segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Breve crônica natalina: a data por excelência do anticapitalismo romântico


por Paulo Ayres

Independente da questão se o Natal é uma data que pertence a Horus, Jesus ou Papai Noel, essas últimas semanas do calendário em que ocorrem os solstícios (de Verão aqui e Inverno no Hemisfério Norte) produzem uma movimentação anual peculiar que afetam visivelmente o ritmo do comércio e a vida cotidiana das pessoas. Muito já se escreveu sobre essa época, sobre o tal espírito natalino e todo o pacote de características culturais que se afirmaram como uma tradição. É a data que, por se pautar nesse tal espírito comunitário, joga na nossa cara de maneira intensa como é hipócrita e rebaixada do ponto de vista humano a nossa vidinha cotidiana nesse mundo capitalista. Mas isso é assim desde que o capitalismo se afirmou como modo de produção consolidado e o protesto romântico ecoou como um canto desprovido de coesão racional, gerando duas melodias que, entre outras coisas, se posicionam distintamente sobre o Natal.

Junto com figuras como a tia que pergunta dos namoros, está o estereótipo - ou seria o arquétipo - do "tio reaça", que declama elogios saudosistas pela ditadura empresarial-militar e faz propaganda eleitoral do Bolsonaro. Evidentemente que, como caricatura, esse é um caso limite e bem delineado do romântico tradicionalista, aquilo que popularmente se chama de conservador, porém, de certo modo, a maior parte de gerações mais velhas tende a se apoiar, em algum grau, em posicionamentos que lhes colocam predominantemente de acordo com o romantismo tradicionalista. Geralmente esta perspectiva, em lugares como o Brasil, se dá pela via da religiosidade tradicional cristã. O Natal (e o período de Natal-Réveillon), deste modo, aparece como um oásis abstratamente humanista onde vamos beber água depois de penar um ano inteiro neste deserto infernal da sociedade mundial capitalista (o adjetivo burguês em muitos casos é ignorado, se fala num abstrato "mundo moderno" ou, em certos casos, até que "sempre foi assim, é a natureza humana etc."). Daí que é a época de festejar uma generosidade, ausente em situações corriqueiras, e lembrar que há pessoas vivendo na miséria etc. Mas não se engane com os estereótipos psicologistas e maniqueístas: o tiozão reaça também pode ficar de coração mole e falar mal do consumismo, da competição absurda etc. nesse período. O mundo está em ruínas para o romântico tradicionalista. Ele suspira pela Tradição, Família e Propriedade; e percebe que as duas primeiras tem o seu ponto de celebração neste pequeno espaço nos finais de ano. Este anticapitalismo romântico louva o Natal por proporcionar isso, pois enxerga nesse espírito natalino um espírito anticapitalista ou, para além da lógica do capital (da "realidade moderna" ou "mundana").

Na outra linhagem do protesto romântico está o arquétipo da "prima lacradora". Em maior ou menor grau, o fato é que aqui está a juventude que é geralmente universitária, hipster, bicho-grilo, engajada e "de esquerda". Sabemos que na turma da ciranda, sob um rótulo "de esquerda", há uma gradação progressista entre socialistas e liberais que borra e confunde. O anticapitalismo romântico progressista, entretanto, é necessariamente liberal. Pressupõe, em alguma medida, a concepção (antropológica, política, moral etc.) do individualismo. A reunião de família, com efeito, é um prato cheio para os textões de indignação; o encontro com os parentes conservadores e, especialmente, algum membro mais reacionário da família que é visto pelo sujeito como o Mussolini em vida. É dia de se indignar com o tradicionalismo daquela família "alienada", pessoas sem a "luz" (não da razão/Vernunft, mas da vivência, da intuição da totalidade, da Mãe Terra, da Força de Star Wars etc.). Se o tiozão reaça tende a adorar o Natal como um período sagrado de suspensão da vidinha alienada, a prima que é fã do Jean Wyllis, pelo contrário, tende a ver como o período mais profano de todos, em que há o transbordamento da hipocrisia e vamos fingir uma reconciliação e harmonização familiar e comunitária de fachada. O anticapitalismo romântico-progressista, enraizado na concepção individualista (mesmo sem ter consciência disso), vai lá apontar o dedo, bater boca ou simplesmente postar comentários ácidos sobre como os seus parentes vivem no mundo da lua. Faltam-lhes, segundo esse raciocínio, o batismo sagrado chamado "desconstrução", quase uma nova corrente da religiosidade new age.

Obviamento que estamos lidando aqui com abstrações analíticas e indicando tendências. Pode haver, é claro, uma "prima lacradora" que adora o Natal e a reunião familiar de fim de ano e, também, um "tio reaça" que detesta este período e encontrar parentes. A questão é que há estas duas posições do anticapitalismo romântico em relação ao Natal. Sendo a data suprema do anticapitalismo romântico, é até compreensível que os ânimos, às vezes, façam também uma mescla de adoração e repúdio (o assunto sobre a mercantilização do Natal está sempre em pauta). E quando lembramos que a base filosófica contra-iluminista é a mesma nas duas linhagens do anticapitalismo romântico, a gente percebe que, por mais distintos que sejam (não se pode negar os elementos de diferenciação), o tio reaça e a prima lacradora podem ter mais em comum do que imaginam. Há mais elementos de conexão do que pode perceber a nossa vã filosofia irracionalista.
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