quarta-feira, 30 de maio de 2018

C. N. Coutinho e a crítica da arte vanguardista


por Mavi Rodrigues
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A atualidade de "O estruturalismo e miséria da razão" para a crítica do pós-modernismo. In: Seminário Internacional - Carlos Nelson Coutinho e a renovação do marxismo. NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), ESS/UFRJ, 2014.
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quinta-feira, 24 de maio de 2018

ARTE REALISTA| Perdido


Sinopse: Se Sartre afirma que “cada homem deve inventar seu caminho”, isso significa que “perder-se também é caminho”, como disse Clarice Lispector. (Porta dos Fundos)
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Perdido (farsa, BRA, 2018), de Rodrigo van der Put.
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domingo, 20 de maio de 2018

Trechos sobre o panteísmo


Uma concepção ontológica no estágio de transição moderna

Com essa renovação ética de Epicuro - que foi uma tendência involuntária de Hegel, historicamente inconsciente, mas nem por isso menos persistente no plano teórico — encerra-se na grande filosofia a época intermediária panteísta. A grande revolução ontológica do Renascimento destruiu substancialmente, para o pensamento filosófico do mundo, a derivação da racionalidade do ser e da ação humanos a partir de uma transcendência religiosa. Todavia, salvo algumas exceções, essa tendência levou a substituir a visão religiosa do mundo fixada dogmaticamente por outra visão de mundo certamente livre, aberta para as coisas, mas ainda frequentemente semirreligiosa. Disso resultou, obviamente, que o Deus transcendente desapareceu da ontologia ou, pelo menos, esfumaçou-se a ponto de transformar em algo totalmente inconsistente, mas para ser substituído – também aqui não abstraímos das exceções — por um Deus sive Natura.

Quando Schopenhauer, num dizer tão maldoso quanto espirituoso, chama o panteísmo de ateísmo cortês, ele fornece uma caracterização apenas superficial da grande corrente abrigada pelo panteísmo. O que de Giordano Bruno e Espinoza até Goethe se apresenta como “divinização” da natureza certamente é, quando encarado do ângulo da história mundial, uma batalha de retaguarda travada pela visão de mundo religiosa em retirada, mas é também uma luta de vanguarda da nova relação do ser humano com a natureza. Apesar de seu caráter de transição, aliás, precisamente por isso, germina em tal movimento uma visão de mundo genuína, historicamente fundada. Abreviando e simplificando, poder-se-ia dizer que o que une os vários panteísmos, tão diversos entre si, é o reconhecimento aberto e festivo da nova relação com a natureza que surge após Copérnico e Galileu e, ao mesmo tempo, uma visão de mundo que se recusa a extrair dessa nova relação a consequência pascalina da solidão do homem no cosmo infinito e estranho. É bem mais do que a simples recusa do pânico desencadeado pela nova imagem da natureza; é a grande tentativa de descobrir no cosmo estranho ao ser humano uma pátria para ele, de conciliar o humanismo com a constituição do mundo natural como algo estranho ao ser humano. (Também aqui o Prometeu de Goethe é um importante ponto de referência.).

Não é possível neste espaço, evidentemente, nem sequer esboçar o desenvolvimento dessa tendência. Tivemos, porém, de nos referir expressamente a ela porque Hegel, com frequência, foi acusado de panteísmo. Ele sempre se defendeu com veemência contra essa acusação, e acreditamos que com toda razão. Hegel jamais foi panteísta no sentido de Goethe ou mesmo do jovem Schelling. Sua concepção da natureza como ser-outro da ideia, isto é, de uma natureza ontologicamente estranhada do sujeito, exclui todo panteísmo e põe a filosofia da natureza de Hegel, nesse sentido, ao lado do materialismo de Epicuro. Mas só no que se refere ao panteísmo. Indicamos pouco antes as consequências imediatas de sua visão da natureza; e, mais adiante, veremos as insolúveis antinomias que ela contém no que se refere ao posicionamento de Hegel em relação à religião.

G., Lukács, Para uma ontologia do ser social I.
Trad. Carlos Nelson Coutinho, Mario Duayer e Nélio Schneider.
São Paulo: Boitempo, 2012, p. 209-210.

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terça-feira, 15 de maio de 2018

A psicologia das massas em Freud

 
por György Lukács

Não pode ser nosso objetivo nesta revista, cujo espaço não o permite, fazer um quadro do sistema psicológico de Freud e conferir a ele uma avaliação, mesmo que apenas delineada. Isso demandaria propriamente um tratado, o que não seria mau negócio, uma vez que, de um lado, a psicologia freudiana significa um certo avanço se comparada à psicologia vulgar; porém, de outro lado, à maneira da maioria das teorias modernas, predispõe-se a desinformar o leitor por não levar em conta a totalidade do fenômeno social; predispõe-se a lhe oferecer uma panaceia sobre eventos tão populares atualmente, sem que leve racionalmente a termo a real estrutura da sociedade.

Até hoje, toda psicologia (inclusa a freudiana) sofre por conceber o seu método a partir do ser humano artificialmente insulado, isolado da sociedade capitalista e de seu modo de produção. Trata de suas peculiaridades, assim como o efeito do capitalismo, enquanto qualidades permanentes que são imanentes ao “homem”, que são “prescritas pela Natureza”. Semelhante à economia, à jurisprudência burguesa, etc., fixa-se nas formas superficiais produzidas pela sociedade capitalista; não percebe que está somente aceitando as formas da sociedade capitalista e que, em consequência, não pode emancipar-se dela. Por esta razão, à par com as demais ciências burguesas, é incapaz de resolver ou mesmo compreender deste ponto de vista a questões que subjazem à psicologia. Nesse sentido, a psicologia inverte a essência das coisas. Tenta explicar as relações sociais do homem partindo da consciência individual (ou subconsciência), ao invés de capturar as determinações sociais de seu deslocamento do conjunto dos problemas concernentes às relações comunitárias. Inevitavelmente, revolve-se sem saída em um círculo de falsas polêmicas por ela criadas.

