Introdução
Parte-se
aqui do exame crítico da ciência moderna, mantendo a tese de que esse
padrão de cientificidade está fundado numa concepção de mundo — o
mecanicismo — que enseja e mesmo requer a aplicação generalizada do
método de explanação que, em outro texto, denominou-se de reducionismo
clássico. Concebendo ainda esse método como expressão de uma ideia de
ciência incongruente com a de complexidade, busca-se investigar
criticamente o rumo do desenvolvimento de certas concepções de mundo que
propiciaram o surgimento de novos métodos capazes de ir além do modo
moderno de fazer ciência. Procura-se mostrar que a expansão da
cientificidade positiva propiciada por essas concepções encontra ainda
dificuldades importantes, as quais apenas podem ser superadas retomando
os caminhos da dialética hegeliana tal como foi recuperada e
redirecionada por Marx.
Já aqui é preciso mencionar,
até para evitar confusões terminológicas, que as concepções de
complexidade usualmente encontradas na literatura pertinente são bem
problemáticas. Normalmente, elas se originam de uma compreensão
conservadora de razão e, por isso, se levantam sobre a base de uma visão
meramente intelectiva do conhecimento, mesmo se não se eximem de tratar
o objeto como realidade densa — e não meramente como fenomenalidade
aparente. Nessa perspectiva, em primeiro lugar, é preciso notar que se
pode entender por complexidade algo que pode ser conhecido e
representado por meio de algoritmos; nesse caso, aquilo que é assim
entendido será aqui reconhecido pelo termo “complicação”. Em segundo
lugar, é preciso observar que também se pode compreender por
complexidade aquela propriedade de certos sistemas que faz com que eles
não possam ser representados por meio de algoritmos. Essa propriedade
vem a ser a mutualidade, a qual se configura — como ficará evidente —
por impedir que tais sistemas possam ser decompostos em suas partes
constituintes para serem assim apreendidos enquanto tais, a partir
delas. Em consequência, tais sistemas são entendidos, de algum modo,
como todos que transcendem e determinam de certo modo as partes
constituintes. Por isso mesmo, aquilo que é assim referido será aqui
reconhecido pelo termo “mutualidade”.
Ao fim e ao
cabo, mesmo já nesse capítulo e mais completamente no estudo como um
todo, chega-se à conclusão que se deve compreender complexidade como
condição ontológica ou pressuposto material da práxis — e, assim, da
percepção, do entendimento e da dialética. Nesse sentido, o termo
‘sistema complexo’ só poderá ser empregado, de modo totalmente
pertinente, para fazer referência ao objeto da ação e do conhecimento em
sua existência real. Por isso mesmo, o conhecimento teórico em geral,
seja ele analítico, sistêmico ou dialético, sempre apreende até certo
ponto a complexidade do mundo real, nunca deixando de ser algo
aproximativo que se mantém sempre em certo nível de abstração e
simplicidade (Kosik, 1969, p. 38-39). Inspira essa posição uma
consideração de Hegel sobre a “efetividade” que deve ser lida aqui
substituindo a expressão “ideia” que nela aparece pela expressão
“conteúdo material”; diz esse autor: “no que toca à natureza, não é raro
que se costume admirá-la principalmente por causa da riqueza e da
complexidade de suas formações. Mas essa riqueza como tal, abstraindo do
desdobramento da ideia aí presente, não apresenta nenhum interesse
racional mais elevado, e só nos proporciona, na grande complexidade das
formações inorgânicas e orgânicas, a intuição da contingência
perdendo-se do indeterminado” (Hegel, 1995, p. 271). Nesse sentido, o
conhecimento científico em geral só apreende aquilo que pode ser posto
numa forma racional e que captura a necessidade e a possibilidade
inscritas nos fenômenos sejam eles naturais, sociais ou psicológicos — e
nunca a mera contingência.
