quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

ARTE REALISTA| Fake news


Sinopse: Companheiros, é hora de mamar nas tetas do governo. Saiba mais assistindo a esse vídeo enquanto seu filho brinca de boneca por influência da escola. (Porta dos Fundos)
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Fake news (farsa, BRA, 2018), de Rodrigo van der Put.
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domingo, 16 de dezembro de 2018

Alguns pensamentos sobre Eric Voegelin, Christopher Hill e Norman Cohn


por Rodrigo Silva Do Ó

Eu li recentemente A nova ciência da política, do Voegelin, que é recomendado pelos olavetes. Seria uma recomendação bizarra se eles fossem mesmo conservadores, mas perfeitamente compreensível, já que são tradicionalistas guénonistas disfarçados, já que o Voegelin é um autor contrarrevolucionário tradicionalista (eu fiquei com vontade de ver as posições políticas concretas dele, mas não consegui achar). Aliás, a leitura altamente seletiva de autores conservadores pelos olavetes por si só já mostra que eles têm um viés que ignora um monte de conservadores importantes (por exemplo, o Ortega y Gasset, ou o Raymond Aron), porque têm muito mais simpatia por autores tradicionalistas, ocultistas e de extrema direita.

O mais interessante, pra mim, são algumas semelhanças e diferenças com outros autores que estudaram as heresias desse período que vai da Baixa Idade média até o começo da modernidade. Deles, os que eu acho mais próximos do tema são o marxista Christopher Hill (eu li O mundo de cabeça para baixo, sobre a revolução inglesa) e o conservador Norman Cohn (Na senda do milênio, sobre as heresias medievais). Acho que as diferenças entre eles correspondem a diferenças teóricas e políticas, e os dois ajudam a mostrar a artificialidade da construção histórica do Voegelin.

Não vou resumir aqui o livro (isso não é uma resenha, são alguns pensamentos), mas quero destacar três pontos pelos quais ele passa antes de chegar às caracterização da modernidade.

Eu gostei muito do livro, principalmente o começo. Aqui, ele vai falar de como se tornou possível uma nova ciência da política. E como se tornou? Ele diz que o formalismo positivista pôde ser superado, principalmente pela contribuição do Max Weber, que conseguiu formular uma sociologia da religião bem ampla. Então, pôde ser feito o trabalho de passar da análise formal de tipos de governo, sistemas eleitorais etc, para uma reflexão sobre as fontes de ordem na sociedade (que é o tema da obra principal do Voegelin, Ordem e história).

Sim, mas quais são as fontes, então? Ele faz uma crítica ao Weber: em todo o material imenso que ele recolheu, não tem um estudo sobre o cristianismo medieval. Justamente o que criou a concepção de ordem, para ele, racional, e superior às outras, porque levava em conta a alma humana.

Citando a ideologia tradicional chinesa sobre o Mandato do Céu, ele vai dizer que a ordem política depende de uma visão sobre a ordem cósmica. Aí entra o segundo ponto: ele vai fazer uma “história da alma”, que começa na filosofia grega, mas só se generaliza no cristianismo (esse tema das “sementes da verdade” na filosofia grega é importante na teologia católica). Com a descoberta da alma, o ser humano chega à sua essência, e a partir daí consegue criar uma sociedade conforme, que vai ser a civilização cristã.

Aí entra o terceiro ponto, que eu sempre achei um ponto cego do catolicismo: a gnose. O Voegelin mistura três coisas diferentes, e chama tudo de gnose: o milenarismo, ou seja a crença no fim do mundo iminente, a gnose propriamente dita, e o panteísmo.

Essas três vertentes existiram no cristianismo primitivo. Pra deixar claro, o que eu chamo de gnose aqui são as seitas que acreditam que o mundo material é uma prisão da alma, e que a salvação é ir para um mundo puramente espiritual. Na gnose, o mundo tanto pode representar um princípio maligno (dualismo, como por exemplo no maniqueísmo, que achava que a alma tinha sido criada por Deus, e o corpo, pelo Diabo), como pode ser produto de um Deus menor.

Esses autores, quando falam que o marxismo é uma forma de gnose, erram feio porque, do ponto de vista deles, o marxismo seria panteísmo materialista. A cabala, o sufismo e algumas formas de cristianismo e hinduísmo têm características panteístas, mas espiritualistas (o mundo material como uma emanação de Deus).

Já o nazismo, sim, teria traços gnósticos, como a necessidade de purificar o mundo e a própria visão da humanidade dividida em castas, em que só os superiores podem chegar à salvação.

Outra coisa muito diferente é o milenarismo. No cristianismo primitivo, ao lado das seitas gnósticas, existiam seitas milenaristas, como uma teologia totalmente diferente (e mais próxima da ortodoxia), como foi o caso do montanismo. O Tertuliano, que foi montanista, por exemplo, escreveu várias obras contra os gnósticos.

Pois bem, então o Voegelin (mas não só ele) vai misturar tudo e falar que a modernidade é gnóstica porque quer criar um paraíso na terra, e que, pra criar esse paraíso, vai ter que esmagar a alma humana, que tem a liberdade de escolher entre o bem e o mal.

O próprio marxismo sempre viu no cristianismo primitivo e em algumas heresias uma tentativa de estabelecer o comunismo, essa tanto é a posição do Engels como do Kautsky, que escreveu As fontes do cristianismo, sobre isso. A direita católica, claro, vai inverter o argumento, e dizer que o marxismo é uma nova forma de heresia milenarista. Na academia, o Karl Manheim, no Ideologia e utopia, deu “respeitabilidade” pra essa tese, e daí ela passou pra literatura anticomunista da época da guerra fria.

Diferente do Voegelin, tanto o Christopher Hill como o Norman Cohn vai dar ênfase ao aspecto prefigurativo do pensamento herético, sendo que o Hill vai apontar para as possibilidades revolucionárias que, só na época em que ele escreveu (anos 1970) teriam se tornado possíveis, e o Cohn vai colocar como um elemento irracional que impede uma luta gradual por reformas sociais.

Quem tá certo? Acho que a resposta tá nas omissões e distorções do Voegelin.

Se o Voegelin fosse consequente com a sua defesa de que o catolicismo medieval conseguiu criar uma ordem racional baseada na liberdade da alma humana, ele teria que rejeitar a modernidade em bloco, como fazem os integristas católicos.

Só que não é essa a análise que ele faz. Ele vai pegar o místico franciscano do século XII Joaquim de Fiore, e colocar a interpretação da história em três eras (do Pai, do Filho e do Espírito Santo) como o paradigma de todas as visões progressistas. A Era do Pai é o Antigo Testamento, baseado na Lei, a do Filho é o Novo, baseado na Graça, e o Joaquim de Fiore anunciou a chegada iminente da Era do Espírito, baseada na liberdade absoluta, onde a igreja seria substituída pela comunhão direta com Deus.

O Cohn vai ver o esquema marxista comunismo primitivo-sociedade de classes-comunismo como uma transposição das três eras do Joaquim de Fiore (eu não gosto dessa interpretação; acho sim que existem tons cristãos nesse esquema trinitário que o Marx trouxe do Hegel, mas que o equivalente seria Paraíso-Queda-Novo Mundo, eu comecei a estudar as visões marxistas críticas à concepção de comunismo primitivo mais aceita justamente pra tentar arruinar esse esquema, e acho que a valorização da superioridade do capitalismo sobre as sociedades sem classes, e a crítica à ideia de proletariado como classe essencialmente revolucionária são parte dessa tarefa).

Já o Voegelin vai ver a própria ideia de modernidade como uma imanentização crescente da ideia da Era do Espírito Santo, e dizer que a modernidade é um tumor na civilização ocidental. As duas formas de gnose são a evolucionista e a radical, colocando então todas as correntes liberais na primeira categoria. Um Plínio Corrêa de Oliveira da vida diria o mesmo, só que imediatamente mostraria como o livre exame, a democracia e o socialismo são os resultados da destruição da ordem baseada em Deus. O Voegelin, então, vai dizer que o Reino Unido, os Estados Unidos e a França só conseguiram sobreviver como nações porque as suas respectivas revoluções aconteceram cedo o suficiente para que a sua essência cristã não fosse destruída, e que a Rússia e a Alemanha não tiveram a mesma felicidade. Desculpa muito esfarrapada, se a gente for levar em consideração a radicalidade da revolução americana nos seus princípios democráticos (pra não falar da força absoluta do protestantismo, com influência teísta e maçônica), e a radicalização política da revolução francesa, mesmo que a forma de república democrática com separação total entre Estado e igreja tenha demorado mais de um século pra se realizar. O único caso em que teve mesmo um compromisso foi o da revolução inglesa, com a revolução gloriosa, mesmo assim depois da fase extremamente radical e herética que o Hill documentou.

Durante todo o livro, ele vai discretamente tirando algumas conclusões políticas, ao refletir sobre os exemplos de como Santo Agostinho e Hobbes pensaram o combate às heresias. Para ele, quando o catolicismo se tornou a religião oficial do Império Romano, não deveria ter aceito que continuassem os cultos pagãos e, no outro extremo, o Hobbes corretamente, segundo ele, reconheceu o papel da religião estabelecida para a manutenção da ordem, mas não ficou indiferente ao conteúdo de verdade da religião, como se pudesse tanto ser o cristianismo como qualquer outra. Para o Voegelin, os dois não entenderam que deve haver um equilíbrio, em que a religião permite uma ordem civil separada, enquanto tem a liberdade de reprimir as heresias (ele defende que os gnósticos tem que ser censurados, se baseando num escrito de Hooker contra os puritanos). Mais uma vez, eu vejo aí uma acomodação com a ordem política moderna, com a projeção para o passado de um modelo de separação entre Estado e igreja que só surgiu no século XIX.
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sábado, 15 de dezembro de 2018

ARTE REALISTA| Boca artesanal


Sinopse: Você sabe quem faz as suas drogas? Em que condições de trabalho? De que material são feitas e de onde vêm? Qual o impacto no meio ambiente? Procure saber. (Porta dos Fundos)
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Boca artesanal (farsa, BRA, 2018), de Rodrigo van der Put.
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quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

O lugar de fala de Djamila Ribeiro

por Inês Maia

Considero se tratar um equívoco a afirmação que a questão da raça e racismo no Brasil nunca foi levada a sério. Tal premissa é no mínimo ingênua, senão oportunista. Há uma ampla bibliografia consistente lançando luz sobre a forma pela qual a exploração do capital por aqui se deu a partir de uma estrutura escravocrata, que de fato jamais foi superada. Escavando um pouco a nossa velha bibliografia, teremos uma visão ampla, profunda e aguda da nossa formação social que eleva o componente racial como algo central. Também temos críticos/militantes interessantes, como Abdias do Nascimento e Lélia Gonzalez.

Se a aposta liberal era a de que a modernidade capitalista por si só faria evanescer as relações de violência racial, logo se viu seu engodo, e se vê, na estrutura própria de nossa exploração capitalista, o componente racial tornado um dispositivo de controle dos corpos negros marcados não só pela exclusão, salários baixos e degradação existencial, como pelo auxílio na construção de um inimigo do Estado a ser sempre combatido pela forma de seu braço armado: a polícia. Exatamente aquilo que Mbembe chamou, com muita razão, de necropolítica. Grosso modo, uma política estatal que autoriza quem pode morrer e quem pode viver.

Então com duzentos anos de modernização capitalista, nesses tristes trópicos, é factível a impossibilidade de superação do racismo contra os negros baseados nas premissas básicas de um sistema no qual a exploração radical é o que o mantém vivo. É equivocada a crença na possibilidade de ascensão racial em um sistema que inventou as raças, que inventou um continente para dividir, controlar e usurpar suas riquezas. Tratar da questão racial é, portanto, refletir radicalmente sua fundamentação na estrutura de modernização colonial propulsora do capitalismo desde o seu berço.

Isto significa, sobretudo, que foi justamente a escravidão a condição de possibilidade do capitalismo e, com ela, a construção ficcional das raças como diferenças engendradas socialmente pela necessidade predatória de sua acumulação primitiva. É preciso acabar de vez com a ingenuidade da ciência etnológica pois desde sua fundação ela teve um único princípio: controle e submissão dos povos “não civilizados”. É preciso entender, como Mbembe deixou claro, que o projeto de neoliberalismo é uma tentativa de reedição da escravidão num novo patamar produtivo. É disso que se trata o devir negro do mundo.

Esse deveria ser o bê-á-bá de todos aqueles que se dizem antirracistas. Infelizmente não é o caso. Diga-se logo: o livro de Djamila Ribeiro não é sequer um livro anticapitalista. Feito esse preâmbulo, podemos passar para uma análise mais crítica de suas premissas e dos seus desenvolvimentos internos.

Demorou muitos anos para que uma intelectual negra tivesse algum tipo de destaque no Brasil. E Djamila é, sem dúvida, uma comentarista que trouxe para o debate público temas candentes e urgentes. A grande questão é que, como estudantes de filosofia, sabemos que a forma de abordar o problema define radicalmente os limites de sua resposta.

Com estudos em Simone de Beauvoir e Judith Butler, com um grande trabalho desenvolvido nas redes sociais, e agora entre os livros mais vendidos, seu nome já não é desconhecido. E sua prática, é preciso assinalar, tem sido até aqui coerente com sua teoria. Se o arcabouço teórico do livro limita-se a restituir humanidades negadas através da escuta das vozes silenciadas, podemos dizer, que a massiva aceitação de seu livro, que o convite aceito para sua participação em programas Globais, que o seu nome atrelado à indústria dos cosméticos indicam que pelo menos, segundo sua própria teoria, a sua humanidade fora restituída.

Necessitamos ler seu livro com estes olhos, como aquilo que efetivamente tem provocado na práxis política; os resultados causados no seio da militância, em especial àquela do movimento negro. Em primeiro lugar, os pressupostos do livro são inteiramente liberais-reformistas, não pensa em nenhum momento ultrapassar o horizonte formatado pela modernidade capitalista, mas, em se adequar ao seu interior, criando espaços de visibilidade para “subjetividades coletivas” invisibilizadas. Aliás, a palavra capitalismo aparece duas vezes no livro. Em segundo lugar, trata de trazer à tona a demarcação das diferenças identificando-as passo a passo, aceitando de antemão os pressupostos colonialistas que basearam essas diferenças.

Tendo isso exposto, não se trata de um livro cuja busca seja iluminar aquilo que se ocultou com a invenção das raças e do racismo, tampouco reflete a fundamentação do racismo a partir dos pressupostos da desigualdade e competitividade capitalistas, trata-se apenas de uma posição culturalista, ou melhor, moralista.