Este estado de coisas aparenta alterar-se quando emerge a questão da psicologia das massas. Contudo, apenas um olhar sobre o método com o qual a psicologia das multidões aproxima-se de seus problemas demonstrará que prevalecem as mesmas proposições equivocadas, até mesmo em extensão maior. Assim como a psicologia do indivíduo falha na tarefa de abarcar sua situação de classe (e, a reboque, os contornos históricos da própria classe), aqui a psicologia compreende as “massas” enquanto uma congregação de seres humanos, a qual, embora possa variar em número de participantes ou no estado de organização, se limita a estas diferenças formais. Em sua metodologia, a psicologia das multidões exclui a influência das condicionantes econômicas, sociais e históricas. Efetivamente, esforça-se para provar que a composição social das massas não possui importância para o fenômeno de sua psicologia. Isso é o que se segue do fato de que a psicologia busca explicar as multidões a partir do indivíduo. Analisa as mudanças espirituais que ocorrem individualmente em meio às massas. Desse modo, não procura capturar o problema em seu verdadeiro sentido. Ao contrário, contribui para que se mantenha em sua inversão. Isto não é fortuito já que, na psicologia das massas, as características das lutas de classes inerentes à psicologia burguesa claramente veem à superfície. Tende a diminuir o valor moral e intelectual das multidões; tende a demonstrar “cientificamente” a sua instabilidade, falta de independência, etc. Deixando de lado a intrincada e sofisticada terminologia, podemos dizer hoje que a psicologia burguesa das massas está ainda formulando em termos científicos a mesma visão reacionária das massas que Shakespeare, por exemplo, expressou em termos dramáticos nas cenas de multidões de suas peças.

Enquanto um pesquisador íntegro, Freud observa os aspectos contraditórios e anticientíficos desta visão acima descrita. Ele sente que esta sistemática difamação das massas não apenas desconsidera o núcleo do objeto, como também falha em produzir algo novo; já com esta postura positiva, mantém-se liberto das mesmas contradições. Todavia, ao considerar as massas desde a psicologia do espírito individual e ao evitar a subestimação das massas, Freud cai na igualmente limitante superestimação dos líderes. Ora, Freud procura explicar o fenômeno das multidões com sua teoria geral da sexualidade. Na relação entre as massas e a liderança — na qual é alocado por ele o problema central da psicologia das massas —, Freud percebe somente um caso particular do “fato primário” que estaria na raiz das relações entre amantes, pais e filhos, amigos, profissionais, etc.

Não há como promover uma crítica desta teoria nesta revista. Apenas é necessário remarcar que Freud, de um modo inteiramente acrítico, compreende a vida emocional do homem sob o capitalismo avançado como um “fato primário” trans-histórico. No lugar de produzir a investigação das reais razões que determinam esta vida emocional, ele deseja explicar todos os eventos do passado partindo do “fato primário”. A natureza anticientífica deste método torna-se ainda mais evidente onde, tomando como seu ponto de partida as manifestações da sexualidade infantil em contemporâneos (correta ou incorretamente descritas), Freud tenciona compreender a sociedade primitiva. Ao fazê-lo, chega à fantástica suposição a propósito da existência de uma “horda primária” correspondente à família patriarcal. Para que se tome tal ponto de partida é necessário que se abra mão da maioria das descobertas da pesquisa etnológica moderna (Morgan, Engels, Cunow, Grosse, etc.).

Entretanto, podemos nos referir a outro exemplo para deixar claro até mesmo ao menos cientificamente informado dos leitores as absurdas consequências de tal método, a psicologia dos exércitos em Freud. Esta é uma questão que Freud discute com grandes detalhes.

Não é preciso dizer que ele não discerne entre um e outro exército: sob sua ótica, os exércitos camponeses da Roma antiga, os exércitos medievais de guerreiros, os mercenários rudemente disciplinados do lumpenproletariat dos séculos XVII e XVIII e as massas mobilizadas na Revolução Francesa são exatamente as mesmas “psicologicamente”; tão idênticas que Freud considera desnecessário inclusive submeter ao exame a diferença na composição social dos exércitos. Ao contrário, encontra a conexão que une todos os exércitos no “eros”, no amor. “O general é o pai que ama todos os seus soldados igualmente e, por isso, estes soldados nutrem uma camaradagem mútua... Cada capitão é, de certo modo, o general e o pai de sua divisão, e cada tenente o pai de sua unidade”. E é de se lamentar os “métodos antipsicológicos” do militarismo alemão, que “negligencia o fator libidinoso do exército”. Freud chega a atribuir a este fator o efeito do pacifismo ao fim de uma guerra.

Não mencionamos este exemplo para expor ao merecido ridículo um pesquisador meritório. Ainda que valorizemos em alto grau as aquisições do pensamento de Freud, aludimos a ele como um crasso exemplo do quanto são confusos os métodos com que operam os saberes burgueses (no caso, a psicologia). O exemplo ilustra como a psicologia burguesa negligencia os fatos mais simples e básicos da história, a fim de construir teorias “interessantes” e “profundas” através de uma abstração mistificadora desde fenômenos superficiais ou “fatos espirituais” meramente construídos. Tal saber é incapaz até mesmo de um desenvolvimento acadêmico, já que permanecerá completamente fechado no círculo de pseudoproblemas aos quais são concedidas falsas repostas enquanto não se percebe o caráter social, classista de seus equívocos. Porém, sequer o menor sinal desta percepção pode ser visto em qualquer disciplina burguesa; e menos ainda à proporção que seus problemas tocam somente em questões tópicas. Toda “profundidade” da exposição em contraste com a “uniformidade dogmática” do materialismo histórico apenas atende à necessidade de se deitar um véu sobre o atual estado de coisas (o que, em várias circunstâncias, se faz inconscientemente). Porém, em face disso, é de importância vital que, em cada caso particular, se clarifique profusamente não só o equívoco em si mesmo, senão também suas raízes sociais.

