quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

As fontes heideggerianas do pensamento pós-moderno

Resumo: Esta tese questiona o pensamento pós-moderno – aqui tratado como uma agenda – e procura assinalar, dentre as suas possíveis apropriações filosóficas, a importância e o papel de Martin Heidegger na sua constituição. Mas o faz tomando como mediação o pensamento educacional brasileiro contemporâneo. Essa preocupação levou à hipótese de que, na noção de “superação da metafísica”, desenvolvida pelo chamado segundo Heidegger, configura-se uma ontologia antimaterialista de cuja aversão à objetividade decorre uma desqualificação do conhecimento racional, em especial da ciência. Esse é o núcleo central ao qual a agenda pós-moderna em geral e na educação presta seu tributo e, em vários aspectos, atualiza. A partir da contribuição de Georg Lukács, detectou-se que o ponto de convergência principal entre a agenda pós-moderna e o pensamento do segundo Heidegger está na ontologia hermenêutica, com a sua recusa da objetividade, a generalização do modelo hermenêutico para todo conhecimento (sintetizada pela máxima de que conhecer é interpretar) e o nexo entre ser e linguagem (o estatuto ontológico é conferido pela linguagem). Em termos de produção do conhecimento, há, na agenda pós-moderna, uma dinâmica que também ocorre em Heidegger: o em-si desaparece e toda objetividade se torna dependente do ser humano; neste caso, toda ontologia geral é diluída na ontologia do ser social. A dissolução da objetividade em elementos subjetivos não permite diferenciar a realidade dos modos de seu conhecimento. Desta forma, o status ontológico é dado pelo conhecer, o que, por sua vez, representa, de acordo com Lukács, a subsunção da ontologia à gnosiologia. O conhecer se transforma em uma atividade interpretativa que dispensa qualquer nexo com a objetividade. Apesar de alguns traços próprios, a agenda pós-moderna prolonga a desqualificação da ciência e do conhecimento explicativo presente no segundo Heidegger. A aversão à metafísica e o anúncio de um horizonte pós-metafísico em Heidegger também se preservam na agenda pós-moderna. No campo educacional, chega-se a encontrar a crítica à “metafísica da presença”, expressão eminentemente heideggeriana, e a se anunciar uma pedagogia pós-metafísica ou pós-crítica. A “agenda pós” afeta a noção de subjetividade, de um lado, por sua repulsa ao seu correlato (a objetividade), de outro, por liquidar o horizonte do sujeito como um agente histórico. Desta forma, desfigura a educação do seu caráter de prática que constitui e modifica os sujeitos envolvidos. Além disso, a retração teórica imanente à ontologia empiricista (comungada por Heidegger e pela agenda pós-moderna) e a ideologia anticientífica que dela decorre desvaloriza o papel da escola como instituição socializadora do saber elaborado. Há que se reconhecer, portanto, que o fortalecimento, no pensamento educacional brasileiro, de uma ontologia velada, estreitamente vinculada a uma prática imediata, é conveniente aos interesses manipulatórios do capital. Por mais que alguns intelectuais dessa agenda mostrem desconforto com facetas do viver sob o capitalismo, aqui se repete o que Lukács já apontara em relação a Heidegger: a repulsa e a contestação apenas confirmam a inutilidade da própria rejeição e, por isso, conclamam para o render-se ao capitalismo.