A discussão caminha assim para a tentativa de visibilizar uma disputa no interior do próprio feminismo. Ora, é evidente que a radicalidade do feminismo negro deve dar o horizonte e fornecer o mapa de quaisquer feminismos numa posição em que, no campo da luta política, as diferenças sejam concebidas para tornarem-se indiferentes na prática. Quer dizer, a hierarquia necessita ser expulsa do horizonte de lutas do movimento feminista, ao passo que, as vozes necessitam poder encarnar em qualquer corpo.

O paradoxo, não vislumbrado, é que as hierarquias são fornecidas pela desigualdade social radical cujo motor é a racialização da própria dinâmica do mercado e consumo, mas nada disso é dito. Não é o que importa à Djamila Ribeiro.

Ainda presa aos prognósticos do feminismo de donzelas do século XIX, até importa-se em colocar em xeque a posição social do feminismo que, em termos sintéticos, nas suas premissas, deixou de lado não só o componente racial, mas, como aparece nas desgostosas arengas de Truth, ficou afastado de uma base social pobre, entretanto, a posição social é reforçada só para sustentar um discurso que passa ao largo das questões de classe.

Apesar de tipificar o surgimento de um feminismo que era alheio a questão racial, Djamila, além de projetar uma fundamentação do feminismo norte-americano como um dado universal – por exemplo, não diz qual foi, ou como se deu, o desenvolvimento do feminismo no Brasil –, não deixa claro também, por exemplo, as condições de possibilidades que invisibilizaram a questão racial no interior do movimento feminista norte-americano, a não ser algo como uma espécie de cegueira moral daquelas primeiras feministas. Tal atitude argumentativa elide as condições objetivas e violentas, além das contradições existentes, em cada Estado da federação. Nessa perspectiva, portanto, o racismo torna-se sobretudo uma questão moral.

Lançando mão do conceito de “narrativas”, um olhar para o passado a partir do presente, a autora afirma que a luta no interior do movimento feminista era uma disputa de narrativas. Anacrônica ou não, essa perspectiva lança as bases para o que a comentarista tentará sustentar.

É nesse ponto que entra pela janela do texto uma noção de privilégio, mais ou menos, empírica, e diga-se de passagem plenamente liberal; o privilegio aí não advém do monopólio da riqueza, mas sim de um aspecto epidérmico biologizante. A culpa, segundo essa perspectiva, não é do sistema capitalista, cuja fundamentação colonial propiciou uma hierarquização social efetivada pela epiderme, mas sim do branco que nasceu branco. Como é parcial a forma de articulação do problema, também é parcial sua resposta e, dessa forma, aposta numa posição de mudança no interior dos limites postos pela vida baseada na competição e no fetichismo de mercado.

Naturalmente, a necessidade de reconhecer a estrutura de desigualdade racial de nosso mercado de trabalho é central – Ribeiro passa longe dessa discussão talvez porque esta seja de uma outra classe que não a sua – no entanto, não se preocupando com isso, o argumento é válido para alimentar o identitarismo de extrema direita que se utiliza dos mesmos argumentos, porém, de maneira invertida. Para a esquerda liberal, que aposta nessa noção unilateral sobre a construção dos privilégios, é como se uma cor (branca) tivesse tudo, para a extrema-direita, que se aproveita dessa posição, é como se uma cor (negra) quisesse roubar tudo. O problema é que estamos no Brasil e a miscigenação ocorreu – embora, algumas almas destroçadas e inúteis queiram torná-la crime de genocídio (deixa só o Pegida ou o Aurora ouvirem essa argumentação!).

E com a sustentação teórica, algo genérica, baseada em algumas referências a Lélia Gonzalez, reduz o debate epistemológico e científico a questão da raça excluindo não só o debate contra a neutralidade da ciência, como ainda, optando por excluir a própria ciência do horizonte emancipatório, já que é algo de privilegiado. Assim, é melhor lutar por um outro conhecimento, por uma outra episteme, “negra”, porque, segundo a autora, no escopo da ciência branca, há vozes que são legitimadas e vozes que não. Nada original; a posição problemática de Grada Kilomba ressoa no texto de maneira rebaixada.

Ora, combater a neutralidade epistemológica não é o mesmo que simplesmente negá-la, assim, quando a autora se apossa de Lélia Gonzalez, como instrumental para defender os próprios pressupostos, apenas aponta de maneira genérica quais pontos de vista que permeavam a práxis de Lélia, que, tendo ou não seus equívocos, de fato foi importante para trazer a questão racial para o interior do movimento feminista. A discussão sobre o fazer ciência envolve radicalmente a política econômica que é não apenas a ciência dominante como ciência da dominação. Sem dúvida, a questão do racismo governa os castelos conceituais da ciência é preciso combatê-lo, no entanto, sem petite-negre que, em termos grosseiros, significa um racismo crente de que o negro não conseguirá entender, jamais, Kant ou Hegel.

Sabemos que, ao contrário de Fanon que detestava o petite-negre, Gonzalez era entusiasta da liberdade gramatical como polo de resistência e suposta herança cultural. Aceitando de saída a alcunha redutora de que “eles não poderão ler os nossos livros”, tal noção acaba por limitar-se ao terreno minado criado para balizar o negro no interior da raça e defini-lo a partir dos pressupostos coloniais. Pois é exatamente aí que Djamila Ribeiro se sustenta para combater o “universalismo”. A todo momento não se saí da lógica colonial e se busca uma reafirmação do “eu” para disputar internamente aos pressupostos simbólicos do significante raça.

E assim salta para os argumentos de Alcoff com intuito de buscar valorizar outros saberes. Olhados agora, sabemos que essa é justamente a palavra de ordem do mercado: tragam para nós seus saberes “originários”, ou esse romantismo putrefato que volta, como tragédia, à esquerda e à direita. Mas, mais que isso, qualquer saber tem como intuito a transformação ou a conservação da realidade em sentido amplo; uma busca incessante pela produção da verdade significando que sua disputa é política e múltipla. Não se trata pois de querer criar, como se fosse um ato de decisão, uma nova metafisica, trata-se antes de colocar em xeque o mundo no qual essas epistemologias são autorizadas como discurso da verdade. Já sabemos que a ciência é um acordo que produz realidades, a questão é: o que e quem autoriza esse acordo?

E com essa carta na manga a autora diz: “Seria preciso, então, desestabilizar e transcender a autorização discursiva branca, masculina cis e heteronormativa e debater como as identidades foram construídas nesses contextos”. Desestruturar a autorização discursiva branca, masculina cis e heteronormativa não se dá pela manutenção através da competição no interior das instituições heteronormativas senão pela desestruturação dos próprios espaços e lugares onde a possibilidade de política está morta. Não se busca manter um lugar, mas acabar com o lugar; a desterritorialização do espaço político como possibilidade de encarnar as múltiplas vozes do coro dos “Condenados da Terra” em um objetivo comum e para o comum. É claro que qualquer epistemologia não é neutra porque social, então por que não se questiona a fundamentação social da epistemologia em nenhum momento no livro?

O fato de não criticar, em nenhuma passagem do livro, a fundamentação social dessa epistemologia, sustenta a posição de hierarquização e disputa no interior dos pressupostos e limites dados pelo capitalismo e sua posição que no lado sul do globo jamais deixou de ser colonial. Nada disso interessa aí.

Com uma teoria supostamente original, a aporia de sua estrutura se mantém inabalável do início ao fim. É uma teoria de significante colonial. A solução encontrada é então a criação de nichos de mercados conforme a súmula dos democratas americanos. Mas, nada disso se diz claramente senão que é preciso escutar as mulheres negras para que assim os quatrocentos anos de escravidão, trabalho precário, nadificação de sua existência sejam pagos através da garantia do lugar de fala! Trata-se de acessar a humanidade pelo ato da fala.

Naturalmente esta teoria é uma teoria de gestores da classe trabalhadora, aqueles que reivindicam um acento na política pública, ou um departamento de pesquisa na universidade. As trabalhadoras negras, aquelas que estão nas ruas pelas cinco da manhã e voltam às dez da noite, depois de um transito infernal, estão pouco se lixando para coisitas tais! Então, em primeiro lugar, é preciso estabelecer o lugar de fala dessa teoria e ele é o lugar da classe-média!

Esse lugar da classe média ilustrada é interessante ser posto em xeque porque acentua não apenas a dimensão ilusória de seus diagnósticos e de seus resultados, como nos faz entender como e o porquê a esquerda se afastou radicalmente da vida comum, das pessoas comuns. É patente a importância da discussão racial como aquela que possibilita interpretar a superexploração radical dos negros numa estrutura subdesenvolvida e dependente de capital, só que nada disso importa para essa classe-média.

A transformação social radical será negra, ou não será, mas para tanto é preciso que nós negros tenhamos dimensão concreta daquilo que possibilita o racismo e o mantém inalterado. É preciso sairmos dos limites coloniais que nos identifica, nos diz o que somos e como devemos agir. Mbembe diz, mais ou menos, que nada garante que o fim do capitalismo possa proporcionar o fim do racismo. Tudo bem! Mas, nós temos a certeza de que com a manutenção do capitalismo o racismo jamais terá fim. Arrisquemo-nos!
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segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

O morenismo à deriva diante da vitória de Bolsonaro


por Thiago Rodrigues

Com diferentes nuances, todo o morenismo serviu de quinta roda para o avanço do autoritarismo judiciário. Com o apoio ao impeachment ou à Operação Lava Jato, se posicionaram ao lado das forças mais reacionárias, que com o apoio do imperialismo buscavam avançar num ataque sem precedentes às condições de vida das massas, num nível muito mais profundo e acelerado do que o próprio governo petista já se propunha.

O golpe institucional de 2016 e sua continuidade com a prisão arbitrária de Lula e a manipulação eleitoral que favoreceu a vitória de Jair Bolsonaro, foi um divisor de águas na esquerda brasileira. As organizações morenistas, que reivindicam a tradição do dirigente trotskista argentino Nahuel Moreno (PSTU além de MES, CST e Resistência, que fazem parte do PSOL, essa última vinda de uma ruptura recente com o PSTU e com uma evolução política distinta) perderam qualquer critério de classe para sua orientação e navegam os agitados mares da política nacional sem nenhuma bússola.

O que marca a política atual do morenismo brasileiro é o criminoso apoio ao golpe institucional (para uma visão mais completa da política do morenismo frente ao golpe institucional, ler aqui).

Com diferentes nuances, todo o morenismo serviu de quinta roda para o avanço do autoritarismo judiciário. Com o apoio ao impeachment ou à Operação Lava Jato, se posicionaram ao lado das forças mais reacionárias, que com o apoio do imperialismo buscavam avançar num ataque sem precedentes às condições de vida das massas, num nível muito mais profundo e acelerado do que o próprio governo petista já se propunha.

Uma capitulação aberta à opinião pública burguesa e à campanha permanente contra a corrupção petista, como se essa fosse quase monopólio do PT. O que estava de fundo nessa cruzada anti-petista da opinião pública burguesa nunca foi o combate à corrupção, mas deslegitimar não o que o PT tem de burguês, mas deslegitimá-lo como representação política (ainda que distorcida, nós sabemos), da classe trabalhadora. Assim o PSTU (e também a CST) levantou o "Fora Todos" que começaria pelo "Fora Dilma", mas nunca prosseguiu para nenhum outro. O MES se transformou no campeão da Lava Jato até o final e até adotou como lema nas eleições municipais de 2016 em Porto Alegre o “candidata de mãos-limpas” para Luciana Genro, uma referência explícita à operação italiana na qual se inspira Sérgio Moro.

Sua política pretendia o absurdo de que o debilitamento do PT, mesmo que fosse pelas mãos da direita, faria avançar o processo de experiência de massas com o PT e abriria espaço para a esquerda revolucionária. A realidade não demorou para desmentir essas ilusões. O autoritarismo judiciário, ao tirar Dilma, ao prender Lula, ao perseguir o PT, teve efeito contrário. Por um lado ajudou a que amplos setores da classe trabalhadora tirassem conclusões pela direita, e não pela esquerda, da sua experiência com o PT. Por outro lado, fortaleceu na visão de milhões de trabalhadores a ideia do PT como o principal partido de esquerda. O golpe institucional ao invés de debilitar o PT nesses setores, apenas o fortaleceu.

Frente a esse descalabro, cada setor morenista seguiu seu caminho em meio à confusão generalizada. O PSTU se dividiu em dois, e a maioria segue a mesma política de quinta roda do golpismo, sem tirar nenhuma conclusão do processo.

O MES avança por um caminho ultra pragmático. Já em 2016 reviu a posição de apoio ao impeachment na última hora passando a caracterizá-lo como golpe parlamentar. Uma definição que deixa de fora justamente o pilar da ofensiva autoritária que é o judiciário, que expressa sua recusa em reconhecer o caráter reacionário da Lava Jato e a posição pró-imperialista do juiz Sérgio Moro. Vão tentando abandonar suas posições golpistas e se colar na base petista, mas sem rever seu apoio ao judiciário, com definições como a de que a entrada de Moro no governo Bolsonaro "daria lugar a um processo de experiência com esse juiz", que seria menos pior do que “alguns dos marginais políticos que acompanham Bolsonaro”. Talvez sirva ao menos para que a direção do MES faça sua experiência com um juiz que está a serviço da entrega do Pré-Sal e de outros interesses imperialistas.

Resistência: rompendo com o golpismo para aderir ao petismo?


A Resistência se recusou a romper com a política golpista do PSTU antes ou durante o golpe institucional, ou mesmo vir a público com as suas posições, abandonando o combate público contra a opinião pública burguesa e a luta por uma orientação correta para a vanguarda num momento crucial da história do país.

A Resistência, que rompeu com o PSTU a partir do questionamento correto à política golpista do PSTU, não fez nenhum balanço profundo das posições morenistas que levaram ao descalabro de apoiar o golpe institucional, e deu um giro de 180 graus na sua política, passando do PSTU ao seguidismo ao PT.

Uma forma diferente de cometer o mesmo erro: apostar em setores de classe alheios aos trabalhadores para resolver as tarefas que seriam dos próprios trabalhadores. Ao invés de fazer seguidismo aos golpistas para debilitar o PT, agora fazem seguidismo ao PT para debilitar o golpismo.

É um avanço, sem dúvida, reconhecer a existência do golpe institucional e o caráter reacionário da Operação Lava Jato. Porém, um giro que não vai até o final no balanço teórico e estratégico do morenismo os leva a repetir um erro que é o oposto simétrico ao do PSTU, se diluindo na maioria do PSOL e numa política quase acrítica ao petismo.

A diluição de todos os morenistas na frente ampla petista

No seu ecletismo as organizações morenistas combinam o seguidismo ao golpismo da direita, mesmo que de forma mais aberta, como o PSTU e CST, ou de forma cada vez mais envergonhada como o MES. O que emparenta essas três organizações é que, de uma forma ou de outra, frente à vitória de Bolsonaro, aprofundam a adaptação ao petismo.