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[0] Retirado de: LUKÁCS, Georg. Reviews and articles from Die Rote Fahne. Tradução de Peter Palmer. London: Merlin Press, 1983, pp 33-36. Título em inglês do artigo: Freud’s psychology of the masses. Este é um opúsculo escrito por Georg Lukács em 1922 a propósito da teoria das massas elaborada por Freud. Apareceu na revista Die rote Fahne, órgão de imprensa do Partido Comunista Alemão, editada em Berlim. É um artigo de ocasião, mas que demonstra o primeiro e único diálogo entre estes dois gigantes do pensamento do séc. XX: Georg Lukács e Sigmund Freud. Como se verá, não é cordial a recepção da teoria freudiana por parte de Lukács. O crítico húngaro via na psicologia das massas de Freud uma outra variante das teorias aristocráticas da política, que abundavam em meio à inteligência burguesa da época, sendo defendida na Alemanha por autores tão díspares como Nietzsche, Simmel, Rickert, Max e Alfred Weber, Scheler, Spengler, entre outros. É certamente uma crítica severa. Contudo, Lukács não deixa de efetuar a necessária distinção entre a psicologia vulgar e as autênticas realizações do pai da psicanálise.(Nota de R. Carli)
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LUKÁCS, G. “A psicologia das massas em Freud” [1922]. Trad. Ranieri Carli. In: Psicanálise & Barroco em revista, v.7, n.1: 219-224, jul., 2009.
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domingo, 13 de maio de 2018

Maio 68, a não-revolução

 
por Manuel Augusto Araújo
AbrilAbril

Maio 68 faz cinquenta anos. A 13 de Maio a França assistiu à maior greve geral de sempre, que paralisou o país. Uma greve só comparável à greve de 1936 e à que antecedeu a Comuna de Paris. A maior greve geral que alguma vez aconteceu na Europa ou em qualquer parte do mundo.

Era o culminar de lutas operárias que se tinham intensificado desde os princípios dos anos 60, com lutas enquadradas, algumas desenquadradas, pelas estruturas sindicais, e das lutas estudantis desse ano.

Estudantes e operários confluíram nesse dia numa batalha contra o poder gaulista, corporizado por um general reacionário que até aí tinha a maior oposição em Miterrand, um político oportunista.

Maio 68 destrói o jogo de xadrez em que esses dois flibusteiros se enfrentavam. Destrói o jogo mas não destrói o tabuleiro. O jogo irá continuar com outros gambitos e, como os lances imediatos e os seguintes a curto e médio prazo mostraram, são eles que acabam por sair triunfantes.

Triunfo no quadro político e comunicacional que também é verificável nos percursos dos principais intervenientes no Maio 68. Uma das ilustrações da imagem desse triunfo, é ler na M Magazine du Monde (revista do Le Monde de 6 de Janeiro) que Daniel Cohn-Bendit e Romain Goupil estão a fazer um filme para a televisão comemorativo dos 50 anos de Maio 68.

Dois soixante-huitards, dois destacados lideres estudantis, um anarquista o outro trotskista. Cohn-Bendit, que mediaticamente se tornou na cara de Maio 68, a partir da década de 70 aproximou-se dos Verdes alemães, foi eleito em 1994 deputado europeu e co-presidente do grupo parlamentar Verde no Parlamento Europeu, que abandonou em 2014 com um discurso inflamado a favor do federalismo.

Romain Goupil é um cineasta que rapidamente evoluiu para posições da direita. Ambos foram apoiantes de Macron, esse meteorito fabricado pelos media, um reacionário que se apresentou ao eleitorado acima dos partidos tradicionais afirmando o propósito de reformar a política, uma linguagem recorrente de direita que muito seduz os chamados independentes e também muito tem seduzido algumas esquerdas.

É um percurso de distanciação a quaisquer resquícios revolucionários que já tinha sido trilhado por outros distintos dirigentes estudantis como Alain Glucksman, Bernard Henry-Levy, Guy Lardeau, Christian Jambert, Jean Paul Dulié, que formaram a corrente dos Novos Filósofos que desenvolveram e desenvolvem as teorias mais conservadoras, nos antípodas do que defendiam em Maio 68.

São convictamente atlantistas, violentamente críticos da “abominação do colonialismo do homem branco”, defensores do capitalismo em todas as suas formas, atacam o multiculturalismo que consideram ser “o racismo dos antirracistas”.

Raros são os que, como Alain Krivine e Alain Cyroulnik, continuaram fiéis aos ideais trotskistas que perfilharam na juventude. É o que significativamente sobra da poeira de estrelas do Maio 68. Não é um acaso comemorar-se Maio 68 com saudosismos serôdios e manipulações da história, nem é um acaso a involução dos seus líderes se atentarmos nas teorias da Internacional Situacionista (IS), a sua base teórica e ideológica, onde pontificavam Guy Debord[1].

No primeiro número da revista da IS (Junho 1958) apregoam ser preciso mudar o mundo. Já a razão era “para não se entediar (…) o tédio é uma realidade vulgar dos jovens enraivecidos e pouco informados e essa rebelião de adolescentes, instalados confortavelmente na vida, não tem perspectivas e está bem distante de ser uma causa. Os situacionistas fazem o julgamento dos tempos livres e sentenciam-nos” considerando que “a política constitui uma alienação comparável à da arte”.

A IS move-se num mar encapelado de contradições que acabam por contaminar Maio 68. Afirmam que “a IS não quer ter nada em comum com o poder hierarquizado, sob que forma for. A IS não é portanto nem um movimento político, nem uma sociologia de mistificação política” para logo a seguir se designarem como contribuintes ativos para um novo movimento proletário de emancipação “centrado na espontaneidade das massas” com o fim “de superar os fracassos da política especializada” (...) “com novas formas de ação contra a política e a arte”.

Dizem querer alterar radicalmente “o terreno tradicional da superação da filosofia, da realização da arte e da abolição da política”. São herdeiros de Proudhon, “todas as revoluções se cumpriram pela espontaneidade do povo”. Uma crença na espontaneidade das massas que, sobretudo depois das experiências da Comuna de Paris, mesmo Kropotkin elogiando “esse admirável espírito de organização espontânea que o povo possui em tão alto grau” considera não ser por si só suficiente para fazer eficazmente uma revolução.

Uma confiança desmentida pelas várias experiências históricas a que Lenin recorre para em Que fazer?[2] combater as ilusões originadas por essa convicção sem deixar de considerar a importância das ações espontâneas.

Interessante são as recorrentes referências da IS à arte, colocada em paralelo e no mesmo plano da política. Interessante mas não inesperado. A IS deriva da Internacional Letrista (IL), fundada em 1952 por um grupo de jovens artistas de vanguarda, onde já se encontra Guy Debord, que em 1957 se refunda na IS, onde se associam à IL o Movimento para uma Bauhaus Imaginista, o grupo Cobra e a London Psychogeographical Association.

Nas fundações desse edifício teórico estão, entre outras, as ideias de Isidore Isou:
 
A evolução social não é o instinto de sobreviver mas a vontade de criar (...) a criação é a mais alta forma de atividade humana e a arte a forma mais alta de criação, e a poesia a mais alta forma de arte.