Palavras-chave:
irracionalismo, Heidegger, pós-modernismo, pensamento educacional

Abstract: This thesis criticises the post-modern thought – seen as an agenda – and intends to indicate, within its philosophical appropriations, the importance and the role of Martin Heidegger in its constitution. This task is made by taking into account the contemporary educational thought in Brazil. The hypothesis points that, in the notion of overcoming metaphysics, developed by the second Heidegger, one outlines an anti-materialist ontology. From its aversion to objectivity a disqualification of rational knowledge (especially of science) emerges out. This is the core to which postmodern agenda in general and in education in particular pay homage and, in many aspects, renew. From Georg Lukacs’ contribution, one recognises that the main point of convergence between post-modern agenda and the later Heidegger is at the hermeneutical ontology and its denial of objectivity, the spread of hermeneutical model to all knowledge (condensed in the claim that knowing is to interpret) and the link between being and language. In terms of the production of knowledge, there is in post-modern agenda a dynamic that also can be observed in Heidegger: the thing-initself disappears and the objectivity becomes dependent on human being; in this case, all general ontology is melt in social being ontology. The dissolution of objectivity into subjectivity elements does not allow distinguishing reality from the ways of knowing, the ontological status is bestowed by knowing. It represents, according to Lukacs, the submission of ontology to gnosiology. Knowing is seen as an interpretative action that dismisses any relationship with objective world. Despite some peculiar traces, the post-modern agenda prolongs the disqualification of science and any rational knowledge defended by the second Heidegger. The aversion to metaphysics and the announcement of a post-metaphysics horizon in Heidegger thought are also preserved in post-modern agenda. In educational field, one perceives the criticism of metaphysics of appearance, a particular expression of Heidegger’s philosophy, and the defense of a post-metaphysics or post-criticism pedagogy. Post-modern agenda affects the subjectivity notion, on the one hand, because of its aversion to its correlative (objectivity), and on the other by eliminating the notion of subject as a historical agent. In this sense, it disfigures education as a practice which constitutes and changes the subjects involved. Besides, the theoretical retraction in empirical ontology (shared by Heidegger and post-modern agenda) and the anti-scientific ideology which derives from it devaluate the role of school as an institution which socialises the elaborated knowledge. The consolidation of a hidden ontology in the educational thought, related to an immediate practice, is convenient for capital interests. Even when some intellectuals of this agenda feel some discomfort with life under capitalism, one should repeat what Lukacs had already said as for Heidegger: his refusal only confirms the uselessness of rejection itself and thus it encourages the surrender to capitalism.

Keywords: irrationalism, Heidegger, postmodernism, educational thought
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arquivo em PDF
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DELLA FONTE, Sandra Soares. As fontes heideggerianas do pensamento pós-moderno. Orientadora: Maria Célia Marcondes de Moraes. Tese de Doutorado em Educação. Florianópolis, UFSC, 233 p., 2006.
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sábado, 6 de janeiro de 2018

A marreta plástica do Chapolin Azul

 
 por Leonidas Dias de Faria
Diário Liberdade/2012

É comum que se reconheçam méritos em Nietzsche devido a seu método genealógico, em que se expressa com vigor sua peculiar historicidade. Mas qual é a validade de uma história inventada como lastro para uma reflexão filosófica? Com o quê de positivo se pode contribuir no plano da teoria (e, consequentemente, da prática) com um amontoado de ocorrências oníricas ou fantasiosas em que se carimba, de modo maroto, a marca “história” para atribuir-lhe respeitabilidade?

Dando mostras de suas habilidades como ficcionista, nosso filósofo “historiador” perde por completo de vista a origem efetiva da cisão em classes, pondo em seu lugar o que as circunvoluções de sua subjetividade atormentada vieram a excretar. Não se toca o pensador de que a cisão entre dominantes e dominados não é imposta pela natureza (ou coisa que a valha, ainda que esteja supostamente para além ou aquém dela), mas tem origem temporal concreta em dado momento do processo real de autoprodução social do humano, bem como pressupõe, para arrepio de sua pelagem aristocrática, milhares de anos de convívio comunal não hierárquico, sem que por isso as sociedades que assim se ordenaram tenham se reduzido a rebanhos à espera de um pastor.