MES e Resistência estão participando mais uma vez acriticamente da Frente Democrática ou Frente Ampla do PT contra Bolsonaro. As figuras parlamentares do MES participaram dos atos petistas no segundo turno e dos dois atos #elenão em setembro (apoiados inclusive por setores burgueses), e buscam agora conformar um bloco parlamentar com o PT. Não se trata de um pouco mais de crítica ou um pouco menos de crítica ao PT. Uma política independente do petismo deveria mostrar a impotência estratégica da Frente Democrática e apontar a luta de classes e a frente única da classe trabalhadora como único caminho para enfrentar os ataques de Bolsonaro e seu governo, mas mesmo isso não basta. É preciso também uma orientação correta para os sindicatos petistas, que ajude a base desses sindicatos a pressionar suas direções a tomar medidas efetivas de luta e organização e que ajude a acelerar sua experiência com essas direções, disputando a política do conjunto do movimento.

Depois de ter apoiado o impeachment da direita mais reacionária, colocado a tarefa de "superação do PT" nas mãos da pró-imperialista Lava Jato e Sérgio Moro, e calado qualquer delimitação com as burocracias sindicais petistas, o PSTU conclui que o "Fora Todos" foi um sentimento que ajudou a eleger Bolsonaro.

Ainda que envergonhada, trata-se da confissão de que sua política desde 2015 ajudou a jogar água no moinho de Bolsonaro, do golpismo e da direita, pois os dois "Fora Todos" conviveram bem nas paredes da FIESP. Agora, frente à necessidade de enfrentar Bolsonaro, aplaude acriticamente as manobras da burocracia sindical da CUT e demais centrais, que não apenas freiam qualquer plano de luta, mas propõem uma "reforma da previdência alternativa", um verdadeiro escândalo.

Por um lado nega a demanda de liberdade para Lula, a principal referência política do PT, o que é na pratica uma negação de uma frente única real (na luta de classes, para objetivos práticos de ação, a verdadeira acepção da frente única na concepção marxista) com setores da base petista. A posição do PSTU se torna ainda mais absurda, na medida em que não se diferencia da política das direções sindicais petistas para combater a reforma da previdência – lembrando que o elemento fundante da tática de frente única deveria ser a superação, na experiência concreta, das direções reformistas. Na prática acaba embelezando as direções petistas e, pela via da Conlutas, aderindo ao chamado capitulador e divisionista das centrais sindicais de fazer uma campanha por uma reforma da previdência distinta da que o governo Temer propôs e que Bolsonaro pretende aprofundar.

Um dos argumentos dos morenistas do MES, PSTU e CST, que buscam retroceder das suas posições anteriores sem nenhum balanço, é a importância do combate à corrupção e de que a esquerda não deixe essa bandeira nas mãos da direita. Para isso, de uma forma ou de outra terminam exigindo da própria justiça golpista que leve a luta contra a corrupção até o final, e ao fazer isso entregam a bandeira da corrupção e também sua independência programática para a direita contra a qual supostamente estariam disputando.

O combate à corrupção de uma perspectiva de classe e revolucionária tem que apontar não só contra a casta política, mas também judicial e militar. Com um programa que combine o fim de todos os privilégios de casta, o fim da justiça militar, o julgamento por júri popular de todos os crimes de corrupção e, nas conjunturas que antecederam a vitória eleitoral de Bolsonaro, a luta por uma assembleia constituinte para enfrentar o conjunto da casta política podre.

É preciso que essas organizações revejam criticamente sua estratégia desde o golpe institucional. De todos os zigue-zagues que o MES tenta para abrir diálogo com a base petista o que não muda é seu amor pelo judiciário. Muito menos o chamado a uma unidade acrítica com as centrais sindicais, mantendo todas as posições golpistas, como faz o PSTU, oferece uma política independente da Frente Democrática. Também um giro de 180 graus como fez a Resistência, sem rever as bases teóricas e estratégicas dos erros do PSTU, pode só conduzir a uma política de diluição no petismo.
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quarta-feira, 31 de outubro de 2018

O 18 brumário de Jair Bolsonaro


por Rodrigo Perez Oliveira

“Demonstro nesse livro como a luta de classes na França criou circunstâncias e condições que possibilitaram a um personagem medíocre e grotesco desempenhar um papel de herói.”

Assim, com essas palavras, Karl Marx inicia o livro O 18 brumário de Luís Napoleão Bonaparte”, publicado em 1852. No texto, Marx se pergunta como um sujeito medíocre e grotesco conseguiu se tornar o líder máximo da sociedade que meio século antes havia experimentado a mais importante revolução social da história moderna.

Aqui, neste ensaio, me inspiro em Marx para formular minha própria pergunta:

Por que Jair Bolsonaro, até então um deputado medíocre, inexpressivo, foi eleito presidente da quarta maior democracia do mundo?

Meu esforço aqui é o de entender o capital político que impulsionou o bolsonarismo. Esse capital político é substância composta e heterogênea. Neste texto, pretendo decompor essa substância, trazendo à luz cada um dos seus elementos.

1°) O antipetismo

Desde o final da década de 1980 que o antipetismo é fator decisivo nas eleições presidenciais brasileiras. Até aqui nenhuma novidade. Porém, dessa vez algo mudou. Ao velho macarthismo, que durante tanto tempo inviabilizou Lula, somou-se uma dupla interdição moral.

A primeira camada de moralidade refere-se ao sentimento anticorrupção. Desde 2005, existe o esforço articulado pela grande mídia e por órgãos do aparato policial e judicial do Estado (Polícia Federal e Ministério Público) de colar no Partido dos Trabalhadores a pecha de partido mais corrupto do sistema político brasileiro. Essa frente antipetista sempre teve um modus operandi muito claro: a espetacularização seletiva dos escândalos de corrupção. É impossível compreender a ascensão de Bolsonaro sem a atuação dessa frente antipetista.

A segunda camada de moralidade refere-se ao plano do comportamento.

Nos últimos 30 anos, vimos no Brasil e no mundo o fortalecimento dos direitos civis das minorias (mulheres, pretos e pretas e LGBTs). Essa discussão já estava presente na cena brasileira desde a redemocratização, nos anos 1980, tendo sido contemplada parcialmente pela Constituição de 1988. Avançamos nessa agenda tanto nos governos de Fernando Henrique Cardoso como nos governos petistas. Poderíamos ter avançado mais, é claro.

É uma obviedade dizer que o Brasil é um país conservador e que, por isso, a pauta dos direitos civis das minorias tem grande impacto ofensor na moralidade dominante. Essa moralidade dominante foi ainda mais radicalizada com a ascensão do cristianismo neopentencostal, do qual a Igreja Universal do Reino de Deus é a principal representante.

Hoje, a formação política de parcela considerável da sociedade brasileira não acontece na universidade, tampouco na escola, muito menos nos sindicatos e associação de moradores. As igrejas evangélicas neopentencostais estão formando a consciência política de milhões de brasileiros e brasileiras, de todas as classes sociais.

Sem dúvida, a aliança costurada entre a candidatura de Jair Bolsonaro e a Igreja Universal do Reino de Deus foi elemento decisivo para o desfecho da corrida eleitoral. No Brasil inteiro, as igrejas se transformaram em verdadeiros núcleos de campanha. A campanha de Bolsonaro conseguiu convencer as pessoas que os direitos civis das minorias representam um ataque à família brasileira e que o PT seria o principal promotor desse ataque.

Resumindo: O velho antipetismo foi turbinado e caiu no colo de Jair Bolsonaro.

Mas por que Bolsonaro e não outro antipetista qualquer?

2°) A sensação da insegurança pública

Nas grandes cidades brasileiras, as pessoas estão assustadas. Os índices de violência urbana são similares aos observados em países em situação de guerra.

Como bem lembrou Marcelo Freixo, as esquerdas brasileiras sempre tiveram dificuldade em discutir o tema da segurança pública, pois costumam enfrentar o assunto com ideias abstratas como “direitos humanos”, ou com projetos que ofendem a tal moralidade da qual falei há pouco, como a “descriminalização do consumo de drogas”.

Enquanto isso, Jair Bolsonaro evocou a velha máxima do “bandido bom é bandido morto”. Foi o bastante para que as pessoas, assustadas, fossem tomadas por certo sentimento hobbesiano, aceitando de boa vontade abrir mão de algumas liberdades em nome de um Estado autoritário e violento, capaz de trazer a sensação de segurança. O medo é afeto político muito poderoso.

3°) A narrativa da ineficiência da democracia

Foram muitos os desdobramentos dos eventos que aprendemos a chamar de “jornadas de junho de 2013”. Ainda não entendemos bem o que aconteceu naquele momento e o próprio significado de “2013” está sendo disputado.

Mesmo diante de tantas incertezas e caminhando em terreno ainda pouco sólido, estou muito convencido de que junho de 2013 passou uma mensagem para a sociedade brasileira: a democracia representativa criada nos anos da redemocratização seria corrupta e ineficiente na gestão dos serviços públicos e na promoção do Bem-Estar Social.

Os números mostram outra realidade. Desde a década de 1990, o Brasil vem caminhando relativamente bem no que se refere à qualidade e a eficiência dos serviços públicos.

Não, leitor e leitora, não estou louco!

Todos os dados apontam para a evolução no acesso à educação e à saúde, no combate à mortalidade infantil, no aumento da rede de atendimento na saúde básica.

Mas como o que importa é a tal da “percepção”, os dados estatísticos são pouco relevantes. As “jornadas de 2013”, tão bem exploradas e cooptadas pela mídia hegemônica, pintaram para a sociedade brasileira um quadro de total colapso e ineficiência na gestão dos serviços públicos. Se o quadro não é totalmente falso, está longe de ser completamente verdadeiro.

A mensagem foi transmitida com sucesso e continuou a alimentar a revolta social em 2015 e 2016. O saldo desse ativismo da sociedade civil pode ser resumido por um sentimento de “fora todos”, de “tudo está errado”, “tem que mudar tudo isso aí”. Temos aqui terreno fértil para o surgimento de lideranças que se apresentam como antissistemas, como “outsiders”. Jair Bolsonaro era um dos poucos políticos que conseguiam caminhar com tranquilidade entre a multidão, justamente porque foi capaz de se apresentar como um crítico ao sistema vigente (a democracia) e um defensor da ordem política superada (a ditatura), que passou a ser objeto de toda tipo de saudosismo.

A percepção geral da ineficiência da democracia alimentou a utopia autoritária representada por Jair Bolsonaro.

4°) A falta de compromisso do capitalismo com a civilização

Uma das principais motivações para o golpe parlamentar que destituiu Dilma Rousseff em agosto de 2016 foi sua recusa em adotar a agenda de desmonte do Estado que na época foi chamada de “Ponte para o Futuro”.

Não há nenhum voo interpretativo aqui. O próprio Michel Temer disse, em palavras cristalinas: “Dilma caiu porque não quis adotar a Ponte para o Futuro”. Essa é uma novidade do golpe brasileiro: os golpistas assumem que foi golpe, sem nenhum constrangimento.

É antigo o projeto de desmonte do Estado brasileiro. Podemos encontrar sua origem lá na década de 1950, com o udenismo. Porém, esse projeto sempre teve dificuldades para se transformar em realidade. Nem mesmo a Ditadura militar o fez. Na década de 1990, os tucanos avançaram, mas nem tanto.

Os governos petistas interromperam a marcha, que foi acelerada com Temer. Em dois anos, Michel Temer conseguiu o que três gerações de políticos e economistas liberais não foram capazes de fazer: tirar do controle do Estado o planejamento do desenvolvimento nacional, entregando-o ao mercado. A famosa “PEC dos Gastos” é o grande símbolo desse sucesso.

As forças do mercado sabiam muito bem que as eleições de 2018 representavam um risco para continuidade desse projeto. O primeiro movimento foi garantir que Lula ficasse de fora da corrida presidencial. Depois, foi colocada em movimento uma campanha negativa, visando a destruição do Partido dos Trabalhadores. O objetivo era fortalecer o outro polo do sistema político, aquele que até então era o dono do antipetistmo: o PSDB.

Jair Bolsonaro atravessou o processo e as forças do capital não hesitaram em abandonar o antigo aliado e firmar matrimônio com um novo amor. A popularidade de Bolsonaro se tornou a garantia da legitimação eleitoral da agenda econômica do golpe parlamentar. Não houve debate econômico, projetos de desenvolvimento nacional não foram discutidos. Jair Bolsonaro foi eleito, exclusivamente, na base do antipetismo repaginado e do sentimento hobbesiano alimentado por uma população assustada. Paulo Guedes foi silenciado durante toda a campanha.

As forças do mercado comemoraram a eleição de Bolsonaro. O ideal mesmo seria Alckmin, mas Bolsonaro, com a chancela de Paulo Guedes, serve também. Machista, autoritário, violento, homofóbico? Sim, não importa. O capitalismo não tem o menor compromisso com a civilização.

A eleição de Bolsonaro inquieta e assusta o mundo inteiro. Dentro e fora do país, aqueles que têm um mínimo compromisso com os valores que fundam a civilização se perguntam: como isso aconteceu? Como foi possível?

Ainda vamos nos debater muito com essas perguntas. Historiadores, sociólogos e cientistas políticos vão propor inúmeras hipótese explicativas.

Fato mesmo é que Bolsonaro não surgiu ontem. Ele está aí há muito tempo, no submundo da política brasileira. Ignoramos, não prestamos atenção, subestimamos, debochamos. Acreditamos que o Brasil não se rebaixaria tanto assim. No fundo, bem no fundo, nos iludimos, achando que o Brasil tinha melhorado. Melhorou não. É isso aí mesmo. Sempre foi.
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terça-feira, 30 de outubro de 2018

ARTE REALISTA| Bohemian rhapsody


Bohemian rhapsody
Freddie Mercury

Is this the real life? Is this just fantasy?
Caught in a landslide, no escape from reality
Open your eyes, look up to the skies and see
I'm just a poor boy, I need no sympathy
Because I'm easy come, easy go, little high, little low
Any way the wind blows doesn't really matter to me, to me

Mama, just killed a man
Put a gun against his head, pulled my trigger, now he's dead
Mama, life had just begun
But now I've gone and thrown it all away
Mama, ooh, didn't mean to make you cry
If I'm not back again this time tomorrow
Carry on, carry on as if nothing really matters

Too late, my time has come
Sends shivers down my spine, body's aching all the time
Goodbye, everybody, I've got to go
Gotta leave you all behind and face the truth
Mama, ooh (Anyway the wind blows)
I don't wanna die
I sometimes wish I'd never been born at all

I see a little silhouetto of a man
Scaramouche, Scaramouche, will you do the Fandango?
Thunderbolt and lightning, very, very frightening me
(Galileo) Galileo, (Galileo) Galileo, Galileo Figaro magnifico
But I'm just a poor boy, nobody loves me
He's just a poor boy from a poor family
Spare him his life from this monstrosity
Easy come, easy go, will you let me go?
Bismillah! No, we will not let you go
(Let him go!) Bismillah! We will not let you go
(Let him go!) Bismillah! We will not let you go
(Let me go) Will not let you go
(Let me go) Will not let you go
(Let me go) Ah
No, no, no, no, no, no, no
(Oh, mamma mia, mamma mia) Mamma mia, let me go
Beelzebub has a devil put aside for me, for me, for me!