E, sobretudo, as de Chtcheglov que em Formulário para um novo urbanismo declara:
 
Estamos entediados na cidade, não há mais o Templo do Sol. Entre as pernas das mulheres que passavam, os dadaístas imaginaram uma chave de macaco e os surrealistas uma taça de cristal. Está tudo perdido. Sabemos como ler todas as promessas nos rostos – o último estágio da morfologia. A poesia dos outdoors durou vinte anos. Nós estamos entediados na cidade, nós realmente temos que nos esforçar para ainda descobrir mistérios sob os empedrados, o mais recente estado de humor e poesia.

É o urbanismo utópico de Chtcheglov que projeta uma “capital intelectual do mundo”, uma espécie de Las Vegas fourierista enxertada numa Disneylândia surrealista, onde a razão de viver se descobria vagueando pelos seus bairros e jardins, os “diversos sentimentos catalogáveis que se encontram nos acasos da vida corrente” e em que a principal atividade dos seus habitantes seria “a permanente deriva”.

De modo oblíquo, o urbanismo utópico de Chtcheglov, pela mão dos situacionistas, irrompe em Maio 68. “Debaixo dos empedrados a praia”, “A nossa esperança só pode vir dos desesperados”; “Decreto o estado de felicidade permanente”; “Vivam sem tempos mortos”, “A vida está alhures” palavras de ordem que poderiam ter sido escritas por Chtcheglov por desejar resgatar a vida com a poesia tinha que estar na rua, como cantará Leo Ferré a celebrar Maio 68.

Essas ideias já tinham sido antecipadas por Walter Mehring um dadaísta que, em Berlim 1919, proclama em ??? O que é dadayama???
 
dadayma faz / ferver o sangue / e a alma do povo / na panela onde se fundem / --um pouco de corrida— um pouco / de assembleia nacional-- / um pouco de Frente Vermelha / metade prateada / metade aço / mais a mais-valia /------= a vida quotidiana.

São as minas Dada espalhadas nos campos da política e da arte que irão rebentar na IL, um grupo de jovens artistas e intelectuais que durante meia dúzia de anos se juntaram procurando nos seus divertimentos encontrar um modo de mudar o mundo.

Se na época passaram quase incógnitos, tornaram-se conhecidos quando fecharam a IL para fundar com outros a Internacional Situacionista[3].

Serão os Lost Prophets de John Berger[4],
 
o programa (ou antiprograma) dos situacionistas será provavelmente reconhecido como uma das formulações puramente políticas mais lúcidas destes últimos decênios da história, refletindo de forma extrema a força do seu desespero e das suas privilegiadas fraquezas.

O tédio é para os situacionistas a patologia social. A alienação e a ideologia, a hierarquia e a burocracia são, para eles, a estrutura do mundo. Consideram que todas as ideologias são uma alienação por isso definem posições, não uma ideologia.

Uma negação que acaba por ser uma afirmação, à semelhança da ideologia burguesa que se recusa com contumácia a assumir enquanto ideologia. Fazem essas denúncias, proclamando provocatoriamente que “não há situacionismo”, enquanto se apresentam como revolucionários unicamente interessados nas liberdades.

Liberdades que significam o direito de fazer tudo e mais alguma coisa com as consequências que isso implica, num turbilhão que desconhece fronteiras. São princípios devedores do dadaísmo com as suas extravagâncias, cruezas e barbarismos que tornam impossível a meditação contemplativa.

À meditação que se tornou, no processo de degeneração da burguesia, uma escola de comportamento associal, contrapõe-se a distração como uma forma especial de comportamento social. De fato as manifestações dadaístas asseguravam uma extrema distração na medida em que faziam da obra de arte o centro de um escândalo. Ela tinha de satisfazer sobretudo uma exigência muito concreta: causar indignação pública (Walter Benjamin)[5].

Esquecem ou não sabem reconhecer os dadaístas que a burguesia entediada com o seu próprio tédio já não se deixa assombrar nem escandalizar, tudo recupera para nada se criar e transformar.

Os antecedentes históricos dos ativistas da IS encontram-se na Alemanha que no rescaldo da I Guerra Mundial, na Primavera e no Verão de 1918, está em profunda crise. Os movimentos populares forçam a abdicação do imperador Guilherme, todas as esperanças são possíveis antes de serem defraudadas pelo governo do social-democrata de Friedrich Ebert que recuou em todos os campos políticos, sociais e econômicos; de o levantamento espartaquista que lhes queria dar continuidade ser liquidado; de Karl Lieknecht e Rosa Luxemburgo serem assassinados.

No Clube Dada de Berlim, Grozs, Walter Mehring, Johannes Baader, John Heartfield, Raoul Hausmann saúdam entusiasticamente os tumultos, “o mundo dadaísta pode ser instantaneamente realizado”. Cantam canções e recitam poemas incompreensíveis, aclamam sobre esse barulho de fundo o espontaneísmo das massas que, segundo eles, dissolve as ideologias de esquerda e de direita.

Nesse clube renovam-se as consignas do Cabaret Voltaire de Zurique, fundado por Hugo Ball e Emmy Hennings, em que participam Marcel Janco, Richard Huelsenbeck, Tristan Tzara, Sofia Taueber-Arp e Jean Arp, fundadores de Dada, um movimento artístico anárquico, com objetivos artísticos e políticos cujos ecos, flutuando com os ventos da história, continuam a fazer-se ouvir nos nossos tempos, ainda recentemente foram a adubo do movimento punk.

“A história repete-se, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa” escreveu Karl Marx no 18 de brumário de Louis Bonaparte[6]. “A história não se repete, mas por vezes pode rimar”, dirá Mark Twain que acreditava que nenhuma ocorrência histórica era solitária, mas uma eterna repetição de algo que já aconteceu noutro contexto, com outra forma, espoletada por outras razões.

Pensa Mark Twain e os situacionistas também o pensam pelo que, mudando o enfoque dos dadaístas mas usando a mesma lente, entendem que podem e devem fazer uma transformação espetacular de todas as coisas e também do seu contrário, usando “a coerência reversível do mundo moderno”.

O impulso revolucionário é desviado para o território do espetáculo, a vida social como simbolismo. Os mitos dadaístas e anarquistas na política e na arte aterram, com a Internacional Situacionista, em Paris, no Maio 68.

As suas teorias, que tinham bastante curso nos meios universitários alemães e franceses, expandem-se ainda mais aceleradamente quando um grupo de estudantes da Universidade de Estrasburgo faz uma edição de milhares de exemplares do panfleto da IS “A miséria do meio estudantil”, que terá profunda influência nas correntes de esquerda, sobretudo nas anarquistas e trotskistas, em que os comunistas, rotulados de tradicionais e burocratas, eram tão atacados como sempre o foram pelas direitas.