Para conduzir a
investigação aqui encetada é preciso retomar certos resultados do estudo
anterior sobre a mesma temática (Prado, 2009). E, com esse objetivo,
deve-se perguntar logo de início, na primeira seção que se segue, o que
se deve entender precisamente por reducionismo clássico. Ao responder a
essa questão, discute-se um particular caminho, muito expressivo, e que
se tornou bem importante no correr do século XX, para a sua superação —
um processo atribulado e múltiplo, aliás, em andamento na ciência
contemporânea. Um pioneiro no ensaio de ir além do mecanicismo,
Bertalanffy, escrevendo sobre ele já na primeira metade do século
passado (na verdade, desde os anos 20), apresentou uma nova concepção de
ciência a qual ele denominou de teoria geral dos sistemas. E, para
melhor especificá-lo e distingui-lo, contrastou-o com a cientificidade
dominante desde o século XVII, assinalada por ele mediante o termo
“ciência clássica”. Ele próprio acentuou que o reducionismo vinha a ser a
característica central da ciência clássica.
Ao
apresentar as principais características das teses de Bertalanffy,
chega-se inexoravelmente à questão da emergência. Pois, a concepção de
mundo que embasa a sua teorização dos sistemas diz que ele não é
estruturalmente homogêneo e que, ao contrário, tem de ser apreendido
como uma hierarquia de estratos de complexidade crescente. Ora, se assim
é, isto requer da ciência em elaboração que ela seja capaz de fornecer
explicação para a formação progressiva de tais estratos, os quais
surgiram, pouco a pouco, uns a partir dos outros que os antecederam, no
evolver do universo até chegar à conformação complexa presentemente
conhecida. O tema não é tranquilo; ao contrário, é bem controverso.
Descobre-se na literatura pertinente que diferentes autores apresentaram
diversas teses sobre a natureza da emergência. Porém, os estudos que
buscaram sintetizar o assunto mostram que elas podem ser classificadas
em duas grandes orientações explanatórias, as quais são conhecidas como
emergentismo fraco e emergentismo forte. Procura-se explicar o teor
dessas duas orientações na segunda seção que se segue.
Na
exposição dessas duas grandes correntes de pensamento emergentista não
se escapa de enfrentar questões, entre si relacionadas, de ontologia e
de lógica. A emergência é sempre um processo contínuo formado de
pequenas mudanças ou vem a ser um salto qualitativo? O pensamento é
capaz de explicar os processos de emergência por meio de construções
dedutivas, logicamente consistente, ou precisa recorrer, diante deles, à
intuição e às postulações de ordem metafísica? Ora, essas questões
obrigam a enfrentar o grande tema filosófico da compreensão do ser e do
devir que encontra em Aristóteles e em Hegel, como vem a ser bem sabido,
os seus grandes mestres clássicos. Para abordar esse tema de um modo
pertinente, será necessário examinar as antigas teses de Lukács sobre a
interversão do racionalismo no irracionalismo, as quais expõem certas
dificuldades do pensamento raciocinativo. Eis que essas dificuldades
apenas podem ser superadas — e essa vem a ser a tese central aqui
exposta — por meio da dialética que vem de Hegel e Marx. Trata-se do
problema e de sua possível solução na penúltima e na última seção deste
texto.
Razão sistêmica
Segundo
Bertalanffy, a ciência clássica caracteriza-se, sobretudo, por ser
estritamente analítica. Em todos os campos do conhecimento, ela “procura
isolar os elementos de uma região observável do universo” com a
finalidade de descobrir as suas propriedades constitutivas, “esperando,
ao pô-los junto de novo, reconstituir o todo, conceitual e
experimentalmente, tornando-o inteligível” (Bertalanffy, 2003, p. xix).
Nesse sentido, por isso mesmo, ela crê que as propriedades dos todos
considerados nas diversas áreas da investigação científica sejam
redutíveis às propriedades dos seus elementos componentes, deles
decorrendo material e logicamente. A ciência clássica trata os todos
como agregações das partes constituintes.