So you think you can stone me and spit in my eye?
So you think you can love me and leave me to die?
Oh, baby, can't do this to me, baby!
Just gotta get out, just gotta get right outta here!

Nothing really matters, anyone can see
Nothing really matters
Nothing really matters to me
Any way the wind blows

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A Night at the Opera (USA, 1975) - Queen.
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terça-feira, 25 de setembro de 2018

Pode o fascismo ser neoliberal? Um precedente do integralismo brasileiro


 
por Gilberto Calil
Esquerda Online

A destacada participação do economista neoliberal Paulo Guedes na campanha do candidato fascista à presidência tem deixado muita gente surpresa, pois é recorrente a imagem do fascismo como movimento antiliberal (ao menos em termos políticos) e defensor de um projeto econômico nacionalista, da mesma forma que os neoliberais costumam se reivindicar como defensores da democracia – ao menos quando se trata de condenar regimes que qualificam como ditaduras de esquerda.

A discussão dos limites, características e ambiguidades do neoliberalismo extrapola os limites deste artigo. De forma bastante simplificadora, é importante registrar que a despeito de referência ao termo “neoliberalismo” por autores como Ludwig von Mises em período anterior, os marcos de constituição do pensamento neoliberal são a publicação do livro O caminho da servidão, de Friedrich Hayek, em 1946, e a constituição da Sociedade Mont Pèlerin, no ano seguinte, sob a liderança do próprio Hayek e de Milton Friedman, sistematizando um ideário econômico que seria propagado nas décadas seguintes e transformado em política econômica concreta na década de 1970, em resposta à crise do petróleo de 1973.

A história é profícua em exemplos que contrariam a suposta incompatibilidade entre fascismo e neoliberalismo. Entre os mais conhecidos, pode-se citar o entusiasmado apoio de von Mises ao fascismo e sua atuação como conselheiro econômico na ditadura de Dolfuss, na Áustria[1], além da conhecida participação de Milton Friedman e dos Chicago Boys[2] na ditadura Pinochet[3]. Pode-se argumentar que von Mises é um vulgarizador de pouca expressão e que reivindicava a “Escola Austríaca” como movimento à parte, ou ainda que a ditadura Pinochet não foi propriamente fascista, se seguirmos uma conceituação rigorosa, já que caracterizou-se como um regime de Terrorismo de Estado que utilizou-se métodos semelhantes aos do fascismo, mas que sustentava-se mais pela desmobilização política forçada do que pela mobilização de adeptos, como é característico do fascismo. Em todo caso, ao menos comprovam a artificialidade das proclamações “democráticas” dos neoliberais. Bem menos conhecida, e bastante elucidativa, por sua vez, é a adesão dos fascistas brasileiros ao projeto neoliberal.

Integralismo e neoliberalismo

O integralismo foi o mais importante movimento fascista na história brasileira[4]. Constituído em 1932, sob a liderança do escritor e jornalista Plínio Salgado, o movimento integralista teve uma primeira e mais destacada etapa de atuação entre 1932 e 1937, com a Ação Integralista Brasileira, que chegou a reunir em torno de 500.000 adeptos em uma organização tipicamente fascista, marcada por rígida disciplina, uso de uniforme (“camisa-verde”), pela saudação “Anauê” e pelo lema “Deus, Pátria e Família”. Naquele contexto particular, marcado pela ascensão na Europa dos movimentos fascistas, junto ao anticomunismo, o discurso do movimento era marcado também pelo antiliberalismo político e por uma certa concepção nacionalista de economia, incluindo a defesa da intervenção econômica do Estado e proteção ao mercado interno. Em 1937, os integralistas participaram ativamente do golpe que deflagrou o Estado Novo, mas foram descartados por Vargas, e depois de uma fracassada “intentona” em maio de 1938, caíram na clandestinidade, ainda que Vargas tenha permitido que Plínio Salgado se exilasse em Portugal, em troca de seu apoio à ditadura estadonovista[5] . Em 1945, no contexto da redemocratização, os integralistas constituíram o Partido de Representação Popular, através do qual atuariam durante todo o período que se segue, até a extinção dos partidos políticos em 1965[6]. Apoiaram ativamente o Golpe de 1964 e ocuparam algumas posições de destaque na ditadura, mantendo atuação unificada até a morte de Plínio Salgado, em 1975[7]. Desde então, há uma intensa disputa em torno da liderança e fragmentação em várias organizações, bem como participação em partidos como o PRONA de Enéas Carneiro e mais recentemente o PRTB de Levy Fidélix e Mourão Filho[8]. Atualmente não contam com nenhuma organização relevante, e dentre as várias que disputam o legado integralista a principal parece ser a Frente Integralista Brasileira (FIB), liderada por Victor Barbuy, diretamente atuante na campanha de Jair Bolsonaro[9].

A adesão do integralismo ao ideário neoliberal é praticamente contemporânea à constituição da Sociedade Mont Pèlerin, e marca a atuação do PRP entre 1945 e 1965. Ainda que seguisse se proclamando “nacionalista”, reduzia o significado do termo a elementos simbólicos sem qualquer decorrência social e econômica, e colocava-se em aberta oposição ao projeto nacional de desenvolvimento propugnado pelos trabalhistas, inclusive confundindo propositalmente intervenção do Estado com nazismo, em uma confusão deliberada muito semelhante ao que fazem os propugnadores da falácia de que “o nazismo era de esquerda”:

Nosso Nacionalismo é equilibrado porque se subordina a uma filosofia que faz do Homem a base de toda construção social. E aqui está a diferença entre o Nacionalismo Integralista e esse outro Nacionalismo que se prega atualmente no Brasil. (…). O Nacionalismo que atualmente se prega no Brasil é nitidamente estatizante, ou estatista, confundindo a Nação com o Estado. Podemos, pois, adicionar-lhe um adjetivo para termos dele uma ideia exata, dizendo que é um Nacionalismo Socialista, idêntico ao Nacional-Socialismo de Hitler. Firma um princípio do qual se podem tirar as piores consequências, desde a abolição da iniciativa privada no campo da economia até a supressão da liberdade de ensino e, finalmente de toda a liberdade do Homem, que gradualmente vai sendo absorvido pelo Estado.[10]

Concretamente, os fascistas brasileiros colocaram-se contra o monopólio estatal do petróleo e a criação da Petrobrás e defenderam que o capital externo fosse tratado em “igualdade de condições”. Salgado repetia o mantra neoliberal, afirmando textualmente que “toda intervenção do Estado no ritmo normal da produção e do comércio é nociva[11].

No contexto do pós-guerra, para sobreviver politicamente os integralistas precisavam se apresentar como “democratas”, e o caminho para isto foi frequentemente associar o nazismo ao comunismo, propondo que ambos eram estatistas, identificando intervenção estatal na economia com ditadura. Nesta argumentação, a referência a Friederich Hayek era explícita: “Repugna-nos a ideia das planificações com excessiva intervenção do Estado, mesmo nas democracias liberais, como hoje acontece, as quais levam, na opinião de Friederich Hayek, ao caminho da servidão e da ditadura”. (12) Em sua argumentação, a estatização seria resultado da “influência comunista”:

Nos últimos anos a estatização teve grande impulso no país. Por incrível que pareça, partidos e homens públicos que defendem a democracia, a livre empresa, a liberdade de produzir e de distribuir, o capitalismo vigente no Ocidente democrático, ora se uniram aos socialistas e totalitários, ora se omitiram, ora egoisticamente apoiaram medidas estatizantes, em completo desacordo com as teorias e os programas de seus partidos e seus próprios. A influência comunista, por outro lado, foi decisiva para uma série de medidas, iniciativas e decretos governamentais ou leis do Congresso Nacional. Foi para o bem da Nação, para a coletividade brasileira, para a estabilidade econômica e financeira do país? Não, infelizmente não. E com um agravante: serviços públicos que, em outros países, dirigidos pelo Estado, funcionam razoavelmente bem, aqui redundaram num fracasso total, desastroso para a Nação e para a economia popular.[13]

Na toada da cantilena neoliberal, Salgado repetia que os serviços públicos seriam deficitários, deficientes, morosos e ineficientes, e que a grande solução para os problemas seria a privatização. Referindo-se explicitamente à Petrobrás e à Eletrobrás, em 1962 defendia sua privatização:

Nossa sugestão é de abri-las ao capital privado, com participação de capital da União, e sujeitas a uma legislação adequada, que resguarde esse importante patrimônio nacional contra quaisquer outros interesses que não sejam os da salvaguarda da nossa economia. Cremos sinceramente que o Estado deva reduzir seus encargos, principalmente aqueles que são estranhos à sua finalidade natural. Devemos ter a coragem de pensar e agir assim. Não se deve esquecer que outras nações, por sinal poderosas, não temem que sua segurança possa ser afetada pelo exercício pleno da livre empresa, do capitalismo democrático que defendemos.[14]

Sem máscaras, temos aqui o principal líder fascista brasileiro defendendo a privatização como símbolo do “capitalismo democrático”! Mas, curiosamente, Hayek não era citado apenas para fundamentar a defesa de uma perspectiva econômica neoliberal, mas também a imposição de limites ao efetivo exercício da democracia:

Como disse Hayek, no seu livro, O caminho da servidão, se delegarmos poderes ao Executivo para planejar e executar à vontade – hoje um presidente, amanhã outro e depois de amanhã ainda outro – iremos abdicando gradualmente da nossa liberdade, de nossas prerrogativas e caminhando, inexoravelmente, para a ditadura, abrindo mão, cada dia mais, de nossas prerrogativas e do direito e do dever de intervir.[15]

Evidentemente Salgado não tinha se convertido à democracia. Se o contexto o obrigava a declarar-se democrático, fazia isto de forma muito peculiar, defendendo uma democracia “defensiva”, que reprimisse todos aqueles que ele próprio qualificava como não-democráticos, enquanto aguardava condições mais favoráveis para proclamar abertamente sua visão (o que efetivamente fez depois do Golpe de 1964).[16] E para o desenvolvimento desta argumentação, as posições antidemocráticas de Hayek caiam como uma luva.

O alegado “estatismo” se expressaria nos supostamente elevados gastos públicos e dava origem a um discurso que aderia integralmente à plataforma neoliberal, calcado na tese da ineficiência das empresas estatais, como se vê em um panfleto eleitoral de 1954:

S. sabe que se não há abundância de eletricidade neste nosso Estado querido, é porque elementos incapazes não souberam reconhecer ao capital livre, nacional ou estrangeiro, seus direitos naturais de fazer face às necessidades que se previa, de energia elétrica, mediante remuneração apropriada? (…) V. S. sabe que se não há abundância de telefones nesse nosso Estado querido é porque elementos incapazes não souberam reconhecer ao capital livre, nacional ou estrangeiro, seus direitos naturais de fazer face às necessidades que se previa, de mais telefone, mediante remuneração apropriada? (…) V.S. sabe que podemos modificar tudo isso e ter eletricidade, telefone, petróleo e dólares em abundância, elegendo governantes e legisladores que lutem por esses princípios de remuneração justa do capital empregue?[17]

Em relação aos trabalhadores, demandavam do Estado a repressão às greves e o controle sobre os sindicatos, deixando evidente que o “antiestatismo” valia apenas para o terreno econômico. Chegaram a criar uma entidade com pretensão de representar os trabalhadores, a União Operária e Camponesa do Brasil (UOCB), suja principal bandeira era, incrivelmente, a oposição ao reajuste dos salários, em uma argumentação tipicamente neoliberal:

Não deveis prosseguir na campanha dos aumentos de salários. Nós já temos três duras provas dos aumentos, todas elas provas lamentáveis. O custo de vida subiu mais, e subirá todas as vezes em que se aumentarem os salários!… (…) Os aumentos de salários são fome e misérias, desemprego em massa, nenhum Líder Trabalhista do mundo resolve os problemas dos trabalhadores com aumentos de salários. O momento em que estamos vivendo é dos mais dramáticos e de nós exigem sacrifícios, e de todos. Não devemos prosseguir nos aumentos, e sim na participação nos lucros. (…) Srs. Líderes Trabalhistas, não falem mais em aumentos de salário. Isto é desgraça para o trabalhador, tudo sobe em dobro, vestuários, alimentação, aluguéis, remédios, etc.[18]

Mais curioso ainda é observar que, bem de acordo com a tradição do neoliberalismo brasileiro, a defesa do enxugamento do Estado era seletiva e não impedia que se reivindicasse periodicamente sua intervenção para ajudar setores específicos da burguesia em dificuldades. Em 1959, por exemplo, o deputado integralista e cafeicultor Osvaldo Zanello, chegou a apresentar um projeto de Lei segundo o qual “o Instituto Brasileiro do Café, nos termos da Lei Orgânica, comprará, diretamente aos produtores, todo o café da safra 1959-60[19], assim como outros parlamentares integralistas fizeram em relação a outros setores, como a triticultura. Tal contradição não os torna menos neoliberais, ao contrário, os iguala em uma característica que atravessa diferentes grupos políticos neoliberais no Brasil.

Para finalizar

Ao longo dos vinte anos de atuação do integralismo através do Partido de Representação (1945-1965), Hayek e o neoliberalismo constituíam uma corrente minoritária do pensamento econômico e não fundamentavam políticas governamentais, o que só mudaria a partir da ditadura de Pinochet (1973-1990) e dos governos de Margareth Tatcher na Inglaterra (1979-1990) e Ronald Reagan nos Estados Unidos (1981-1989). Ainda assim, o fascismo brasileiro participou ativamente da propagação do ideário neoliberal, atacando políticas públicas, criticando os direitos trabalhistas e defendendo privatizações.

O precedente integralista nos ajuda a compreender as formas específicas que o fascismo assume para se adaptar a distintos contextos políticos, seja jurando solenemente compromisso “democrático” ao mesmo tempo em que buscava esvaziar o sentido do termo, seja incorporando uma perspectiva econômica estritamente neoliberal. Não se trata aqui de alargar irresponsavelmente o conceito de fascismo abarcando indistintamente movimentos de direita das mais variadas características (o que certamente constitui um erro), mas de observar a plasticidade com se adequa às condições concretas em que atua para potencializar sua ação.