Maio 68 é a não-revolução que marca o fim de uma época, inicia uma outra em que a ideia de revolução se fragmenta em lutas importantes para mudanças na evolução das sociedades, mas que deixam intocadas as suas fundações.

Maio 68 é o momento nuclear desse processo. Uma revolução sem programa político, uma revolução sem revolucionários que faz um sobre investimento no existencial.

Faz isso enquanto abre o caminho para processos ousados que introduzem novas formas de luta na longa luta das mulheres, na nova luta pelos direitos dos homossexuais e, de forma embrionária, nas lutas ecológicas. Abrirá o caminho para novas frentes, a interrupção voluntária da gravidez, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, etc.

Faz isso mas também um desinvestimento em identidades instituídas o que produz uma paisagem aleatória em que se interroga o significado do que é político. As frentes de luta abertas por Maio 68, que se assumem como fraturantes, mesmo quando centrais de uma alteração de atitude social, não são mudança social, nem estão realmente empenhadas em transformações sociais radicais.

Quando proclamavam que iam mudar a sociedade logo se desmentiam com um desinteresse quase enfastiado pelas estruturas econômicas e do Estado, embrulhado numa gritaria altissonante que mal lhe arranhava a pele. O cenário conhecido é o de um afinado processo de despolitização e de desmobilização na batalha por uma real mudança social que amortecem e tendem a anular.

Maio 68, recusando participar na construção dos alicerces em que se fundam as revoluções, é a fascinante festa bem expressa nas imaginativas palavras de ordem que excitam a criatividade e ocultam com fina casca colorida e luminescente o enorme vazio que o corroía por dentro.

“Eu tinha alguma coisa a dizer, mas não sei mais o quê”, é provavelmente a chave da “Imaginação ao poder”. São palavras de ordem para todos os gostos, abrangem todas as áreas “Debaixo dos empedrados, a praia”; “É proibido proibir”; “Abaixo o realismo socialista. Viva o surrealismo”; “Amem-se uns aos outros”; “A anarquia sou eu”; “A arte está morta, libertemos a nossa vida”; “Corram camaradas, o velho mundo está atrás de vocês”; “A cultura é a inversão da vida”; “Dez horas de prazer já”; “A economia está ferida, pois que morra!”; “Trabalhador: você tem 25 anos, mas seu sindicato é de outro século”; “Não se chateiem, chateiem os outros”; “A humanidade só será feliz quando o último capitalista for enforcado com as tripas do último esquerdista”; “A liberdade do outro estende a minha ao infinito”; “A arte está morta, não consumamos o seu cadáver”;“O estado é cada um de nós”; “Quanto mais eu faço amor, mais tenho vontade de fazer a revolução. Quanto mais faço a revolução, mais tenho vontade de fazer amor”; “Os sindicatos são uns bordéis”; “Não nos prendamos ao espetáculo da contestação, passemos à contestação do espetáculo”; “Autogestão da vida quotidiana”; “A felicidade é uma ideia nova»; “Teremos um bom mestre desde que cada um seja o seu”; “A revolução tem deixar de ser, para existir”; “Tudo é Dadá”.

São mais versos de um Cadavre exquis surrealista do que palavras de ordem de um programa político. Como o programa político não existia ficam essas palavras, a sua carga poética, o seu vazio revolucionário em negação de outra frase recuperada de Saint-Just pintada nas paredes da Sorbonne: “Uma revolução que não vai até ao fim cava o seu túmulo”.

Não havendo programa, por esta pequena seleção se vê como há uma ideia subjacente de desenquadramento político. A tônica centra-se no espetacular e na personalização em que
 
os confrontos duros entre o verdadeiro e o falso, do belo e do feio, do real e da ilusão, do sentido e do não sentido, esbatem-se, os antagonismos tornam-se flutuantes (Giles Lipovetsky)[7].

Nesse caldo de cultura, em que o hedonismo e a indiferença triunfam, narciso caminha para a era do vazio. Era do vazio em que se vive “a tensão lucidamente autodestrutiva da desesperada vitalidade”, como dirá um dos seus epígonos, aduzindo “que a atual lógica de uma possível resistência abandona as ideias modernas de racionalidade global da vida social e pessoal para a desintegrar numa unidade de mini-racionalidades ao serviço de uma inabarcável e incontrolável irracionalidade, reinventando-as de modo a que elas deixem de ser partes do todo e passem a ser totalidades em múltiplas partes”, o que logicamente encerra a resistência a esta sociedade, em qualquer uma das formas em que se manifeste e como se manifeste, num casulo onde se debate e agoniza condenada à danação do fracasso.

Essa “reinvenção de mini-racionalidades” acaba por ser um exercício de pacificação do estado de sítio “da global inabarcável e incontrolável irracionalidade”, ritualizando uma suposta resistência em artifícios de sobrevivência em que o único objetivo é ser absolutamente o que se é, mesmo quando não se é nada se a esse nada se consegue colar um código de barras que passe nas caixas registradoras dos supermercados da política, da economia, das artes.

É um corte epistemológico, o dobrar a esquina da história em que
 
a dissolução da história, nos vários sentidos que se podem atribuir a essa expressão, é, de resto, provavelmente, a característica que distingue do modo mais claro a história contemporânea da história moderna (Gianni Vattimo)[8].

É o caldo da cultura do simulacro e da simulação, uma imagem feita de muitas imagens. Um poderoso holograma que se assume como nova realidade em que a vida é controlada por uma estetização descontrolada.

Tudo se estetiza a si mesmo a política se estetiza em espetáculo, o sexo em publicidade e pornografia, e toda a gama de atividades se transforma em algo chamado “cultura”, o que é completamente diferente de arte; esta “cultura” invade todos os campos através da publicidade e da semiologização dos médios” (Jean Braudillard)[9].

A contaminação é viral. Perdem-se e deixam de haver pontos de referência. Em todos os campos desaparecem os parâmetros para se fazerem juízos de valor. Os juízos políticos, éticos, estéticos forjam-se no excesso até se banalizarem sem redenção.