A ciência
nova contraria essa orientação passando a enfocar certas regiões
observáveis do universo como sistemas, ou seja, como conjuntos
integrados de partes que interagem entre si. Atribuindo certo peso
ontológico aos todos em consideração, ela entende que “vem a ser
requerido não apenas um entendimento dos elementos [que os compõem], mas
também as suas inter-relações [constitutivas]” (Bertalanffy, 2003, p.
xix). Dito de outro modo, tais todos são caracterizados não apenas por
seus componentes elementares, mas também pelos modos de organização em
que estes componentes se encontram inseridos e, assim, articulados.
Porém, sem se afastar da perspectiva da cientificidade positiva, a
teoria geral dos sistemas concentra-se no estudo das interações
dinâmicas e complicadas que constituem em processo os todos organizados,
os quais são visados por ela como composições e não apenas como meros
agregados. Mesmo se afastando de uma perspectiva estritamente atomista
na compreensão de mundo, para tanto, essa teoria vale-se ainda da noção
de causalidade mecânica da ciência moderna, buscando expressar a
formação dos sistemas, privilegiadamente, por meio da matemática dos
sistemas dinâmicos (assim como, também, da cibernética, da teoria dos
grafos, da teoria dos autômatos, etc.). Nesse sentido, ela contém uma ambiguidade e esta precisará ser esclarecida.
Bertalanffy
encara a teoria geral dos sistemas como um novo paradigma (no sentido
de Kuhn) e o contrasta com o “paradigma da ciência clássica que é
analítico, mecanicista e unidirecional em matéria de causalidade”. Mais
do que isso, ele o vê mesmo, pretensiosamente, com uma “nova filosofia
da natureza”, a qual se despede da “visão mecanicista de mundo” para
adotar uma “visão organicista” que passa a enxergar “o mundo como uma
grande organização” (Bertalanffy, 2003, p. xxi).
Por
isso mesmo, a teoria geral dos sistemas não se intimida com a acusação
de que vem a ser uma abordagem que recai na velha metafísica, pois busca
explorar cientificamente os “todos” e as “totalidades” encarando-os
explicitamente como sistemas. Bertalanffy, ademais, justifica o
aparecimento e o fortalecimento desse modo de pensar de um modo
materialista, ainda que enviesado em sentido utilitário e pragmático:
ele nascera e crescera por exigência histórica do próprio
desenvolvimento da sociedade. A sociedade contemporânea, com as suas
modernas tecnologias, tornara-se tão complexa que os velhos métodos
científicos surgidos na modernidade deixaram de ser suficientes para
tratar de seus problemas mais importantes. É ela própria, pois, que
passou a exigir uma abordagem científica mais holística ou sistêmica,
mais generalista e mais interdisciplinar. Os ecossistemas, os sistemas
sociais, econômicos, políticos, nacionais e internacionais, que se
desenvolveram extraordinariamente no século XX reclamaram — segundo ele —
“controle científico”. Ora, os problemas sistêmicos se configuram
sempre como “problemas de inter-relação de um grande número de
variáveis” (Bertalanffy, 2003, p. xx). Por isso mesmo, esses próprios
problemas exigiram o desenvolvimento tanto de ferramentas informais
quanto de “teorias matemáticas altamente sofisticadas” capazes de operar
com mecanismos complexos que envolvem causação intrincada,
retroalimentação negativa e positiva, assim como não-linearidades
(Bertalanffy, 2003, p. xxi).
Que problemas são estes
que foram notados com certo assombro no desenvolvimento recente da
sociedade moderna? Foram aqueles — ele mesmo responde — que se
afiguraram como problemas complexos, não tratáveis pelo método
reducionista da ciência moderna. De natureza tecnológica, educacional,
burocrática, militar ou outra qualquer, eles surgiram para os mais
variados tipos de analistas e gerentes na indústria, na gestão estatal,
nas relações internacionais, na guerra, etc.