O integralismo historicamente expressou a ameaça fascista no Brasil. Em seu ápice eleitoral, em 1955, a candidatura presidencial de Plínio Salgado obteve 8% dos votos no país (tendo sido o mais votado em Curitiba). Hoje o candidato fascista, apoiado por neointegralistas, neonazistas e saudosistas da ditadura, aparece com uma intenção de votos três vezes superior. Anticomunismo, neoliberalismo, instrumentalização da religião, machismo e truculência são elementos em comum que estabelecem um processo de continuidade. Mais do que nunca, a ameaça fascista é concreta. É necessário derrotar o fascismo, imediatamente no processo eleitoral, e na sequência em sua dimensão social.

Elenão!

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Notas

[1] Para maiores informações sobre von Mises e a Escola Austríaca, ver o primeiro capítulo de DAL PAI, Raphael. Instituto von Mises Brasil: arautos do anarcocapitalismo. Dissertação de Mestrado em História. Marechal Cândido Rondon: Unioeste, 2017, 228 p. Disponível em http://tede.unioeste.br/bitstream/tede/3160/5/Raphael_%20Dal_Pai_2017
[2] A Universidade de Chicago é o maior centro de difusão do neoliberalismo e de formação de economistas a ele associados, conhecidos como “Chicago Boys”.
[3] Uma leitura bastante informativa a respeito é o texto de Luan Toja, “Liberalismo e nazifascismo possuem mais afinidades do que você imagina”, disponível em. https://voyager1.net/historia/pare-de-achar-que-liberalismo-e-fascismo-sao-opostos/
[4] A despeito de algumas posições em contrário, a grande maioria dos historiadores reconhece o caráter fascista do integralismo brasileiro. Para uma discussão detalhada desta qualificação, ver o segundo capítulo de CALIL, Gilberto. O integralismo no processo político brasileiro – o PRP entre 1945 e 1965: cães de guarda da ordem burguesa. Tese de Doutoramento em História. Niterói; UFF, 2005, 819p. Disponível em https://marxismo21.org/wp-content/uploads/2012/08/G-Calil-tese-doutorado.pdf
[5] CALIL, Gilberto. “Os integralistas frente ao Estado Novo: euforia, decepção e subordinação. Locus, Juiz de Fora. V. 16, n. 1, 2010, p. 65-86. Disponível em https://locus.ufjf.emnuvens.com.br/locus/article/view/979/831
[6] CALIL, Gilberto. Integralismo e hegemonia burguesa. Cascavel: Edunioeste, 2010, 402p.
[7] CALIL, Gilberto. “Os integralistas e o Golpe de 1964”, História e Luta de Classes, Rio de Janeiro, n. 1, abril 2005, p. 55-76. Disponível em http://dev.historiaelutadeclasses.com.br/upload/arquivo/2017/11/fb29e19ca9c1145d914795a8427d76dd69dda268
[8] Ver a respeito REIS, Natalia. “A ideologia do Sigma hoje: neo-integralismo, intolerância e memória. História: Questões & Debates, Curitiba, 2007, n. 46, p. 113-138 (disponível em https://revistas.ufpr.br/historia/article/viewFile/11328/7893); CALDEIRA NETO, Odilom. “Frente Nacionalista, neofascismo e ‘novas direitas’ no Brasil. Faces de Clio, Porto Alegre, v 2, n. 4, jul. 2016, p. 20-36 (disponível em http://www.ufjf.br/facesdeclio/files/2014/09/4.Artigo-D2.-Odilon.pdf); e BARBOSA, Jefferson Rodrigues. BARBOSA, Jefferson Rodrigues. Chauvinismo e extrema direita: crítica aos herdeiros do sigma. São Paulo: Editora da UNESP Digital, 2015 (disponível em http://dx.doi.org/10.4025/dialogos.v20i3.33360)
[9] O candidato do PRTB ao governo de São Paulo, Rodrigo Tavares, respondeu o apoio da FIB com a saudação integralista “Anauê”. https://www.facebook.com/mauricioorestes.parisi/videos/10213037781600745/?hc_location=ufi
[10] Entrevista concedida por Plínio Salgado a O Jornal, Rio de Janeiro, fev. 1959
[11] SALGADO, Plínio. Doutrinas econômicas. A Marcha, Rio de Janeiro, 19.6.1953, p. 3.
[12] SALGADO, Plínio. Trigésimo aniversário da Ação Integralista Brasileira e atualidade de seus princípios, 6.4.1962. In: Discursos Parlamentares. Brasília: Câmara dos Deputados, 1982, p. 466-485, p. 472.
[13] Empresas estatais. Original Datilografado, s./d. Arquivo Público e Histórico de Rio Claro – Fundo Plínio Salgado, 006.005.009. Trata-se, provavelmente, do registro de resposta a uma entrevista.
[14] SALGADO, Trigésimo aniversário…, op. cit. Grifo meu.
[15] SALGADO, Plínio. Necessidade de modificação na estrutura político-administrativa do Estado brasileiro, 10.10.1959. In: Discursos parlamentares, op. cit., p. 128-140.
[16] Discutimos esta construção argumentativa em “A defesa de uma ‘democracia’ autoritária e restrita”. In: CALIL, O Integralismo no processo político brasileiro…, op. cit., p. 701-717.
[17] Panfleto anexo à Circular Eleitoral do PRP-SP, setembro de 1954 (Arquivo Público e Histórico de Rio Claro, Fundo Plínio Salgado, Pprp 00.09.54). Grifos meus.
[18] Manifesto aos Membros do II Congresso Sindical do Estado de Minas Gerais, s./d. (1960) (Arquivo Público e Histórico de Rio Claro, Fundo Plínio Salgado, 014.007.012).
[19] O Pensamento do PRP sobre café e câmbio. A Marcha, Rio de Janeiro 3.7.1959, p. 4.

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sábado, 8 de setembro de 2018

Por que os marxistas se opõem ao terrorismo individual


por Leon Trotsky
Der Kampf/1911

Nossos inimigos de classe têm o costume de queixar-se de nosso terrorismo. Eles gostariam de por o rótulo de terrorismo a todas as ações do proletariado dirigidas contra os interesses do inimigo de classe. Para eles, o método principal de terrorismo é a greve. A ameaça de uma greve, a organização de piquetes de greve, o boicote econômico a um patrão super explorador, o boicote moral a um traidor de nossas próprias filas: tudo isso e muito mais é qualificado de terrorismo. Se por terrorismo se entende qualquer coisa que atemorize o prejudique o inimigo, então a luta de classes não é outra coisa senão terrorismo. E o único que resta considerar é se os políticos burgueses têm o direito de proclamar sua indignação moral acerca do terrorismo proletário, quando todo seu aparato estatal, com suas leis, polícia e exército não é senão um instrumento do terror capitalista.

No entanto, devemos assinalar que quando nos jogam na cara o terrorismo, tratam, ainda que nem sempre de forma consciente, de dar-lhe a esta palavra uma sentido mais estrito, menos indireto. Por exemplo, a destruição das máquinas por parte dos trabalhadores é terrorismo neste sentido estrito do termo. A morte de um patrão, a ameaça de incendiar uma fábrica ou matar o seu dono, o atentado a mão armada contra um ministro: todos estes são atos terroristas no sentido estrito do termo. Não obstante, qualquer um que conheça a verdadeira natureza da social-democracia internacional deve saber que ela tem se colocado em oposição da maneira mais irreconciliável a esta classe de terrorismo.

Por que? O “terror” mediante a ameaça ou a ação grevista é patrimônio dos operários industriais ou agrícolas. O significado social de uma greve depende, em primeiro lugar, do tamanho da empresa ou ramo da indústria afetada; em segundo lugar, do grau de organização, disciplina e disposição para a ação dos operários que participam. Isto é certo tanto em uma greve econômica ou política. Segue sendo o método de luta que surge diretamente do lugar que na sociedade moderna ocupa o proletariado no processo de produção.

Para desenvolver-se, o sistema capitalista requer uma superestrutura parlamentar. Porém ao não poder confinar o proletariado em um gueto político, deve permitir cedo ou tarde, sua participação no parlamento. Nas eleições se expressa o caráter de massa do proletariado e seu nível de desenvolvimento político, qualidades determinadas por seu papel social, sobretudo por seu papel na produção.

Do mesmo modo que numa greve, nas eleições o método, objetivos e resultado da luta dependem do papel social e da força do proletariado como classe. Somente os operários podem fazer greve. Os artesãos arruinados pela fábrica, os camponeses cuja água envenena a fábrica, os lumpen-proletários em busca de um bom botim, podem destruir as máquinas, incendiar a fábrica ou assassinar o dono.

Somente a classe operária consciente e organizada pode enviar uma forte representação ao parlamento para cuidar dos interesses proletários. No entanto, para assassinar a um funcionário do governo não é necessário contar com as massas organizadas. A receita para fabricar explosivos é acessível a todo o mundo, e qualquer um pode conseguir uma pistola.

No primeiro caso, há uma luta social, cujos métodos e vias se desprendem da natureza da ordem social imperante; no segundo, uma reação puramente mecânica que é idêntica em todo o mundo, desde a China até a França: assassinatos, explosões, etc., porém totalmente inócua em relação ao sistema social.

Uma greve, inclusive uma modesta, tem consequências sociais: fortalecimento da autoconfiança dos operários, crescimento do sindicato, e, com não pouca frequência, uma melhora na tecnologia produtiva. O assassinato do dono da fábrica provoca apenas efeitos policiais, ou uma troca de proprietário desprovida de toda significação social.

Para que um atentado terrorista, mesmo um que obtenha “êxito”, crie confusão na classe dominante, depende da situação política concreta. Seja como for, a confusão terá vida curta; o estado capitalista não se baseia em ministros de estado e não é eliminado com o desaparecimento deles. As classes a que servem sempre encontrarão pessoas para substituí-los; o mecanismo permanece intacto e em funcionamento.

Todavia, a desordem que produz um atentado terrorista nas filas da classe operária é muito mais profunda. Se para alcançar os objetivos basta armar-se com uma pistola, para que serve esforçar-se na luta de classes? Se um pouco de pólvora e um pedaço de chumbo bastam para perfurar a cabeça de um inimigo, que necessidade há de organizar a classe? Se tem sentido aterrorizar os altos funcionários com o ruído das explosões, que necessidade há de um partido? Para que fazer passeatas, agitação de massas, eleições, se é tão fácil alvejar um ministro desde a galeria do parlamento?

Para nós o terror individual é inadmissível precisamente porque apequena o papel das massas em sua própria consciência, as faz aceitar sua impotência e volta seus olhos e esperanças para o grande vingador e libertador que algum dia virá cumprir sua missão.

Os profetas anarquistas da “propaganda pelos fatos” podem falar até pelos cotovelos sobre a influência estimulante que exercem os atos terroristas sobre as massas. As considerações teóricas e a experiência política demonstram o contrário. Quanto mais “efetivos” forem os atos terroristas, quanto maior for seu impacto, quanto mais se concentra a atenção das massas sobre eles, mais se reduz o interesse das massas por eles , mais se reduz o interesse das massas em organizar-se e educar-se.

Porém a fumaça da explosão se dissipa, o pânico desaparece, um sucessor ocupa o lugar do ministro assassinado, a vida volta à sua velha rotina, a roda da exploração capitalista gira como antes: só a repressão policial se torna mais selvagem e aberta. O resultado é que o lugar das esperanças renovadas e da excitação artificialmente provocada vem a ser ocupado pela desilusão e a apatia.

Os esforços da reação para por fim às greves e ao movimento operário de massas tem culminado, geralmente, sempre e em todas as partes, no fracasso. A sociedade capitalista necessita um proletariado ativo, móvel e inteligente; não pode, portanto, ter o proletariado com os pés e mão atados por muito tempo. Por outro lado, a “propaganda pelos fatos” dos anarquistas tem demonstrado cada vez mais que o estado é muito mais rico em meios de destruição física e repressão mecânica que todos os grupos terroristas juntos.

Se assim é, o que acontece com a revolução? Fica negada ou impossibilitada? De maneira nenhuma. A revolução não é uma simples soma de meios mecânicos. A revolução somente pode surgir da intensificação da luta de classes, sua vitória e garantida somente pela função social do proletariado. A greve política de massas, a insurreição armada, a conquista do poder estatal; tudo está determinado pelo grau de desenvolvimento da produção, a alienação das forças de classe, o peso social do proletariado e, por último, pela composição social do exército, posto que são as forças armadas o fator que decide o problema do poder no momento da revolução.

A social-democracia é bastante realista para não desconhecer a revolução que está surgindo das circunstâncias históricas atuais; pelo contrário, vai ao encontro da revolução com os olhos bem abertos. Porém, diferentemente dos anarquistas e em luta aberta com eles, a social-democracia rechaça todos os métodos e meios cujo objetivo seja forçar o desenvolvimento da sociedade artificialmente e substituir a insuficiente força revolucionária do proletariado com preparações químicas.

Antes de elevar-se à categoria de método para a luta política, o terrorismo faz sua aparição sob a forma de ato individual de vingança. Assim foi na Rússia, pátria do terrorismo. O açoitamento dos presos políticos levaram Vera Zasulich a expressar o sentimento de indignação geral com um atentado contra o general Trepov. Seu exemplo repercutiu entre a intelectualidade revolucionária, desprovidas do apoio das massas. O que começou como um ato de vingança perpetrado em forma inconsciente foi elevado a todo um sistema em 1879-1881. As ondas de atentados anarquistas na Europa Ocidental e América do Norte sempre se produzem depois de alguma atrocidade cometida pelo governo: fuzilamentos de grevistas ou execuções de opositores políticos. A fonte psicológica mais importante do terrorismo é sempre o sentimento de vingança que busca uma válvula de escape.

Não há necessidade de insistir que a social-democracia nada tem a ver com esses moralistas a soldo, que, em resposta a qualquer ato terrorista, falam somente do “valor absoluto” da vida humana. São os mesmos que em outras ocasiões, em nome de outros valores absolutos, por exemplo, a honra nacional ou o prestígio do monarca estão dispostos a levar milhões de pessoas ao inferno da guerra. Hoje, seu herói nacional é o ministro que dá a ordem de abrir fogo contra os operários desarmados, em nome do sagrado direito à propriedade privada; amanhã, quando a mão desesperada do operário desempregado cerre o punho ou se apodere de uma arma, falarão sandices sobre o inadmissível que é a violência em qualquer de suas formas.

Digam o que digam os eunucos e fariseus morais, o sentimento de vingança tem seus direitos. Fala muito bem a favor da moral da classe operária a não contemplação indiferente do que ocorre neste, o melhor dos mundos possíveis. Não extinguir o insatisfeito desejo proletário de vingança, mas, pelo contrário, avivá-lo uma e outra vez, aprofundá-lo, dirigi-lo contra a verdadeira causa da injustiça e a baixeza humanas: essa é a tarefa da social-democracia.