Os situacionistas e a Internacional Situacionista, que tem em Guy Debord e Raoul Vaneigem[10] os principais pensadores que organizam o seu corpo teórico, irá encontrar em Maio 68 a expressão das suas teorias, preconizando o irresolúvel paradoxo de uma “sociedade revolucionária” incorporar as tendências positivas do desenvolvimento capitalista deixando intocada a exploração desenfreada que o sustenta e sem nunca se definirem os crivos que fazem a avaliação das tendências positivas.

Para eles, a situação revolucionária seria resolvida com a organização autogestionária das forças produtivas sem alterar as relações de produção. Uma situação insólita em que se enredam manipulando um cubo de Rubik à procura de soluções, como se o fundamental não fosse destruir o cubo.

Maio 68 é a revolução sem revolução nem revolucionários. Um tumulto de contradições que tem vida curta. A IS nasce em 1967 extingue-se em 1972, marcada por inúmeras deserções e expulsões. Anselm Jappe, o último teórico e estudioso do Situacionismo, na continuidade de Debord, persiste em defender o legado desse movimento que, na sua opinião, instalou uma conspiração permanente contra o mundo mesmo admitindo que essa conspiração está estandardizada, foi absorvida pelo capitalismo.

Maio 68 é uma situação pós-revolucionária que se dissipou quase tão rapidamente quanto havia surgido, numa sucessão de momentos simbólicos que rapidamente se evaporaram.

Deixou um rastro de sedutoras frases-chave, uma poeira de estrelas por onde hoje se continua a navegar. Sem ser de fato uma revolução e por até esvaziar o sentido de Revolução, teve uma repercussão imensa nos tempos seguintes, apesar do seu funcionamento bipolar.

Por um lado, desvaloriza e secundariza as lutas operárias e procura socavar o trabalho político dos partidos revolucionários, por outro, atira pedras às caras do poder que acabam por promover uma profunda alteração no modo de estar no mundo.

Uma das faces dessa moeda, a mais visível e persistente, foi a festa que ocupou as ruas, os grafitis, as discussões sem fim, as barricadas, as ocupações selvagens, a poética das palavras de ordem.

Um movimento de resistência ao deserto urbano em que se ocultava a sua outra face: a deserção e a indiferença que sobrevoavam e continuam a sobrevoar o mundo contemporâneo. É
 
a revolução sem finalidade, sem programa, sem vítimas nem traidores, sem enquadramento político. (Giles Lipovetsky).

A política tornou-se espetáculo. Destruíram-se convenções rígidas substituindo-as por outras convenções onde se firmam o feroz individualismo, a estetização da vida, a cultura hedonista.

Maio 68 revelou com grande clareza um mundo tornado demasiado ligeiro, demasiado absurdo. Uma das suas palavras de ordem “Cada vez é nenhuma vez” sintetiza-o de forma transparente. Nada se repete, tudo é meramente casual e por isso inenarrável.

Os situacionistas, o núcleo político mais sólido de Maio 68, teorizaram sobre a sociedade do espetáculo na política e na vida, verificando
 
a generalização da sedução em que o espetáculo é a ocupação da parte principal do tempo vivido no exterior da produção moderna (Guy Debord).

Seduzir, introduzir o jogo das aparências na realidade, fazer das simulações e dos simulacros o centro da atividade política e social, temas sobre que Braudillard se debruçou extensamente, culminam na aceitação da mistificação e da alienação enquanto normalidades no quadro da vida pós-moderna.

A ideologia dilui-se, os partidos transformam-se em máquinas eleitorais ao serviço dos poderes econômico-financeiros dominantes que lhes dão apoio variável em linha com os benefícios que lhes são concedidos, desertando mesmo da ideia da democracia como território da luta de classes pacífica, preconizada pelos primeiros sociais-democratas.

A luta por mudanças sociais fragmenta-se em lutas por alterações de atitudes sociais, o que acaba por paradoxalmente desgastar a ideia de revolução. Tudo acaba por aparentemente desaguar num mundo de uma sociedade de abundância e consumo, a bête-noir que Maio 68 contesta violentamente nas ruas mas ama secretamente nas suas alcovas subterrâneas pelo que, passado o incêndio e feito o rescaldo, muito mudou para nada mudar.

O Príncipe de Salinas continuava vivo e aspira à eternidade, os seus salões continuam muito frequentados por esgrimistas de floretes embotados. Alcançada a paz pantanosa, mesmo que seja invadida por pontuais sobressaltos, o clube dos ricos continua a prosperar, é cada vez mais restrito e enriquece a velocidades inimagináveis, os pobres são cada vez mais e estão cada vez mais pobres, a proletarização estende-se a todas as áreas da atividade produtiva mesmo que esses novos proletários não se reconheçam como proletários.

Um cenário complexo de luta e de lutas sempre ameaçadas pelos labirintos em que os minotauros se multiplicam e estão atentos para as desengatilhar.

Em Maio 68 tornam-se mais visíveis os fios ideológicos porque se tece o pós-modernismo onde a recusa de narração dos fatos passa a ser assumida como recusa da realidade em si, a desconstrução como a destruição de uma atividade política, artística, literária, filosófica, historiográfica ativas, o ser individual como um ser livre e semelhante aos outros, para se transitar para uma atividade política, artística, literária, filosófica e historiográfica enquanto experiência de negatividades, ausências, obsolescências e o ser individual ficar aprisionado pelo querer ser diferente o que o torna uma figura mais adjetiva que substantiva.

A realidade deixou de ser um sistema operativo onde se atua para a transformar, no limite revolucionar, para se assumir como um território de uma hiper-realidade onde só as errâncias são possíveis sem dia seguinte.

“Maio 68 foi um grande teatro de rua, com a administração em espectral ausência à espera que aquilo passasse”, declara Alain Tanner a propósito do seu filme Jonas terá 25 anos no ano 2000, sobre as pessoas que viveram aqueles dias e que a seguir foram rejeitadas pela história por causa do seu insucesso,
 
o que importa, mais que os acontecimentos foi esse teatro colocar em cena as esperanças e os desejos ocultados, que continuaram a emergir à superfície.

Revisitar Maio 68 e os seus fantasmas, vestindo-os com roupas mais em dia, é muito útil em momentos de crise, como as que atualmente se vivem, para desarmar a ideia de revolução.

Não é um acaso Guy Debord, o maior teórico da Internacional Situacionista, o teórico da sociedade do espetáculo, ter sido, em 2013, objeto de uma grande exposição na Biblioteca Nacional de Paris, que lhe adquiriu os arquivos, classificando-os como tesouro nacional. Hoje em dia não há, da direita à esquerda, político ou pensador que se preze que não cite Debord por tudo e por nada.