Esgrimindo sua Genealogia da moral (de cuja Primeira Dissertação me valho abaixo) contra aqueles historiadores de “bom espírito”, mas totalmente privados de “espírito histórico”, para os quais as qualificações morais positivas derivam da valoração dessas ou daquelas ações como úteis por parte daqueles a quem se dirigem e aos quais favorecem, o filósofo dispara, exibindo sua nobre dentadura em sarcástico sorriso:

Para mim é claro, antes de tudo, que essa teoria busca e estabelece a fonte do conceito bom no lugar errado: o juízo bom não provém daqueles aos quais se fez o bem! Foram os bons mesmos, isto é, os poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, e vulgar e plebeu.

Ainda golpeando com marreta de plástico, em defesa dos seus, acrescenta o bom homem:

Desse pathos da distância é que eles tomaram para si o direito de criar valores, cunhar nomes para os valores: que lhes importava a utilidade! Esse ponto de vista da utilidade é o mais estranho e inadequado, em vista de tal ardente manancial de juízos de valor supremos, estabelecedores e definidores de hierarquias: aí o sentimento alcançou bem o oposto daquele baixo grau de calor que toda prudência calculadora, todo cálculo de utilidade pressupõe – e não por uma vez, não por uma hora de exceção, mas permanentemente.

Após apontá-los como os genitores da moral, o filósofo apresenta-nos agora os mesmos nobres que exalta como sendo responsáveis também pela criação da linguagem, para o que exercita novamente de modo exemplar sua capacidade de invenção da história humana para fins próprios. Assim ensina-nos, pois, nosso contador de estórias, acerca do alvorecer da moralidade e de nossa comunicação linguística:

O pathos da nobreza e da distância, como já disse, o duradouro, dominante sentimento global de uma elevada estirpe senhorial, em sua relação com uma estirpe baixa, com um sob – eis a origem da oposição bom e ruim. (O direito senhorial de dar nomes vai tão longe, que nos permitiríamos conceber a própria linguagem como expressão de poder dos senhores: eles dizem isto é isto, marcam cada coisa e acontecimento com um som, como que apropriando-se assim das coisas.) Devido a essa providência, já em princípio a palavra bom não é ligada necessariamente a ações não egoístas, como quer a superstição daqueles genealogistas da moral.

Assim, conclui nosso plenipotenciário do Reino Encantado das Fantasias Históricas, acerca das gregário-animalescas pulsões baixas que propelem à deturpação da moral dos melhores aqueles desprezíveis e rancorosos que lhes estão abaixo:

É somente com um declínio dos juízos de valor aristocráticos que essa oposição 'egoísta' e 'não egoísta' se impõe mais e mais à consciência humana – é, para utilizar minha linguagem, o instinto de rebanho, que com ela toma finalmente a palavra (e as palavras).

Mais adiante, nosso valoroso cavaleiro, nosso arquiduque das belas palavras, revela-nos algo do segredo de sua nobre sabedoria, que esgrime violentamente contra as ilusões do gado humano que lhe está aos pés, gemendo sob suas botas camurça:

A indicação do caminho certo me foi dada pela seguinte questão: que significam exatamente, do ponto de vista etimológico, as designações para bom cunhadas pelas diversas línguas? Descobri então que todas elas remetem à mesma transformação conceitual – que, em toda parte, nobre, aristocrático, no sentido social, é o conceito básico a partir do qual necessariamente se desenvolveu bom, no sentido de espiritualmente nobre, aristocrático, de espiritualmente bem-nascido, espiritualmente privilegiado: um desenvolvimento que sempre corre paralelo àquele outro que faz plebeu, comum, baixo transmutar-se finalmente em 'ruim'.

Após haver assim firmado sobre o vapor os deslizes semânticos que, em sociedades de classe, tendem a identificar aquilo que é próprio aos dominantes como positivo e aquilo que é próprio aos dominados como ruim, nosso sábio flutuante ainda tem mais a revelar sobre sua elevação e aquela de seus pares acima da repulsiva ralé, que teima em querer alçar-se de algum modo (sempre indevido, para o poeta) ao posto de gente:

A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação. Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um fora, um outro, um não-eu – e este Não é seu ato criador.

