natureza mesma do homem. Por isso, “a vida oscila, como um pêndulo, da direita para esquerda, do sofrimento para o aborrecimento: estes são os dois elementos de que ela é feita” (Schopenhauer, 2004, p. 327). O que Schopenhauer intitula as dores do mundo não são nada além do que as dores de um mundo historicamente situado, do mundo particular burguês.

Diante de um mundo dolente, cabe ao indivíduo encasular-se em si mesmo. A autarquia do indivíduo autossuficiente, que se expressa na obra de Schopenhauer, é um específico reflexo do período da Restauração prussiana. Depois de tantas mudanças pelos continentes (revolução francesa, as guerras napoleônicas, as guerras de independência,etc.), a miséria alemã permanecia intocada; uma revolução democrático-burguesa estava distante dos horizontes da Alemanha submetida aos mandos de Guilherme IV. Atendo-se aos limites da nação germânica — contrária a uma visão de amplitude cosmopolita comum a Kant, Fichte, Schiller, Hegel, Goethe, Hölderlin —, não é difícil de concluir que qualquer ação transformadora seria inútil.

Contudo, há uma diferença substancial entre Schopenhauer e a filosofia partidária da Restauração. Lukács a identifica:
Ressalta claramente aqui o que há de coincidente e de divergente entre Schopenhauer e a filosofia irracionalista do período da Restauração. Uma e outra tratam de educar seus partidários na passividade social. Mas por caminhos distintos. A segunda, glorificando como obra de Deus o 'crescimento orgânico' da sociedade, é dizer, proclamando a legitimidade exclusiva da ordem absolutista-feudal e condenando como satânico, como inorgânica, como fruto do "artifício", toda transformação revolucionária, enquanto que naquele, em Schopenhauer, o irracionalismo da sociedade e da história aparece como um absurdo puro e a aspiração de tomar parte na vida social, e não digamos o empenho em transformá-la, se revela como uma ausência tal de visão do que é o mundo, que raia já o criminal (1968, p. 173)
A educação para a passividade é feita com cartilhas diferentes. Schopenhauer não pretende justificar a miséria alemã utilizando-se da suposta legitimidade do Absoluto; a sua intenção é demonstrar o caráter "humano" dessa miséria, cujo absurdo é inerente à alma do homem e contra o qual não se pode lutar.

Não haveria em um burguês laico como Schopenhauer a defesa da mística religiosa. Em seu tempo, Schopenhauer nunca pretendeu defender a mística do cristianismo feudal como fizera Schelling; o seu ponto de vista é de uma burguesia secularizada. Isso explica porque a crise da religião não levou Schopenhauer a defendê-la, mas senão encontrar para ela um substituto. Lukács argumenta que o filósofo irracionalista constata a falência dos mitos tradicionais ligados à religião; entretanto, para não abstrair desse movimento uma concessão ao materialismo, apresenta o “Nada” como substituto para a religiosidade, para aqueles que não mais se apegam às crenças tradicionais e procuram uma “nova religião”. Em face da crise das religiões, cria-se um suplente: o “nada” absoluto, uma espécie de Cosmos. Eliminando a noção de Deus de uma “maneira descente”, isto é, anti-materialista, Schopenhauer cria a religiosidade sem Deus.

Trata-se do que Lukács chama de ateísmo religioso. Suprime-se a religião elevando o “nada” absoluto à condição de novo objeto de adoração. A abordagem aqui dada ao colapso religioso não é outra coisa além de uma saída irracionalista para um problema objetivo.

Desse ateísmo religioso procede a admiração de Schopenhauer não pelo catolicismo de seu tempo e sim pelas religiões orientais e pelo cristianismo primitivo, cujos preceitos visavam atingir uma “piedade cósmica”. Segundo Schopenhauer:
 
Despojar-se de suas riquezas, abandonar qualquer habitação, deixar os seus, viver no isolamento mais profundo, afundado numa contemplação silenciosa, infligir-se penitência voluntária no meio de lentos e terríveis suplícios, em vista da mortificação completa da vontade, levada finalmente à fome [...] precipitando-se da rocha sagrada do alto do Himalaia, ou fazendo-se enterrar vivo [...] Preceitos observados durante tanto tempo por um povo que conta milhões de indivíduos, impondo sacrifícios tão pesados, não pode ser uma fantasia inventada por capricho, mas devem ter a sua raiz na própria essência humana (2004, p. 407).

Ao levarmos uma vida ascética, como demanda a moral hindu, não encontramos no fim o Nirvana hinduísta; o que nos espera em seu lugar é o nada, é o precipitar-se do alto do Himalaia. Para os resignados, “para aqueles que se converteram e aboliram a Vontade, [o que resta] é o nosso mundo atual, este mundo tão real com seus sóis e todo as as suas vias lácteas, que é o nada” (idem, 2004, p. 431). Assim termina o texto de O mundo como vontade e representação, pondo o “nada” no pedestal antes ocupado por Deus.

Ranieri Carli, György Lukács e as raízes históricas da sociologia de Max Weber.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 17-18.

Sobrevivências teológicas

As perspectivas míticas, cuja eclosão maciça caracterizou o estágio do imperialismo, estiveram e pernamanecem ligadas ao niilismo. Essas tendências são fáceis de constatar já em Nietzsche, melhor ainda em Spengler ou em Klages, para atingir seu ponto culminante na pretensa concepção de mundo do fascismo.

No plano ideológico, a necessidade social do nascimento dos mitos explica-se pela incapacidade dos pensadores de romper radicalmente com as sobrevivências teológicas da filosofia. A conservação dessas representações de origem teológica faz, aliás, parte do esforço – frequentemente inconsciente – que deve impedir a realização, pela ideologia, das consequências decorrentes do caráter transitório das bases sociais da pessoa humana. Dostoievski formulou esse sentimento de uma maneira supreendente, colocando a questão seguinte na boca de um de seus personagens: “Que capitão sou eu, se Deus não existe?”

O existencialismo não soube, ao menos, vencer essas sobrevivências teológicas. O ateísmo de Heidegger e de Sartre é tão religioso quanto o de Nietzsche, se bem que deva suas bases a Kierkegaard. O horizonte religioso, que se forma assim, aproxima-se perigosamente de todos os mitos modernos. O existencialismo leva, portanto, a marca do mesmo niilismo espontâneo de toda ideologia burguesa moderna. Veremos a seguir que o existencialismo – sobretudo nas definições mais recentes – não pode superar esse abismo senão às custas de um certo ecletismo.


György Lukács, Existencialismo ou marxismo?
Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Ciências Humanas, 1979, p. 21-22.

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