O que não quer dizer que o tenham lido, nem quer dizer que não se deva ler a sua obra com tudo o que nela se aprende, mas quer dizer que Guy Debord, como Maio 68 foram recuperados por esta sociedade que tão tão radicalmente pareciam contestar e que, ironicamente, os integrou no seu circo mediático. Um destino que não lhes causará grandes incômodos nem muito desagrado.

A forma como o poder e as forças que o suportam, estando ou não no seu exercício, olharam para Maio 68 foi clara e cinicamente expressa por André Malraux – um intelectual de esquerda que aceitou ser ministro da Cultura de De Gaulle, que no seu consulado provocou imensa indignação na intelectualidade francesa quando, em 1966, proibiu a representação de La religieuse de Diderot.

Protestos mais violentos houve em Fevereiro de 68, quando demite Henri Langlois, um dos mentores da Nouvelle Vague, da presidência da Cinemateca Francesa, alegando problemas de gestão, quando o verdadeiro motivo era Langlois se ter recusado a censurar cenas do filme de Truffaut, Beijos proibidos – numa entrevista ao Der Spiegel em outubro de 1968:
 
no que respeita aos estudantes divertiu-me o laivo surrealista do movimento. Mas nem por um segundo levei aquilo a sério (…) a imaginação ao poder é, sem dúvida, um gracejo.

Revisitar Maio 68 é também verificar que mais que uma revolução política, que nunca foi, foi uma revolução cultural que provocou grandes mudanças nas atitudes sociais.

Maio 68 mudou o mundo sem o fazer saltar dos eixos, sem o descentrar das suas rotações e translações que se mantiveram íntegras, apesar dos muitos episódios que pouco as aceleraram e muito as desaceleraram até aos tempos de regressão política, econômica e social que hoje se vivem.

Tem um legado que persiste e é importante, que deve ser limpo das ilusões e das boas intenções que plantou, das muitas tergiversações que produziu, dos bochornosos contubérnios em que se envolveu.

Ensinou, como talvez nunca se tenha verificado com tanta clareza em séculos de história, que o capital sabe desarmar e reduzir o impacto das lutas políticas, que as mistifica para tirar proveitos cercando as forças que de facto o ameaçam, que nunca hesita no uso de todas as armas dos seus arsenais, dos das armas aos comunicacionais, não recuando das mais violentas e bárbaras repressões às mais sutis e suaves persuasões, com a despolitização na linha da frente.

Celebre-se Maio 68 com uma palavra de ordem que nunca foi dita nem grafitada, mas foi cantada por Leo Ferré em Il n’y a plus rien: A desordem é a ordem sem o poder. Talvez a melhor consigna de Maio 68 e das suas incandescentes cinzas.

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Notas:
[1] G. Debord, A sociedade do espectáculo, Antígona-Editores Refractários,2002; Commentaires sur la societé du spetacle, Gallimard, 1992.
[2] V. Lenin, Que fazer?, Edições Avante!, 2017.
[3] Internacional Situacionista: Antologia, Antígona-Editores Refractários, 1997; “Formulaire pour un urbanisme nouveau”, Ivan Chtcheglov (pseudônimo Gilles Ivan) in International Situacioniste n.º1, Junho 1958.
[4] J. Berger, Lost Prophets, in Leaving the 20th Century”, editado por Christopher Ray, New Society 6, Março 1975.
[5] W. Benjamin, A obra de arte na época da sua possibilidade de reprodução técnica (3.ª versão) in A Modernidade/Assírio&Alvim, 2006.
[6] K. Marx, O 18 de brumário de Louis Bonaparte, Edições Avante! 2018.
[7] G. Lipovetsky, A era do vazio, Edições 70, 1983.
[8] G. Vattimo, O fim da modernidade, Editorial Presença, 1987.
[9] J. Braudillard, Simulacros e simulação, Relógio d’Água, 1991.
[10] R. Vaneigem, Declaração universal dos direitos do ser humano, Antígona-Editores Refractários, 200.
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terça-feira, 8 de maio de 2018

Sartre protomarxista: a rejeição da ontologia dialética da natureza



por György Lukács

Apenas para lançar um pouco de luz sobre essa situação e sem a intenção de caracterizar o seu sistema de pensamento, que de qualquer modo se encontra em estágio de transição, sejam feitas aqui algumas referências a Sartre. É do conhecimento geral que seu ponto de partida foi o existencialismo de Heidegger e Jaspers. Igualmente do conhecimento geral é que, nos últimos tempos, ele se aproximou, muito resolutamente do marxismo e com grande arrojo e determinação converteu em práxis essa sua convicção — no que se diferencia com bastante nitidez e de forma vantajosa da massa dos insatisfeitos habituais. Portanto, essa guinada de Sartre para o marxismo, que se comprovou em feitos importantes e arriscados, só pode ser acompanhada com o maior respeito possível. Seu comportamento na prática nada tem a ver com a autocomplacência gerencial dos neopositivistas nem com a apologia da revolta a priori impotente contra o estranhamento no existencialismo “clássico”.