A teoria
geral dos sistemas não se apresenta primariamente como uma ontologia,
ainda que não se recuse a admitir que os sistemas reais existam
independentemente dos observadores e que eles vêm a ser apreendidos por
meio da observação. Enfatiza, em contradistinção, que há também os
sistemas simbólicos abstratos, existentes, por exemplo, no interior da
própria ciência e da matemática, os quais ela encara tipicamente como
construções conceituais. Situando-se, em consequência, na perspectiva da
razão subjetiva e construtiva, o autor dessa teoria registra então, com
certa contradição, que os sistemas reais não são objetos da percepção
ou da observação direta, mas sim que são objetos construídos pela mente
humana com base em “fatores mentais” intrínsecos, assim como em herança linguística e cultural, os quais determinam “como atualmente vemos ou
percebemos” os fenômenos do mundo real (Bertalanffy, 2003, p. xxi). Com
uma mesma chave argumentativa, ele encerra assim a ontologia num espaço
bem estreito e abre a porta para a entrada triunfante da epistemologia
na consideração dos sistemas complexos.
A
teoria geral dos sistemas preocupa-se com a questão do conhecimento nas
ciências biológicas, comportamentais e sociais e, por isso, despede-se
do atomismo, do fisicalismo e do reducionismo que figuram como
características inerentes à ciência clássica, a qual se desenvolvera —
tal como bem se sabe — inicialmente no campo das ciências físicas.
Bertalanffy compara essa ciência nova com a ciência clássica mais uma
vez. Se o procedimento analítico dessa última requer a decomposição dos
todos em componentes elementares e também, em consequência, o emprego da
noção de causalidade unidirecional, “a investigação dos todos
organizados... requer novas categorias de interação, transação,
organização, teleologia, etc.” (Bertalanffy, 2003, p. xxii). E tudo isto
suscita não apenas novos problemas de modelagem matemática, mas também
novas considerações de ordem epistemológica, as quais advêm
intrinsecamente da própria concepção sistêmica de mundo. E aqui, para
ser bem fiel ao autor, é preciso citá-lo por extenso:
Outrossim, a percepção não é reflexão da ‘coisa real’ (qualquer que seja o seu status
metafísico), e o conhecimento não é simplesmente uma aproximação da
‘verdade’ ou da ‘realidade’. Vem a ser interação entre o conhecedor e o
conhecido, a qual é dependente de uma multiplicidade de fatores de
natureza biológica, psicológica, cultural, linguística, etc. A física
ensina que não há entidades últimas tais como corpúsculos ou ondas,
existindo independentemente do observador. Isto gera uma filosofia
perspectivista segundo a qual a física, mesmo com o reconhecimento de
suas realizações em seu próprio campo e em campos afins, não monopoliza o
modo do conhecimento. Contra o reducionismo e contra as teorias que
declaram que a realidade ‘não é mais do que’ (uma coleção de partículas,
genes, reflexos, tendências ou qualquer outras coisas), vemos a ciência
como coleção de perspectivas criadas pelo homem para se relacionar com o
universo em que ‘foi lançado’, ou melhor, no qual ele tem de se adaptar
devido à evolução e à história, fazendo uso de sua dotação e
dependência linguística, cultural e biológica.” (Bertalanffy, 2003, p.
xxii).
A citação fala por
si, mas é preciso registrar aqui, explicitamente, que este autor, ao
abandonar a epistemologia empirista que apresenta o conhecimento como
mero reflexo subjetivo dos eventos e conjunções de eventos na mente
humana, cai numa forma de relativismo. Ao manter separados — e estranhos
entre si — o sujeito cognoscitivo e o objeto do conhecimento, ao pensar
a relação entre eles como relação meramente externa, uma polaridade
excludente se impõem ao pensador como resultado de seu próprio modo de
pensar raciocinativo: ou o conhecimento e o objeto conhecido são
identificados dogmaticamente ou eles são irrevogavelmente diferenciados
e, nesse caso, o conhecimento não pode deixar de se afigurar como
construção da mente pensante, mesmo ao serem considerados os seus
múltiplos condicionamentos cognitivos, sociais e históricos. Ao por
ênfase na interação como elemento constitutivo daquilo que existe no
mundo do homem, a teoria geral dos sistemas não podia deixar de cair
nessa segunda alternativa.