Contendo a custo a pergunta acerca de se essas palavras calham para caracterizar o propósito revolucionário socialista, já que o autor teima em não descer das nuvens das ideias desencarnadas para o chão das ações concretas, o leitor obtém dele ainda a seguinte revelação (de si) veladora (do mundo):

Esta inversão do olhar que estabelece valores – este necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si – é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto – sua ação é no fundo reação. O contrário sucede no modo de valoração nobre: ele age e cresce espontaneamente, busca seu oposto apenas para dizer Sim a si mesmo com ainda maior júbilo e gratidão – seu conceito negativo, o baixo, comum, ruim, é apenas uma imagem de contraste, pálida e posterior, em relação ao conceito básico, positivo, inteiramente perpassado de vida e paixão, nós, os nobres, nós, os bons, os belos, os felizes!.

Após assim revelar-se pai e mãe de Hannah Arendt, o senhor Super-homem, cujo sangue é tão azul quanto o colã daquele seu sucessor que se disfarça de Clark Kent para esconder que é nietzscheano, brinda-nos com as seguintes e tocantes palavras acerca da nobreza de seus pares, os quais acertam mesmo ao errarem:

Quando o modo de valoração nobre se equivoca e peca contra a realidade, isso ocorre com relação à esfera que não lhe é familiar, que ele inclusive se recusa bruscamente a conhecer: por vezes, não reconhece a esfera por ele desprezada, a do homem comum, do povo baixo; por outro lado, considere-se que o afeto do desprezo, do olhar de cima para baixo, do olhar superiormente, a supor que falseie a imagem do desprezado, em todo caso estará muito longe do falseamento com que o ódio entranhado, a vingança do impotente, atacará – in effigie, naturalmente – o seu adversário.

Como não poderia demonstrar de modo mais inequívoco por um exame de DNA ou coisa assim, as palavras citadas acima evidenciam com toda a força que é nessa linha hereditária que se inscreve a mil vezes lastimável senhora Arendt, como disse acima, bem como alguns outros ficcionistas históricos a quem se achou e se acha por bem dar algum crédito. Para o ancestral remoto dessa repugnante senhora, citado e comentado acima, assim como para ela mesma, não havia moral, linguagem ou o que quer que se possa tomar como propriamente humano, até que os melhores viessem a se erguer acima do rebanho apático, passando a dominá-lo. Os valores morais etc. foram, portanto, paridos pelos autointitulados melhores como selo a ser afixado nas ações com que se empenham em cuidar indolentemente de seu próprio rabo à custa do esforço alheio.

Para além da moral assim trazida à luz, segundo o filósofo do martelo, pode haver apenas um arremedo patético e desprezível desse agir virtuoso, que se expressa na abjeta rebelião ressentida dos escravos. E se é nesse saco de rancor e negatividade que se encontram os propósitos revolucionários, que não são mais que impulsos múltiplos à tentativa de fazer expandir o “nós” da ação moral para além dos comparsas a que nos associamos de modo estreitamente conveniente contra os que são mais débeis, só pode ser tida como um mal essa ousadia dos baixos em sacudir para longe o jugo que lhes impõem os de cima.

Se a moral dos “fortes” serve a eles para legitimar o conluio em que se associam para promover sua própria saúde à custa de sangue alheio, a moral dos “fracos” deve valer-lhes como instrumento valioso na remoção daqueles mesmos parasitas, que lhes acometem a todos em macabro concerto. E se a imposição da vontade egoísta dos mais fortes sobre a dos demais é algo a que se deva com justiça tomar como “bom”, senão como o bem mesmo, só podemos dar à negação radical dessa situação de opressão classista (a que o filósofo da genealogia criativa esvazia de qualquer conteúdo real, deixando de todo inexplicável a partir de seus conceitos) a caracterização de algo “mau”, se não devermos caracterizar a revolução social como o próprio mal, como o faz Arendt.