Reiteramos: é impossível fazer aqui uma análise ou uma crítica dessa nova posição de Sartre. Pois a finalidade desta observação, cuja parte introdutória, tratando da situação atual da ontologia, desemboca na investigação das reflexões de Marx sobre a ontologia do ser social, consiste meramente em proporcionar um quadro crítico do estado atual do problema, visando fundamentar teoricamente o nexo indissolúvel mas dialeticamente contraditório entre a ontologia geral (ontologia do ser natural) e a ontologia do ser social. Nesse contexto, é preciso indicar, portanto, que a nova obra de Sartre [Critique de la raison dialectique] tampouco se desprendeu ontologicamente dos preconceitos do neopositivismo e do existencialismo. Consonâncias com o marxismo em questões que dizem respeito a fenômenos puramente sociais e históricos não são capazes de eliminar essa contraditoriedade ontológica. O ponto central em tais pontos controversos é o complexo de uma dialética na natureza. Como para Marx a dialética não é apenas um princípio cognitivo, mas constitui a legalidade objetiva de toda realidade, uma dialética desse tipo não pode estar presente nem funcionar na sociedade sem ter tido uma “pré-história” ontológica correspondente na natureza inorgânica e orgânica. A dialética concebida em termos ontológicos só tem sentido se for universal. Essa universalidade naturalmente não representa um singelo sinal de igualdade entre dialética na natureza e dialética na sociedade; também nesse ponto se aplica a constatação hegeliana da identidade da identidade e da não identidade. Só poderemos falar sobre o caráter concreto desses nexos quando tratarmos da ontologia de Marx, isto é, aqui só se pode apontar para o seu quê, e não para o seu como. Contudo, essas questões precisam ao menos ser mencionadas neste ponto por se tratar de um contraste determinante entre o marxismo e correntes filosóficas hoje predominantes, como antes de tudo, o neopositivismo e o existencialismo[1]. Essa questão tem para as atuais aspirações filosóficas de Sartre uma importância tanto maior porque um de seus propósitos é a produção de uma antropologia filosófica. Ora, como vimos, o existencialismo chegou – em íntima conexão com a centralização exclusiva do que é ontologicamente relevante no ser humano e seu mundo — a uma concepção irracionalista e abstratamente vazia em relação à gênese real do ser humano ontologicamente em consideração e, desse modo, transformou — querendo ou não — a filosofia numa antropologia idealisticamente irracionalista. Sem uma ruptura decisiva com essa concepção e seus pressupostos filosóficos não é possível desobstruir o caminho metodológico que leva à apreensão concreta do ser humano no sentido antropológico e social — as duas coisas são inseparáveis: sem uma ontologia dialética da natureza não é possível fundar nenhuma ontologia dialética do ser humano e da sociedade.

A última obra de Sartre, porém, é precisamente uma tentativa de unir a rejeição da dialética da natureza com uma dialética do ser humano e da sociedade. A negação mesma é formulada de modo bem inequívoco. “E vimos que”, resume Sartre, “só se acha na natureza a dialética que foi posta dentro dela”.[2] Dizendo isso, Sartre não quer negar a limine [de antemão] que se possam encontrar nexos dialéticos na natureza. Porém, no estado atual dos nossos conhecimentos, cada pessoa está livre pra crer ou não crer nisso; na natureza inorgânica, trata-se, em todo caso, de afirmações extracientíficas[3]. Como veremos mais adiante, as constatações ontológicas com muita frequência antecedem a sua fundamentação científica, a qual, quando sucede, naturalmente poderá ser concretizada e modificada de múltiplas maneiras por elas, o que de fato sempre ocorrerá; abstraindo desse fato, constatamos que o escrito de Sartre mostra que há questões em que ele não só preservou inalterados seus pressupostos existencialistas, mas também, de modo correspondente, permanece enredado de muitas formas em preconceitos neopositivistas. Assim, ele reclama para o existencialismo o conhecimento da prioridade ontológica do ser em relação à consciência. Porém, essa pretensão só se torna sustentável quando uma abstração fenomenológica é levada a tal extremo que os traços reais, autenticamente conforme ao ser, do ente-em-si esmaecem a ponto de não poderem mais ser reconhecidos como tais. Até o próprio Heidegger, com sua determinação do ser humano como ser-aí, poderia falar de uma prioridade ontológica do ser, embora, como vimos, o sentido ontológico desse ser-aí mostre o contrário de tal prioridade.

Mas nessa tese também foram incorporados preconceitos neopositivistas. Nas elaborações seguintes, que visam à concretude, Sartre diz, por exemplo:

A única teoria do conhecimento que poderia hoje estar em vigor é a que está fundada sobre a seguinte verdade da microfísica: “o experimentador é parte integrante do sistema experimental”. Ela é a única que permite o afastamento de toda e qualquer ilusão idealista, a única que evidencia o ser humano real no mundo real.[4]

Mas isso não passa de um preconceito neopositivista, que foi disseminado especialmente por ocasião da popularização filosófica da “relação da incerteza” de Heisenberg, junto com o “livre-arbítrio” das partículas, da qual os pesquisadores da natureza sensatos se dissociam claramente. Na microfísica interagem realidades exclusivamente físicas, das quais fazem parte, todavia, também as condições de medição, os instrumentos de medição etc., como objetos físicos que podem influenciar a medição. O próprio observador, porém, também nesse caso não passa de uma arranjador ou registrador de ocorrências objetivamente físicas, como na macrofísica. A afirmação de Sartre mostra com clareza o quanto ele resiste à aceitação ontológica de uma natureza com lei própria, que se move como ser imanente de modo totalmente independente do ser humano. Trata-se de uma questão decisiva da ontologia; todavia, uma questão em que o neopositivismo e o existencialismo, a despeito de todas as suas demais diferenças, andam conformes. Essa posição pode ser percebida também em muitos posicionamentos decisivos da nova obra de Sartre. Para finalizar, damos destaque apenas a uma observação sobre o tempo, que mostra precisamente quanto suas atuais visões são determinadas pela concepção heideggeriana do tempo “autêntico”, do tempo não “vulgar”, quanto elas negam — uma vez mais, em consonância com o neopositivismo — toda objetividade ontológica do tempo. Sartre diz: “É preciso realmente entender que nem os seres humanos nem suas atividades existem no tempo, mas que, em contraposição, o tempo, como característica concreta da história, é feito pelos seres humanos com base na sua temporização original”[5]. A diferença em relação a Heidegger consiste aqui em nuanças que podem até ser interessantes no âmbito do existencialismo, mas que, para nossas indagações, não têm relevância, uma vez que também aqui o mundo extra-humano perdeu toda e qualquer importância ontológica, tendo sido subjetivado. A despeito de todos os contrastes exteriores, esse tempo social, moral e historicamente subjetivado é irmão gêmeo daquele que se origina no neopositivismo a partir da identificação medição do tempo com o próprio tempo, reprimindo totalmente este último. Ambas são formas subjetivas de manipulação — originárias de distintas finalidades e, por isso, diferentemente acentuadas —, chamadas a reprimir a objetividade ontológica.

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Notas:
[1] Também me sinto no dever de declarar, neste ponto, que meu livro História e consciência de classe, publicado em 1923, contribuiu para despertar ilusões quanto à possibilidade de ser adepto do marxismo — no sentido filosófico — e, ao mesmo tempo, negar a dialética na natureza.
[2] J.-P. Sartre, Critique de la raison dialetictique (Paris, 1960), p. 127.
[3] Ibidem, p. 129.
[4] Ibidem, p. 30.
[5] Ibidem, p. 69.
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LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social I. Trad. Carlos Nelson Coutinho, Mario Duayer e Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 101-102.
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