O reducionismo tal como foi
definido por Bertalanffy implica no dedutivismo, ou seja, na crença de
que os únicos argumentos válidos nas formulações científicas em geral
são aqueles que obedecem estritamente as regras da lógica formal. Elas
consistem de proposições primeiras que mantêm o caráter de definição ou
de fundação (postulados, hipóteses, conjecturas, etc.) e em proposições
que delas se derivam mediante aplicação de princípios de inferência
universalmente válidos. Algumas das proposições científicas são
particulares – por exemplo, quando se referem às condições iniciais
associadas à ocorrência de um dado fenômeno — mas outras são gerais — ,
por exemplo, quando expressam leis universais ou regras de comportamento
com validade circunstancial. De um modo ou outro, as teorias
científicas visam produzir proposições particulares com conteúdo
factual. Basta ver como Bertalanffy distingue o procedimento analítico
tradicional do procedimento lógico da ciência sistêmica, que busca
apreender os processos interativos complicados. O primeiro é um caso
particular do segundo, o qual é aplicável sempre que “as interações
entre as partes sejam inexistentes ou suficientemente fracas para serem
negligenciadas” e sempre que o comportamento das partes esteja
relacionado ao comportamento do todo de um modo linear (sendo esse
último, então, obtido por mera soma) (Bertalanffy, 2003, p. 19). Nessa
perspectiva, portanto, o dedutivismo não implica no reducionismo.
O
dedutivismo surge como questão — e como fonte de dúvida — quando se
pergunta se as propriedades macroscópicas de um determinado sistema são
mesmo explicáveis pelas propriedades microscópicas dos elementos que o
compõem, pouco importa se essa derivação é simples, complicada ou muito
complicada. Ora, aqui, explicar significa estritamente deduzir: tem-se
uma redução explanatória quando as propriedades macroscópicas de um
determinado todo são dedutíveis das propriedades microscópicas dos
elementos que o compõem, assim como das regras de comportamento a que
estão submetidos, além obviamente das configurações e condições
iniciais. E isto ocorre porque a perspectiva da teoria geral dos
sistemas, ao considerar a organização como elemento estruturador da
realidade, implica necessariamente numa compreensão hierárquica do mundo
em termos de estratos de complexidade crescente.
Destarte,
essa relação de ordens que se sobrepõem umas sobre as outras se
manifesta, para ela, já na distinção tradicional entre os estratos
físico, orgânico e social do mundo objetivo. De modo mais amplo, eis que
Boulding, de modo consistente com a teoria geral dos sistemas, tentara
formular uma teoria geral do crescimento, distinguindo no mundo real
pelo menos nove níveis de complexidade crescente: estruturas primárias
(átomos, moléculas, etc.), mecanismos relojoeiros (máquinas, sistema
solar, etc.), mecanismo com controle (termostato, servos-mecanismos,
etc.), sistemas abertos simples (células), organismos simples
(bactérias, plantas, etc.), animais, homens, sistemas sociais e sistemas
simbólicos (linguagem natural, matemática, etc.) (Boulding, 1956).