Adendo:

É um fato que as apropriações possíveis de um texto sejam inúmeras. É comum que pincemos ideias aqui e ali e as coloquemos, alteradas ou não, em outra trama, que tenha ou não muito a ver com aquela de origem, devendo o construtor no novo discurso primar por sua coerência e consistência, as quais não dependem daquelas do texto lido; que nos inspiremos, positiva ou negativamente, com aquelas ideias e criemos sob seu empuxo algumas outras, assemelhadas ou não com aquelas de que, de algum modo, derivam; que assumamos o discurso lido em sua quase totalidade, por identificação profunda e abrangente com o que se propõe em suas linhas, embora seja isso algo mais raro; e, por fim, que uma ideia a que não se deu muita atenção durante uma leitura volte com vigor à memória motivada por uma nova reflexão, não raro bem distante daquelas propostas pelo texto lido, demandando um novo encaixe discursivo.

Mas essa multiplicidade de leituras possíveis de um mesmo escrito não nos autoriza a concluir que um leitor o poder de alterar o sentido ou os sentidos que tal ou qual conceito ou proposição tem ou teve para o autor cujo texto lê. Existe(m) esse(s) sentido(s) ainda que jamais venhamos a descobrir com alguma precisão o que o mesmo escritor teve o propósito de veicular com suas palavras.

Assim, ainda que reste sempre alguma ambiguidade no texto mesmo ou persistam margens outras para distintas interpretações pertinentes (ou apenas fecundas, embora impertinentes ao texto de “origem”), algumas ideias podem e devem ser tomadas como dotadas de um sentido bem preciso pelo autor, ainda que possamos nos valer delas mais ou menos livremente na construção de nosso próprio discurso, inclusive por meio de contraposição frontal, assim como fiz com Hannah Arendt em texto publicado neste mesmo espaço [Diário Liberdade].

Quanto ao dualismo de Nietzsche, digo que, além de simplificar sobremaneira a vertiginosa multiplicidade moral propiciada pela interação sócio-histórica humana em qualquer época ou contexto, ele só pode radicar-se em duas posições filosóficas, ambas igualmente problemáticas:
  • a) este dualismo é algo inerente ao humano, nada tendo de histórico, nem mesmo no sentido idealista do termo – o que arremessa Nietzsche no colo de Schopenhauer, para quem o caráter de cada um é inato e impassível de alteração por quaisquer vias.
  • b) este dualismo é decorrente de processos históricos de distinção social que, no entanto, não têm qualquer pega com fenômenos concretos e interações efetivas, sendo dotado de caráter estritamente espiritual (algo que, de fato, não existe).
Em ambos os casos, o que se tem é especulação desenfreada, a galopante metafísica que acompanha nosso marteleiro desde a época em que via Apolos e Dionísios revoando à sua volta, enquanto ouvia música. Trata-se de um problema filosófico que não se dirime por meio de malabarismos hermenêuticos, de modo que, ainda que se possam salvar muitas de suas ideias do naufrágio, a nau teórica mesma como um todo não flutua nem se desloca (o que tampouco era a intenção do autor), não podendo transportar quem quer que seja ou a si própria para um porto minimamente seguro. Para permanecermos no plano da metáfora, portanto, podemos dizer que é possível fazer boas jangadas com as ideias de Nietzsche, mas seu navio mesmo deve ser tornado museu, por completa inutilidade naval.

Nas passagens que citei acima, Nietzsche dá-nos algumas pistas acerca do sentido de suas considerações e intenções efetivas. Por exemplo, quando se refere aos “bons mesmos” como sendo “os poderosos”, que são “superiores em posição e pensamento”. Não vejo como se possam interpretar essas palavras como libertárias e promotoras da justiça social, como não raro se defende, nem como apenas referentes a um dualismo estritamente moral (algo duplamente improcedente, tanto por não haver coisa alguma “estritamente moral”, como por ser muito mais que binária a heterogeneidade moral possível e frequente em dado sistema social), em nada relacionado a questões de fato, radicado apenas no caráter metafisicamente determinado de cada um de nós.