Nos opomos aos atentados terroristas porque a vingança individual não nos satisfaz. A conta que nos deve pagar o sistema capitalista é demasiado elevada para ser apresentada a um funcionário chamado ministro. Aprender a considerar os crimes contra a humanidade, todas as humilhações a que se veem submetidos o corpo e o espírito humanos como excrescências e expressões do sistema social imperante, para empenhar todas nossas energias em uma luta coletiva contra este sistema: essa é a causa na qual o ardente desejo de vingança pode encontrar sua maior satisfação moral.

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[0] Via MIA.
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domingo, 26 de agosto de 2018

A teoria crítica de Herbert Marcuse e o engajamento: os percalços na articulação teórica e prática



Resumo: A presente pesquisa tem o objetivo de analisar a perspectiva específica de engajamento que nasce da teoria crítica de Herbert Marcuse. O filósofo desenvolve uma concepção de dialética e de revolução, partindo de um viés marxista, com desdobramentos teóricos importantes sobre os caminhos emancipatórios para a transformação social. A emancipação, em sua imbricada relação com o conhecimento, foi configurada por Marx de uma maneira superadora em relação ao programa moderno do iluminismo, originando um sentido particular de crítica pautada na noção de práxis. Esta perspectiva é fulcral para a elaboração deste trabalho na medida em que nos orienta para uma nova compreensão de teoria que se vincula ao engajamento. Dentro deste trilho, o pensamento de Marcuse tem sua contribuição justificada ao pautar o estreito laço entre filosofia e política, teoria e prática, auxiliando-nos na difícil compreensão da dialética presente na categoria de práxis. Dessa forma, o exame da questão do engajamento em Marcuse nos permite avaliar dois aspectos principais. Primeiramente, sua interpretação específica de Marx, permitindo-nos melhor situar seu pensamento tanto na tradição marxista, como na história da filosofia. O outro aspecto é que o percurso de análise aqui traçado - ao caracterizar traços fundamentais sobre a relação entre engajamento e história por um ponto de vista marxista -, abre espaço para um enfoque particular acerca da teoria crítica de Marcuse, permitindo um balanço crítico de sua teoria no que tange aos desdobramentos práticos que surgem de sua reflexão crítica específica.

Palavras-chave: Herbert Marcuse. Engajamento. Karl Marx. Práxis. Teoria Crítica.

Abstract: This current research aims to analyze the specific perspective of engagement born from the critical theory of Herbert Marcuse. The philosopher develops a conception of dialectic and revolution, from a Marxist view, with important theoretical developments on the emancipation paths towards social transformation. The emancipation, in their intertwined relationship with knowledge, was configured by Marx which a surpassing way compared to modern program of the Enlightenment, giving a particular sense of criticism guided by the notion of praxis. This perspective is central to the development of this work in that it guides us to a new understanding of theory that links to the engagement. Within this track, the thinking of Marcuse has its contribution justified to abide the close link between philosophy and politics, theory and practice, helping us in the difficult understanding of dialectic present in the category of praxis. Thus, examining the issue of engagement in Marcuse allows us to evaluate two main aspects. First, your particular interpretation of Marx, allowing us to better situate your thinking as in the Marxist tradition as in the history of philosophy. The other aspect is that the route of analysis outlined here - to characterize key features of the relationship between engagement and history for a Marxist point of view - makes room for a particular focus approach about Marcuse's critical theory, allowing a critical assessment of your theory regarding the practical consequences that arise from your specific critical reflection.

Keywords: Herbert Marcuse. Engagement. Karl Marx. Praxis. Critical Theory.
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Arquivo em PDF
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GOMBI, Vivian Batista. A teoria crítica de Herbert Marcuse e o engajamento: os percalços na articulação teórica e prática. Orientador: Robespierre de Oliveira. Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Filosofia, UEM, Maringá, 2014, 179 f.
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domingo, 19 de agosto de 2018

Edmund Burke e a gênese do conservadorismo


por Jamerson Murillo Anunciação de Souza
ensaio em PDF

Introdução

O conservadorismo tem sido a tônica da política brasileira nos últimos anos. Nas instituições produtoras de conhecimento, esse tema tem ocupado espaço crescente. A razão disso é o significado social que o pensamento e a práxis conservadoras representam. Em um país de inserção periférica, dependente e heterônoma no circuito da divisão internacional do trabalho, como o Brasil, as ideologias conservadoras em geral, e o conservadorismo em particular, tendem a ressoar e a repercutir com intensidade sobre a cultura, a economia e a política.

No âmbito do debate estritamente político, o conservadorismo geralmente é associado às variadas posições contrárias aos avanços das pautas da esquerda. É implicado como conservador o indivíduo ou grupo político contrário, por exemplo, à luta pela universalização dos direitos e às demandas pela radicalização da democracia. Tal posição costuma estar associada, também, à adesão à ideologia do mercado, que envolve desde a defesa da mercantilização cada vez maior da vida social, até a agenda de combate ao avanço dos direitos humanos. Nas instituições de produção de conhecimento, por outro lado, o conservadorismo é, na maior parte das vezes, tomado genericamente. O conteúdo político, teórico e social dessa corrente de pensamento e ação com frequência aparece fundido ao pensamento liberal. Liberalismo e conservadorismo são tomados, corriqueiramente, como sinônimos.

Mas, tal como o liberalismo, entre outras tradições de pensamento fundadas pela modernidade, o conservadorismo tem uma trajetória histórica e uma proposta teórico-política próprias. Em equivalência, o conservadorismo adquire variados aspectos e características particulares de acordo com a formação social em que emerge. Originária da Europa e, mais particularmente, da Inglaterra do século XVIII, essa tradição influenciou intelectuais, políticos e classes sociais, de maneiras distintas na França, na Alemanha, nos Estados Unidos e também em países da América Latina.

No caso do Brasil, em consonância com o clima político instalado em quase todas as instituições da sua frágil democracia burguesa, observa-se, em anos recentes, o crescimento expressivo da publicação de obras e autores de repercussão nacional e internacional, ligados organicamente ao conservadorismo formulado por Edmund Burke. Autores como Russell Kirk, Michael Oakeshott, Roger Scruton, entre outros de expressão internacional, passam a tomar espaço significativo no mercado editorial brasileiro. Ao lado deles, um conjunto de divulgadores brasileiros do liberalismo, comumente inspirados pelas ideias elaboradas pelo Instituto Ludwig von Mises, passaram a defender, também, algumas ideias do conservadorismo. Tudo isso ocorrendo em paralelo à assim chamada “escalada conservadora”, que ganha densidade na cultura e na política institucional.

A matriz ideológica do conservadorismo é, reconhecidamente, o pensamento de Edmund Burke. Deste autor, e da tradição fundada por ele, provém boa parte das ideias que conferem conteúdo às várias expressões do conservadorismo no cotidiano. Sua influência se faz sentir, na contemporaneidade, em autores conservadores, citados acima, nas posições políticas de vários sujeitos políticos e no discurso cotidiano dos indivíduos, grupos e classes.

Neste texto, procuramos oferecer uma contribuição delimitada ao de- bate, que consiste em recuperar o conteúdo das ideias políticas e das análises de Burke sobre o processo revolucionário na França. Essa recuperação, na medida em que sublinha algumas ideias centrais do conservadorismo, pode fornecer alguns elementos para encetar uma abordagem mais acurada sobre as expressões do conservadorismo na atual configuração da sociedade de classes capitalista. Para tanto, realizamos uma revisão bibliográfica com o escopo de reconstruir a estrutura originária dessa tradição de pensamento e ação, que se organiza, outrora como hoje, como contrarrevolucionária e antirrevolucionária.

Edmund Burke e a crítica à revolução

Há relativo consenso, no debate sobre o pensamento social e político fundado na modernidade, quanto às Reflexões sobre a revolução na França (2014), de Edmund Burke, constituírem-se como ponto de partida do conservadorismo clássico. Manifesto dos interesses políticos e econômicos aristocráticos, as Reflexões se estabelecem como o marco da tradição conservadora. Nelas, estão condensados também os ideais culturais e simbólicos das classes sociais golpeadas pela Revolução Francesa, com destaque para a aristocracia feudal.

O texto foi publicado 1790, imediatamente após o desencadeamento do processo revolucionário jacobino, sendo traduzido e disseminado rapidamente em francês, alemão, italiano e espanhol. Foi bem recebido pelos setores intelectuais ligados e organizados em torno da reação antirrevolucionária, e objeto de crítica dos revolucionários, dos moderados aos radicais.

Estudiosos que procuram criticar a obra de Edmund Burke assinalam, comumente, o tom panfletário, irracional,[1] irascível e pouco profundo do autor. Quanto aos analistas mais simpáticos ao fundador do conservadorismo, pactuam que em Burke há, pelo menos, um ensaio de interpretação histórica sobre a revolução de 1789. Marx, em contraste com ambas as tendências, não poupou críticas duras nas poucas ocasiões em que se referiu a Edmund Burke. O conteúdo dessas críticas expressa claro desprezo.[2]

O que é central e motiva uma recuperação da principal obra de Burke é sua concepção de revolução, que é distinta daquela consagrada pelas várias correntes progressistas existentes no período pré e pós-1789. Para Burke, a revolução não significa a transformação radical de uma sociedade, momento fundador de uma nova sociabilidade e, por isso, crivado por contradições, tensões, mas também por elementos e valores emancipatórios. Para o irlandês radicado na Inglaterra, esse tipo insurrecional de revolução é tomado, de maneira unilateral, como momento de decadência e degradação, no qual a ordem estabelecida é destruída e as tradições, rebaixadas.

Portanto, a imagem de que a revolução insurrecional seria um processo substanciado por um fanatismo laico e dogmático, inimigo da pacífica continuidade e das mudanças contingentes da sociedade, teria sua origem nas Reflexões. Essa ideia se estende aos dias atuais e é basilar para a concepção conservadora de mundo. O conservadorismo, tanto clássico, quanto contemporâneo, renuncia aos modernos ideais de democracia e justiça social,[3] tomando-os como niveladores sociais. Ou seja, utópicos desejos meramente subjetivos de igualdade. Tais utopias seriam inaceitáveis sob o ponto de vista conservador, uma vez que a desigualdade social seria natural e positivamente constituída. Edmund Burke (2014, p. 70) afirma que

aqueles que tentam nivelar nunca igualam. Em todas as sociedades, consistindo em várias categorias de cidadãos, é preciso que alguma delas predomine. Os niveladores, portanto, somente alteram e pervertem a ordem natural das coisas, sobrecarregando o edifício social ao suspender o que a solidez da estrutura requer seja posto no chão.

O autor das Reflexões, protestante e fundador do conservadorismo, foi um parlamentar britânico conhecido por sua defesa de uma monarquia constitucional, em consonância com o partido de inclinações liberais do qual fazia parte, o Whigs. A “Revolução Gloriosa” inglesa, uma revolução “pelo alto”, passou a cumprir um papel icônico na batalha ideológica de Edmund Burke contra qualquer pretensão revolucionária que se aproxime em métodos, discursos ou estratégias jacobinas. “A simples ideia de criar um novo governo é suficiente para encher-nos de repulsa e horror” (2014, p. 53), afirma ele. Sua concepção de civilização era adepta dos ideais da cavalaria[4] e da nobreza britânica, que, segundo ele, foram responsáveis pelos avanços culturais e socioeconômicos da Europa.

Os acontecimentos de 1789 foram, na sua visão, um atentado ao mais elevado patamar civilizacional que a humanidade já havia alcançado: as instituições e tradições do antigo regime. A diferença entre a “Revolução Gloriosa” (1688) na Inglaterra e a Revolução Francesa (1789) é significativa. A primeira, modelo “revolucionário” ideal de Burke, caracterizou-se por uma transição “sem sangue”, via conciliação de interesses. O novo regime monárquico, parlamentar e constitucional, depôs Jaime II e entronizou o holandês Guilherme III, que aderiu ao novo pacto de poder, regido pela Declaração de Direitos, no qual uma parcela em ascensão da burguesia adquiriu reconhecimento e prestígio naquele país. Isso garantiu a continuidade, ao menos formalmente, à institucionalidade política já estabelecida. Foi uma “revolução sem revolução”, uma mudança conduzida “pelo alto”, sem a presença das classes dominadas. A revolução na França, em contraste, haveria realizado uma ruptura abrupta, desnecessária (“fútil”) e violenta com as heranças da tradição.[5] A partir de interesses acusados de serem particularistas, a sociedade francesa teria sido violentada e devastada por revolucionários inconsequentes. Escreve ele:

Leis viradas de cabeça para baixo; tribunais subvertidos; indústria sem vigor; comércio agonizante; impostos sonegados e, ainda assim, o povo empobrecido; uma Igreja saqueada sem o que o Estado obtivesse alívio com isso; anarquia civil e militar transformada em constituição do reino; tudo que era humano e divino sacrificado [...]. Eram necessários todos esses horrores [...] roubos, violações, assassinatos, massacres, incêndios por toda a extensão de sua terra devastada. (Burke, 2014, p. 60-61)

Com esse tom de denúncia e alarme, o conservador tenta convencer seus leitores de que uma revolução insurrecional como essa significa, por si mesma, desordem e destruição. Quanto aos revolucionários, não passariam de agitadores dogmáticos, desprovidos da clarividência da prudência e do respeito às tradições herdadas de um passado remoto. Esse diagnóstico da revolução e dos revolucionários, feito no imediato pós-1789, aparece com tons muitos semelhantes nos conservadores dos séculos XX e XXI.[6] Dessa feita, evidentemente, o alvo das críticas são as correntes anticapitalistas e, particularmente, o movimento comunista. Para Burke, não seria esse o papel de uma revolução. “A Revolução foi feita para preservar nossas antigas e indiscutíveis leis, liberdades e aquela antiga Constituição de governo, nossa única garantia da lei e da liberdade” (Burke, 2014, p. 52), sugere ele, baseando-se no processo não insurrecional de mudança política da Inglaterra. E acrescenta:

Outras revoluções foram conduzidas por pessoas que, ensaiando ou realizando mudanças no Estado, consagravam sua ambição em acrescentar dignidade ao povo cuja paz perturbavam. Enxergavam à distância. Pretendiam governar, não destruir o país. (2014, p. 68)

O objetivo de Burke era preservar as instituições políticas britânicas, que lidavam, na época, com os estágios iniciais do processo de subordinação do trabalho ao capital: a organização do trabalho nos regimes de cooperação e manufatura e as formas seminais das lutas proletárias. Para tanto, uma de suas táticas foi a “batalha das ideias”. Nas Reflexões, o autor faz a crítica aos valores, ideais e princípios que orientaram a Revolução Francesa — aqueles construídos pelo Iluminismo. Eles são pejorativamente apresentados como meras “abstrações”, destituídas de significado objetivo. É assim que as concepções de igualdade, direitos do homem, razão, antropocentrismo, liberdade individual, soberania popular, são identificadas como ideias perigosas à ordem estabelecida, corrosivas de toda a herança cultural e patrimonial das tradições europeias. Sua posição monarquista evidenciava suas escolhas antirrepublicanas e antidemocráticas.[7]

Essa negação das “abstrações”, em favor de um empirismo acentuado,[8] é outro princípio que o conservadorismo produzido a partir da segunda metade do século XX herda, incorpora e amplifica. Para uma estudiosa de seu pensamento, nas Reflexões:
 
[...] Burke exalta as virtudes da Constituição inglesa, repositório do espírito da continuidade, da sabedoria tradicional, da prescrição, da aceitação de uma hierarquia social e da propriedade, e da consagração religiosa da autoridade secular. É particularmente nesta obra que se encontram expostos de forma mais clara os fundamentos e traços conservadores do pensamento de Burke. (Kinzo, in Weffort, 2006, p. 19)

O irracionalismo é outra marca distintiva do pensador da contrarrevolução.[9] Ao identificar a racionalidade e o fazer teórico com a formulação desacreditada de princípios abstratos apriorísticos, descolados das “circunstâncias”[10] mais imediatas, Burke adere à “destruição da razão” (Lukács, 1972). Com essa operação reificada, o conservantista elabora mais um pilar duradouro do conservadorismo: a negação da razão e a entronização de uma concepção pragmática, imediatista, de ação e pensamento. A ciência, entificada, para ele, deveria ter “ficado satisfeita em continuar como instrutora e não aspirasse a ser senhora [...] pois agora [...] a ciência será atirada ao lodo e pisoteada pelos cascos de uma suína multidão” (2014, p. 98).