A questão da emergência
A
questão referida na introdução do parágrafo anterior é chave na
temática aqui discutida. Ela aparece na literatura pertinente sob um
rótulo bem significativo: problema da emergência. Pois aquilo que se
manifesta num certo nível da realidade e que se origina supostamente do
que ocorre num nível inferior afigura-se possuir certa autonomia em
relação a essa base originária. Parece que entre o nível constitutivo e
os fenômenos emergentes no nível superior há uma descontinuidade, um
salto que se afigura como de difícil explicação ou mesmo, eventualmente,
como inexplicável, pelo menos a primeira vista. Aquilo que é emergente
vem a ser realmente novo? O que, afinal, está em curso nesse processo em
que algo novo ou aparentemente novo sobrevém? Como essa novidade ou
aparência de novidade pode ser explicada? Há, de fato, um salto nessa
passagem que engendra a novidade? Na busca de respostas para essas
perguntas, deve-se confiar ainda nas características do processo de
acarretamento tal como este é modelado por meio de deduções complicadas
ou se deve recorrer a algo que não cabe nesse procedimento porque ele
próprio vem a ser logicamente estreito?
Ao se deixar
para trás o reducionismo, se aceita — e este é um ponto de partida — que
os fenômenos emergentes são irredutíveis àqueles fenômenos que
admitidamente os originam e que, portanto, eles são verdadeiramente
novos. Considera-se, nesse sentido, que tais fenômenos são
supervenientes em relação aos elementos originários e que eles são
propriamente novos porque têm características diversas das
características desses elementos. Ao se admitir que os todos formados a
partir de processos que envolvem as partes apresentam novidades reais,
fica ainda a questão de saber em que consistem precisamente essas
novidades? De qualquer modo, os fenômenos ditos emergentes aparecem para
o pensamento analítico como ocorrências intransparentes que não podem
ser pensadas clara e distintamente e que, por isso mesmo, são enxergadas
por ele como complexas (ou seja, difíceis de entender e de explicar
seja por razões de ordem epistemológica ou ontológica). Pela mesma razão
certos sistemas são encarados, no mesmo sentido, como sistemas
complexos.
O esclarecimento das questões restantes
dentre aquelas acima postas resume-se, em última análise, em saber se há
ou não um salto qualitativo nos processos de emergência. Na literatura
de origem anglo-saxônica que versa sobre a temática da complexidade,
costuma-se indicar que duas grandes orientações prevalecem na busca de
resposta para essa questão (Clayton, 2008, p. 9-11). Elas precisam ser
distinguidas no plano ontológico, ainda que uma delas prefira se
expressar melhor no plano epistemológico.
Aquela
orientação que não recua diante do compromisso ontológico é denominada
de emergentismo forte, enquanto que a outra é classificada como
emergentismo fraco. A primeira orientação sustenta que o processo
evolutivo da natureza como um todo é responsável pelo aparecimento
histórico e sucessivo de novos níveis de complexidade organizacional, os
quais apenas podem ser bem distinguidos examinando aquilo que
intrinsecamente são. E isto significa que cada um desses níveis tem
constituição própria, submete-se a leis características, apresentando
propriedades diferenciadas. Para a primeira orientação, portanto, os
processos emergentes são saltos distinguíveis ontologicamente. Em
contraposição, a segunda orientação — o emergentismo fraco — concebe as
novidades aparecidas no curso do desenvolvimento da natureza como
ocorrências que surgem por meio de encadeamentos causais ordinários,
podendo ser descritas no plano teórico, em princípio, por meio de
construções rigorosamente dedutivas. Se essa orientação distingue também
níveis de complexidade crescente no mundo real, estes são entendidos
como estruturas que emergem indiretamente por meio das interações dos
elementos componentes, as quais são descritíveis ainda mecanicamente.
A
teoria geral dos sistemas acima discutida — isto fica claro agora — se
estabelece nos marcos do emergentismo fraco. Ao privilegiar a matemática
como forma de expressão teórica, ela assume que os todos por ela
considerados emergem por meio das interações das partes, supondo ainda
que essas partes assim se definam como tais independentemente do todo.