O que se pode e se deve extrair daí, segundo entendo, é a afirmação dogmática de uma superioridade espiritual, de causas desconhecidas ou intangíveis, que propicia aos melhores (seus portadores) o acesso ao controle real sobre os demais, não consistindo senão nisso algo a que se possa qualificar como bondade. Nietzsche inverte, portanto, as determinações ontológicas, tomando como causa o efeito e vice-versa: a dominação efetiva de uns por outros decorre de sua ascendência espiritual, ao invés de ocorrer o contrário, como se dá na realidade, da qual o autor foge, à alemã.

Mas, talvez o maior impedimento a que se faça uma leitura generosa de Nietzsche, uma leitura que o apresente como simpático à humanidade, seja sua veemente negação de qualquer validade moral autêntica na crítica ao egoísmo. Para ele, como já havia citado antes:
 
É somente com um declínio dos juízos de valor aristocráticos que essa oposição egoísta e não egoísta se impõe mais e mais à consciência humana – é, para utilizar minha linguagem, o instinto de rebanho, que com ela toma finalmente a palavra (e as palavras).

Sinceramente, não vejo como retirar disso algo que se possa ver como fomento à construção conjunta de uma sociedade igualitária ou coisa assim. Desse modo, não vejo aí motivos para ver o velho Friedrich como meu camarada.

Ainda sobre minha leitura de Nietzsche, creio que possa conter um significativo erro. Pode ser que, diferentemente de distribuir golpes de marreta com vistas à manutenção de uma classe dominada sob seus cascos, perpetuando um sistema em pujante vigência, o nosso terror dos moinhos de vento largue suas cargas de romântico rancor aristocrático contra a nova classe dominante que converteu em seus assalariados os servos dos nobres de outrora, deixando-os à pé e na mão, após haver deixado ela mesma de servir-lhes de mascates de encomenda.

Enquanto exala ruidosa e desdenhosamente seus gases e escarra com displicência sobre os escombros da decadente moral cortesã, enquanto empreende preocupada suas contas, essa nova classe de cima funde seus próprios e convenientes valores e princípios, completamente alheia às lamúrias dos extemporâneos moralistas de capa e espada, defensores das virtudes varonis. E é contra essa heresia que se bate nosso Quixote da pena. Sua birra contra o socialismo, portanto, é de segunda mão, derivada do fato de haverem esses seres, em si mesmos negligenciáveis, colhido algumas migalhas da moral burguesa para constituir seus mandamentos de conduta.

Só o que interdita essa nova interpretação é que a “rebelião escrava na moral” levada a cabo pela nascente burguesia, com a qual esta mesma classe atrevida fez de seu “próprio ressentimento” algo criador e gerador de valores, não é uma “vingança imaginária”, mas bastante real, em decorrência da qual só restou aos nobres decaídos a negação discursiva do novo estado de coisas, acompanhada da assimilação efetiva de si pelos seus inimigos.

Por fim, volto quase ao início desse acréscimo para reiterar a necessidade de, além de fazermos as mais variadas e distintamente produtivas leituras, reconhecermos no texto lido uma integridade que, por suas próprias determinações, permite ou desautoriza essa ou aquela apropriação. A flexibilidade do leitor não se projeta para o texto, que tem a sua própria maleabilidade muito bem determinada por suas próprias linhas – que não são outras, nem o podem tornar-se. Se abrirmos mão disso, abrimos mão de boa parte do rigor com os demais com quem debatemos, bem como autorizamos que não tenham qualquer rigor na leitura de nossas próprias palavras, o que geraria complicações em nossa comunicação, num mundo/tempo que demanda cada vez maior e melhor interlocução.
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