Mas isso não é tudo. O autor das Reflexões adere a uma concepção teleológica da causalidade, interditando a categoria da alternativa para o ser social. Abraçando o monoteísmo cristão, Burke projeta sobre o ser social suas concepções teológicas, defendendo que o Estado[11] e a sociedade constituem uma ordem natural eterna e divinamente estabelecida — a desigualdade social e a propriedade privada, incluídas. Com essa operação ideológica antropomorfizadora, o fundador do conservadorismo repousa suas ideias sobre o idealismo.

Tal concepção de mundo redunda na naturalização das relações sociais — redundância frequente entre as ideologias conservadoras. A divisão da sociedade em classes e a desigualdade social, portanto, compõem, na visão burkeana, um quadro de hierarquia e ordenamento correspondentes à natureza. Por derivação, tal quadro é interpretado como perene e insuperável. É, pois, um atentado contra a natureza a impostação de um princípio como o da igualdade social. A luta por ela, um atentado contra a ordem divina. Anota ele: “[...] nenhuma designação, poder, função, ou qualquer instituição artificial que seja, é capaz de fazer os homens que compõem algum sistema de autoridade serem algo diferente daquilo que Deus, a natureza, a educação e seus hábitos de vida lhe fizeram” (2014, p. 61).

Apresentando-se como “prudente” analista dos eventos revolucionários na França, tentando com isso se contrapor às mensagens de felicitação que a Sociedade da Revolução inglesa enviara aos representantes da vindoura Primeira República francesa, Burke escreve nas Reflexões (2014, p. 30):

[...] deveria me abster de felicitar a França por sua nova liberdade até que tivesse conhecimento de como esta liberdade se harmoniza com o governo, com o poder público, com a disciplina e a obediência dos exércitos, com o recolhimento e a boa distribuição dos impostos, com a moralidade e a religião, com a solidez da propriedade, com a paz e ordem, com os usos civis e sociais. Todas essas coisas são (à sua maneira) bens, e se vierem a faltar, a liberdade deixa de ser um benefício e tem pouca chance de durar muito tempo.

Entretanto, o que se apresenta, a partir desses termos, são os critérios utilizados pelo autor para avaliar a envergadura das transformações socio-políticas da França. Ou seja: se, e em que medida, essas transformações se ajustam ou destoam da estrutura modelada pelo antigo regime. Burke usa a “Revolução Gloriosa” como exemplo e referência também nesse particular. Referindo-se a ela, ele afirma:

Todas as reformas que fizemos até hoje respeitaram o princípio de referência ao passado; e espero, ou melhor, estou convencido de que todas as que pos- samos realizar no futuro estejam cuidadosamente construídas sobre esse precedente, autoridade e exemplo análogos. (2014, p. 53)

É possível concluir, com base nesses argumentos do autor, que ele anseia por uma “revolução sem revolução”, ou seja, mudanças “pelo alto”, localizadas e específicas, que sirvam para preservar as tradições já estabelecidas e sejam conduzidas por uma distinta parcela da sociedade: os proprietários. Adicionalmente, essas mudanças deveriam ser realizadas com absoluto distanciamento dos componentes insurrecional e popular, o que exclui também os anseios por democracia e a noção de luta por direitos.

Procurando explicações para um evento da envergadura da Revolução Francesa, Burke aponta a Assembleia que convocou os Estados gerais como elemento central para o desencadeamento daquele processo. Justifica sua afirmação apontando que haveria uma representação desproporcional dos interesses da sociedade francesa naquela instituição. O Terceiro Estado, por outro lado, estaria sobrerrepresentado e, por isso, haveria uma tendência prévia à insurreição.

Na visão dele, seria papel da nobreza e dos mais altos signatários das classes dominantes a realização das mudanças políticas na França, não dos setores dominados da sociedade. A Assembleia, todavia, tomada numericamente por pequenos-burgueses (“comerciantes que nunca conheceram nada além de seu escritório” (2014, p. 64), na designação pejorativa de Burke) e membros das classes trabalhadoras [“homens feitos para serem instrumentos e não para exercer um controle” (Idem)], representava, na sua visão, a centelha que deu início aos eventos revolucionários. O resultado de uma composição parlamentar favorável aos interesses populares, para o conservador, não podia ser outro a não ser a desagregação caótica da nação.

A esse quadro que parece sugerir a degradação da Assembleia francesa, Burke opõe o exemplo, que ele considera positivo, da Inglaterra, onde o Parlamento seria composto por “tudo o que o país pode oferecer de mais ilustre posição, descendência, riqueza hereditária ou adquirida, talentos cultivados, distinção militar, civil, naval e política” (2014, p. 64). Isto é, uma instituição que haveria selecionado os melhores quadros da sociedade inglesa e retido a penetração de membros de classes “inferiores”. Disso derivaria, na sua perspectiva, a qualidade superior do Parlamento inglês em relação ao francês, sendo recorrente, nas Reflexões, críticas aos sistemas políticos que cedam espaço de representação às classes dominadas. Burke, avançando sua investigação sobre os possíveis “culpados” pela revolução, ressalta que:

Após ter considerado a composição do Terceiro Estado tal como ele se apresentava na origem, dirigi o olhar para os representantes do clero. Também aqui pareceu haver bem pouca consideração pela segurança geral da propriedade, ou pela aptidão dos deputados para seus propósitos públicos. Essa eleição foi planejada de forma a enviar uma enorme proporção de vigários de aldeia para o grande e árduo trabalho de remodelar o Estado; [...] homens que nada sabiam do mundo para além dos limites de uma aldeia obscura; que, mergulhados em uma irremissível miséria, não podiam considerar a propriedade, fosse secular ou eclesiástica, senão com os olhos da inveja. (2014, p. 66)

Assim, por intermédio das avaliações burkeanas, o tema da suposta “inveja dos ricos pelo pobres”, assim como certo desprezo pelas formas de vida e cultura das classes dominadas, é inserido na pauta de discussão do conservadorismo. Edmund Burke parece derivar, da condição de pobreza originária dos deputados da Assembleia francesa, fossem ou não eclesiásticos, todas as vilanias que ele enxerga sintetizadas na degenerescência daquela instituição. O objeto dessa suposta inveja, a propriedade, precisa, segundo as indicações conservadoras, ser preservada e protegida pelo Estado.

A característica essencial da propriedade, resultante de princípios combinados de sua aquisição e conservação, consiste em ser desigual. Por conseguinte, torna-se necessário protegê-la da possibilidade de qualquer perigo, uma vez que excita a inveja e estimula a rapacidade. (2014, p. 72)

Esse tipo de operação, que rastreia e imputa a “culpa” pela “degradação da sociedade” às características de certos indivíduos, ou classes, ou grupos, com base na sua “origem” ou condição socioeconômica, ou bases ideológicas, visto em perspectiva histórica, é um dos eixos centrais dos regimes fascistas (ou de inclinações fascistas).

Ao adotar essa ideia como critério definidor das dificuldades encontradas por determinada sociedade (e não as contradições decorrentes de uma estrutura de classes que supõe a propriedade privada), a tendência que comumente surge no cenário político é o estabelecimento de perseguições políticas, ideológicas, xenofóbicas e religiosas (pois aqueles que não aderem ao cristianismo também são vistos com desconfiança no contexto do conservadorismo presente nas Reflexões),[12] subsidiadas pelo discurso do “interesse nacional” e em defesa da “limpeza” e do “expurgo” desses elementos “nocivos” à sociedade. Indivíduos ou grupos dissidentes ou discordantes tendem a ser qualificados como “traidores” da “nação”.

Burke, na condição de fundador do conservadorismo, não poupa censuras à ideia dos “direitos do homem”, cara aos jusnaturalistas — fundamentalmente, a Rousseau. Para o defensor dos “direitos hereditários”, os “direitos do homem” constituem um posto avançado para a difusão perigosa de conceitos antinaturais e abstrações infundadas, como igualdade, democracia, direitos inalienáveis e assim por diante. Segundo ele, trata-se de um “imenso arsenal de armas ofensivas, os direitos do homem” (2014, p. 134). Seus defensores, sob a pena de Burke, são descritos como membros de “clubes compostos de uma mescla monstruosa de todas as condições sociais, línguas e nações” (2014, p. 87). Na longa narrativa dedicada ao assassinato de Luís XVI e família, Burke claramente associa o “crime”, o “terror” e o “horror”, junto com a grande sequência de crimes cruéis que aparenta denunciar, às ideias centrais do Iluminismo. O autor das Reflexões não discute outra possível determinação para o processo revolucionário que não seja o cultivo nocivo das ideias iluministas.

Não é possível silenciar sobre o elogio ao “preconceito” que se encontra como eixo das reflexões burkeanas.

[...] em vez de prescindir de nossos velhos preconceitos, nós os cultivamos em um grau muito considerável e, para nossa maior vergonha, nós os cultivamos porque são preconceitos, de modo que quanto mais tenham durado e mais tenham prevalecido, tanto mais os cultivamos. [...] Muitos de nossos filósofos, em vez de desacreditarem os preconceitos gerais, empregam sua sagacidade em descobrir a sabedoria latente que eles encerram. Se encontram o que buscam (e raramente falham), consideram mais sensato continuar com o preconceito, juntamente com razão que o envolve, do que, prescindindo desta capa, deixar a razão nua; porque o preconceito torna a razão ativa; e pela afeição que lhe inspira, confere-lhe permanência. O preconceito é de aplicação imediata em casos de emergência; dispõe previamente a mente a um curso constante de sabedoria e de virtude, não permitindo que o homem, no momento da decisão, fique hesitante, cético, confuso e indeciso. (Burke, 2014, p. 106)

Ainda que seja feita a ressalva quanto ao sentido empregado pelo conservadorismo aos “preconceitos” — segundo o qual estes últimos consistiriam em um referencial estabelecido pelo acúmulo das experiências[13] — ao fundamentar as escolhas, ações e pensamentos em “preconceitos”, o conservadorismo abole qualquer perspectiva de debate racional sobre a formação social e econômica de determinada sociedade. Além disso, passa a enquadrar indivíduos e grupos em padrões previamente estabelecidos. As exceções, por derivação, tendem a ser encaradas como “desvios”, “anomias”, “doenças”, como “casos” a serem reconduzidos ou reprimidos, posto que representam “ameaças”.

Com alguma variação (relativa mais à forma de exposição que ao conteúdo em si mesmo), esse princípio dos “preconceitos” como fonte de orientação ideal e de conduta moral é abraçado pelos conservadores da atualidade — muito embora ele apareça, nos contemporâneos, atenuado, quando comparado à formulação do fundador do conservadorismo clássico.[14] Mais tarde, a sociologia de Émile Durkheim se baseará nesse tipo de critério para definir o “normal” e o “patológico” no “organismo social”. Não obstante a maior sofisticação do pensamento durkheiminano — em relação ao burkeano —, o sistema de conceitos do primeiro funcionalista redunda em um levantamento das causas e consequências dos comportamentos e condutas desviantes, assim como os possíveis “remédios”[15] a serem empregados a fim de recuperar a condição de “harmonia” conferida pelo avanço da “solidariedade orgânica”.

Conclusão

Seria um erro subestimar a influência política e a importância de Edmund Burke na base da formação do pensamento conservador e do conservadorismo como vertente política. Domenico Losurdo,[16] atento às nuances adquiridas pelo conservadorismo na Europa, destaca sua penetração na “atrasada” Alemanha da época, mas também a tendência à ampliação internacional de sua influência:

É inegável a grande influência de Burke sobre o conservadorismo alemão durante toda a sua evolução, até o século XIX. [...] Edmund Burke fornece o primeiro modelo de crítica à revolução, assesta as armas e o arsenal teórico que depois será utilizado também em outros países durante a luta também contra as revoluções posteriores. (2014, p. 373; grifos nossos)

As Reflexões, nesse sentido, não apresentam apenas a síntese dos interesses contrarrevolucionários de uma aristocracia golpeada. Constituem-se também em um manual antirrevolucionário, na medida em que constrói um quadro de referência ideológica e política elaborado como antítese da revolução insurrecional, aquela que funda uma nova sociabilidade por intermédio do “assalto ao céu”. Em seu lugar, prescreve um ideal e uma prática “revolucionária” de mudanças políticas e econômicas “pelo alto”, conduzidas pelos setores mais elevados das classes dominantes. Edmund Burke não aprova alianças ou coalizões com classes sociais emergentes em função de serem destituídas de tradições, heranças e ideais de nobreza e cavalheirismo, tais como, à época, a nascente burguesia industrial e também a mercantil. Tais classes, excessivamente ligadas ao enriquecimento privado, na visão do autor, seriam desprovidas de uma visão mais geral de ordem pública, típica dos nobres feudais. Essa posição será, depois, revista pelos demais conservadores.

Com isso, Burke insere uma ideia cara e central ao conservadorismo: aquela segundo a qual a política deve ser feita por proprietários, pois estes seriam sujeitos “naturalmente” propensos à preservação da ordem e à manutenção da sociedade vigente. Nesse sentido, Burke funda uma matriz de pensamento que se tornará ampla e multifacetária com o passar do tempo, mas articulada em seus fundamentos ao conjunto de proposições e análises expostos nas Reflexões. Mais tarde, a partir de 1848, o pensamento liberal constituirá um dos pilares de sustentação do conservadorismo, significando uma mudança importante no seu eixo. Isto é, de pensamento antiburguês, passa a se constituir como mais uma ideologia conservadora típica da sociedade capitalista. Losurdo registra essa tendência: “É toda a burguesia europeia que, depois de 1848, em função antijacobina e antiproletária, exalta, transfigurando-a, a tradição política inglesa” (2014, p. 389).

O caráter assistemático das Reflexões — que dispensa o uso de categorias de análise, conceitos racionais e afasta a própria razão ao identificá-la como fonte de tirania e fonte de erros — fundou também a forma característica de construção do discurso conservador. A maioria dos conservadores da contemporaneidade tende, outra vez, a elevar as “paixões”, os “sentimentos”, as “intuições”, ao patamar de fonte verdadeira de conhecimentos, posto que são provenientes “das verdades profundas da alma humana” e, por isso, seriam mais “puras” que as conclusões eivadas pelo crivo “artificial” da razão e do método científico. Esse afastamento e essa “destruição da razão” (Lukács, 1972), tal como concebida pela modernidade, permitem situar Edmund Burke como um dos pioneiros do irracionalismo.

O conservadorismo burkeano se particulariza, assim, no espectro mais amplo das ideologias conservadoras, como uma coletânea quixotesca de princípios aristocráticos, empunhados não apenas contra a revolução insurrecional, mas também contra quaisquer ideias progressistas oriundos da modernidade. Nessa medida, o autor das Reflexões parece incorporar a “hipocondria da antipolítica”, designação crítica que Domenico Losurdo recolhe de Hegel para qualificar “uma visão de mundo, que torna difícil ou impossível a participação ativa e consciente na vida política” (2014, p. 9). Isto é, determinada matriz de pensamento e ação que se afasta, abstrai e mistifica as relações sociais estabelecidas pelo modo de produção capitalista, procurando substituir a realidade objetiva por abstrações moralizantes.

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Notas
[1] Para ilustrar sua forma peculiar de argumentação, basta reproduzir uma passagem escolhida entre outras possíveis: “Mediante um apolítica constitucional que opera segundo o padrão na natureza, recebemos, conservamos e transmitimos nossas propriedades e nossas vidas. Recebemos e legamos aos outros as instituições políticas no mesmo rumo e ordem que os bens da fortuna e as dádivas da Providência. Nosso sistema político encontra-se em justa correspondência e simetria com a ordem do mundo, e com o modo de existência decretado para um corpo permanente composto de peças transitórias, no qual, por meio da disposição de uma estupenda sabedoria que molda a grande e misteriosa encarnação da espécie humana [...]” (2014, p. 55-56).
[2] Em O capital, no capítulo XI, Marx atribui os adjetivos de “sofista e sicofanta” (1985a, p. 257) a Edmund Burke. No capítulo XXIV, o filósofo alemão reitera seu conceito e acrescenta: “Edmund Burke [...]. Esse sicofanta, que a soldo da oligarquia inglesa bancou o romântico em face da Revolução Francesa, do mesmo modo que, a soldo das colônias norte-americanas, bancara no início dos motins americanos o liberal diante da oligarquia inglesa, era sob todos os aspectos um burguês ordinário: ‘As leis do comércio são as leis da Natureza e consequentemente as leis de Deus’. [...] Não é de admirar que ele, fiel às leis de Deus e da Natureza, vendeu sempre a si mesmo no melhor mercado! [...] Em face da infame falta de caráter, que predomina hoje, e da crença mais devota nas “leis do comércio”, é dever estigmatizar, sempre de novo, os Burkes, que se diferenciam de seus sucessores apenas por uma coisa: Talento!” (1985b, p. 292).
[3] Marx advertiu sobre esse estreitamento do horizonte sociopolítico burguês, que se expressa na pauta do conservadorismo. Em O 18 de brumário de Luís Bonaparte, ele afirma: “Toda e qualquer reivindicação da mais elementar reforma financeira burguesa, do mais trivial liberalismo, do mais formal republicanismo, da mais banal democracia é simultaneamente punida como ‘atentado contra a sociedade’ e estigmatizada como ‘socialismo’“ (2011, p. 37).
[4] Na chamada “literatura universal”, a ironia com que Cervantes retrata seu Dom Quixote de la Mancha (2002), em aventuras que contrastam a fantasia do herói e a realidade social objetiva, oferece uma perspectiva crítica sobre o idílio dos “ideais de cavalaria”. No limite, o nobre cavaleiro perde qualquer contato com a realidade e orienta suas ações e escolhas com base no arsenal literário fantástico que acumulou durante a vida. A partir da oposição entre nobreza, ingenuidade, delírio, grandiloquência e realidade concreta, permeada por contradições e interesses mesquinhos, Cervantes apresenta a comédia e a tragédia da sua personagem. Burke, em várias ocasiões em sua obra, lamenta-se que tenha passado o tempo da cavalaria, com suas honras, prestígios e ideais de nobreza e devoção.
[5] O tema da “tradição”, como se sabe, é recorrente entre os conservadores. Burke não destoa. Aparentemente emulando a “voz do povo”, ele descreve o que considera como sendo a força das tradições dos ingleses e sua repulsa às propostas de mudança: “O povo da Inglaterra não vai macaquear as modas que nunca experimentamos; nem voltar àquelas que, por experiência, achou daninhas. Ele olha para sucessão hereditária legal de sua coroa como um de seus direitos, não como um de seus erros; como um benefício, não como um agravo; como uma segurança para a sua liberdade, não como um símbolo de servidão. Ele olha para a estrutura de seu Estado, tal como existe, como sendo de valor inestimável; e concebem a inalterada sucessão da Coroa como promessa da estabilidade e perpetuidade de todos os demais membros de nossa Constituição” (2014, p. 48). Como se pode notar, o autor poucas vezes consegue defender suas ideias com argumentos que ultrapassem uma petição de princípios.
[6] Entre outros, Michael Oakeshott e Roger Scruton reproduzem esse tipo de avaliação. Conferir: Sobre a história (2003) e O que é conservadorismo (2015), respectivamente.
[7] No caso da democracia, vale recuperar as palavras do autor: “Uma perfeita democracia é, portanto, a coisa mais vergonhosa do mundo. Sendo a mais vergonhosa, é também a mais temível” (2014, p. 112).
[8] “De que adianta discutir o direito abstrato de um homem ao alimento ou aos remédios? A questão está em saber em como consegui-los e administrá-los. Nessa deliberação, sempre aconselharei que se solicite a ajuda do agricultor e do médico, e não a de um professor de metafísica” (Burke, 2014, p. 81). Chama a atenção essa prescrição burkeana pela ressonância que parece obter entre os meios políticos na contemporaneidade. Qualquer debate em torno de direitos e políticas sociais é tensionado à subordinação aos assuntos “técnicos”, da mais pragmática “administração”, onde vigoram a predominância do orçamento e a sacralização da racionalidade contábil com vistas ao pagamento das dívidas externas e internas. Pouco importa que essa tendência seja ou não baseada no pensamento de Burke. O central, nesse quesito, são as condições objetivas da sociedade de classes que conduzem a esse estreitamento dos horizontes civilizatórios. Desde Burke até o presente, como disse Marx, os homens “não o sabem, mas o fazem” (1985a, p. 72). “A razão política é um princípio calculador” (Burke, 2014, p. 82), observa o conservador.
[9] São abundantes, em Burke, as referências que subestimam a razão ante o imediatismo. Simultaneamente, há um elogio do agir irrefletido e espontâneo, irracional, com base nos “instintos” nos “sentimentos”, presentes na natureza (entificada) e nos homens. “De acordo com o mesmo plano que nos fez adequar nossas instituições artificiais à natureza, e apelando à ajuda de seus infalíveis e poderosos instintos para fortalecer as débeis e frágeis invenções de nossa razão, derivamos diversos outros benefícios, e não certamente pequenos, do fato de considerarmos nossas liberdades à luz da herança. [...] Fazemos respeitar nossas instituições civis segundo o princípio pelo qual a natureza nos ensina a reverenciar os indivíduos, isto é, de acordo com a idade deles e daqueles de quem descendem. Nenhum dos sofistas de seu país poderá inventar algo mais bem adaptado a preservar uma liberdade racional e viril do que o caminho que adotamos, procurando seguir a natureza ao invés de nossas especulações, nossos sentimentos ao invés de nossas invenções, e fazendo deles a salvaguarda e o depósito de nossos direitos e privilégios” (2014, p. 56).
[10] Nos parágrafos iniciais das Reflexões, lemos: “São as circunstâncias [...] que, na realidade, dão a todo princípio político sua cor própria e seu efeito particular. São as circunstâncias que fazem com que qualquer sistema civil e político seja benéfico ou nocivo à humanidade” (2014, p. 29-30). Com essa referência reiterada à força do significado das circunstâncias, o autor pretende relativizar a interpretação dos acontecimentos, evitando assim representações unilaterais sobre fenômenos históricos. Todavia, o resultado efetivamente alcançado por ele parece se restringir a um relativismo rudimentar. Mais à frente, ele exemplifica como esse princípio das “circunstâncias” serve para colocar em perspectiva os acontecimentos. Escreve ele: “Falando em abstrato, o governo, assim como a liberdade, é bom [...]. Iria eu cumprimentar um assaltante e assassino que tenha fugido da prisão, por ter readquirido seus direitos naturais?” (2014, p. 30). Um argumento, como se pode notar, eivado pelo senso comum.
[11] Sobre a natureza e a função do Estado, o irracionalismo de Burke transparece de um idealismo desconectado da realidade material: “O Estado é uma associação que participa de todas as ciências, todas as artes, todas as virtudes e todas as perfeições. [...] Cada contrato de cada Estado particular é apenas uma cláusula no grande contrato primitivo da sociedade eterna, que liga as naturezas inferiores às superiores, conectando o mundo visível ao invisível, de acordo com um pacto fixo sancionado pelo inviolável juramento que mantém todas as naturezas morais e físicas em seus respectivos lugares” (2014, p. 115).
[12] “Sabemos, para nosso orgulho, que o homem, por sua constituição, é um animal religioso; que o ateísmo é contrário não apenas à nossa razão, mas também aos nossos instintos, não podendo prevalecer por muito tempo. [...] aquela religião cristã que, até agora, tem sido nosso motivo de orgulho e nosso consolo, assim como uma grande fonte de civilização entre nós e muitas outras nações, ficaríamos apreensivos (sabedores de que a mente não suportará o vazio) de que alguma superstição grosseira, perniciosa e degradante devesse tomar seu lugar” (2014, p. 110).
[13] Robert Nisbet, entre outros conservadores, afirma essa ressalva: “[...] preconceito é a essência de toda uma maneira de conhecer, compreender, sentir [...]. Para Burke, o preconceito é um resumo, na mente individual, da autoridade e da sabedoria contidas na tradição” (1987, p. 57-58).
[14] Tem se avolumado no Brasil uma bibliografia conservadora significativa, ligada ao conservadorismo clássico de Burke e empenhada em substanciar um projeto societário nesse país. Sobre essa questão do papel dos preconceitos no conservadorismo, por exemplo, já é possível consultar em português a obra de Theodore Dalrymple, Em defesa do preconceito: a necessidade de se ter ideias preconcebidas (2015). João Pereira Coutinho também aborda esse tema em seu As ideias conservadoras: explicadas a revolucionários e reacionários (2014).
[15] “Os homens prudentes aplicarão seus remédios aos vícios, não aos nomes, às causas permanentes do mal, não aos órgãos efêmeros pelos quais elas atuam e às formas transitórias que assumem" (2014, p. 157). Os vícios, a que Burke se refere, seriam espécies degeneradas de conduta moral, que ele especifica: “[...] orgulho, ambição, avareza, vingança, luxúria, hipocrisia” (2014, p. 157); a lista segue.
[16] Em A hipocondria da antipolítica (2014), Losurdo faz um levantamento relevante dos autores, obras e órgãos de imprensa conservadores inspirados por Burke na Europa, incluindo-o também como uma das fontes “teóricas” que lançaram as bases do “darwinismo social”.
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Referências bibliográficas
BURKE, E. Reflexões sobre a revolução na França. Tradução José Miguel Nanni Soares. São Paulo: Edipro, 2014.
CERVANTES, M. de S. O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha. Tradução Sérgio Molina. São Paulo: Editora 34, 2002. Livro I.
COUTINHO, J. P. As ideias conservadoras: explicadas a revolucionários e reacionários. São Paulo: Três Estrelas, 2014.
DALRYMPLE, T. Em defesa do preconceito: a necessidade de se ter ideias preconcebidas. Tradução Maurício G. Righi. São Paulo: É Realizações, 2015. (Abertura Cultural.)
KINZO, M. D. G. Burke: a continuidade contra a ruptura. In: WEFFORT, F. C. (Org.). Os clássicos da política. 11. ed. São Paulo: Ática, 2006.
LOSURDO, D. A hipocondria da antipolítica: história e atualidade na análise de Hegel. Tradução Jaime Clasen. Rio de Janeiro: Revan, 2014.
LUKÁCS, G. El asalto a la razón: la trayectoria del irracionalismo desde Schelling hasta Hitler. Barcelona: Grijalbo, 1972.
MARX, K. O capital: crítica da economia política. Tradução Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. 2. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985a. (Col. Os economistas; Livro I, v. I).
______. O capital: crítica da economia política. primeiro. Tradução Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. 2. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985b. (Col. Os economistas; Livro I. v. II.)
______. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. Tradução Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011. (Col. Marx-Engels.)
NISBET, R. O conservadorismo. Tradução M. F. Gonçalves de Azevedo. Lisboa: Editorial Estampa, 1987. (Temas de ciências sociais.)
OAKESHOTT, M. Sobre a história. Tradução Renato Rezende. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003.
SCRUTON, R. O que é conservadorismo. Tradução Guilherme Ferreira Araújo. São Paulo: É Realizações, 2015. (Abertura cultural.)
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Resumo: O artigo procura recuperar o conteúdo das ideias políticas e das análises de Burke sobre o processo revolucionário na França. Através de uma revisão bibliográfica, destaca as principais posições do fundador do conservadorismo. O objetivo consiste em reconstruir a estrutura originária do conservadorismo como uma das ideologias conservadoras surgidas no período moderno.

Palavras-chave: Conservadorismo. Edmund Burke. Revolução.

Edmund Burke and the genesis of conservatism


Abstract: In the article it is sought to recover the content of Burke’s political ideas and analyses about the French revolutionary process. By means of a bibliography review, it highlights the main positions of the founder of the conservatism. The aim is to rebuild the original structure of the conservatism as a conservative ideology which emerged in the modern period.

Keywords: Conservatism. Edmund Burke. Revolution.
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SOUZA, J. M. A. de. “Edmund Burke e a gênese do conservadorismo”. In: Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 126, p. 360-377, maio/ago. 2016.
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