Os sistemas assim considerados, já constituídos enquanto tais,
constrangem o comportamento das partes constituintes, não tendo, porém,
quaisquer poderes causais próprios; eis que eles, como tais, não podem
influenciar determinativamente as partes do modo usualmente conceituado
como “causação para baixo”. Essa orientação rejeita terminantemente essa
última concepção de causação, ainda que aceite normalmente a ideia de
retroalimentação; pois, essa última noção exige somente que o todo possa
ser uma fonte de restrição para a parte — não vindo, porém, a
determiná-la reflexivamente. Pois, para ela, admitir tal noção de
causação implicaria em cair em circularidades lógicas, em contradições
formais. Portanto, para o emergentismo fraco não existem verdadeiramente
saltos nem nos processos da natureza inorgânica e orgânica nem no devir
histórico das sociedades. Ele admite, porém, a existência de certas
descontinuidades nos processos reais já que por meio deles emergem novas
estruturas ou modo de organização.
Os saltos
eventualmente observados na experiência do mundo, os quais se afiguram
como descontinuidades ontológicas fortes, são considerados como falsas
aparências, frutos da falta de conhecimento, enigmas que podem ser
resolvidos por meio do desenvolvimento inexorável da ciência positiva.
Esse apelo ao progresso do conhecimento como forma de chegar a
formulações que dissolvem os saltos em processos gradualistas, em última
análise, manifesta de maneira iniludível o caráter epistemológico e
formalista do emergentismo fraco. Ademais, como assevera Clayton, “por
colocar forte ênfase nas continuidades entre os processos físicos e os
processos dos níveis subsequentes, o emergentismo fraco mostra estar
próximo do desiderato de uma ciência unitária” (Clayton, 2008, p. 10),
ou seja, de uma ciência metodologicamente unificada — sabidamente uma
aspiração tradicional do positivismo.
Nessa
perspectiva, o modo de explicação dos fenômenos a ser empregado nas
esferas inorgânica, orgânica e social do mundo conservar-se-ia sempre o
mesmo. O que realmente vem diferenciar a ciência nova da ciência
tradicional vem a ser a disponibilidade de novas técnicas de
processamento da informação, as quais permitem modelar processos
interativos complicados ou mesmo extraordinariamente complicados com
base em simulações. O propósito da ciência, assim desenvolvida, vem a
ser reconstruir os processos naturais por meios de modelos artificiais:
eis que a vida, assim, é tentativamente reconstruída de modo
computacional como vida artificial, a sociedade, como sociedade
artificial e a mente, como mente artificial. E esse tipo de expansão da
cientificidade positiva tem sido capaz de suscitar grandes esperanças
tecnocráticas de poder vir a resolver os problemas do mundo
contemporâneo. Um divulgador norte-americano desse tipo de teoria
declarou, com certa ingenuidade, que “o santo graal da ciência da
complexidade é entender, predizer e controlar os fenômenos emergentes —
em particular aqueles potencialmente catastróficos...” (Johnson, 2007,
p.5).
Em contraposição, o emergentismo forte acolhe a
tese de que a natureza se desenvolve por meio de saltos e que tais
mudanças qualitativas são apreensíveis apenas de modo ontológico. Tal
com a outra orientação, ela concebe o mundo como resultado de um
processo de evolutivo e histórico. Porém, ela o apreende como resultado
de um constante evolver pontuado por transformações mais ou menos
decisivas que, ao longo do tempo, foi fazendo aparecer novas formas de
existência que se caracterizam pelo mutualismo. Em perspectiva
diacrônica, veem nesse processo uma tendência geral para uma maior
diversificação dos seres do universo, mas em geral não creem que se
possa pensar que tudo ocorreu numa sequência de sentido unívoco, sem
quaisquer espécies de contramarchas. Os autores que seguem essa
orientação usualmente aceitam que o mundo, em perspectiva sincrônica,
tem de ser encarado como uma hierarquia de formas de existência que se
dispõem segundo uma ordem de mutualidade e complexidade crescente —
ainda que essa noção algo enevoada comporte também certo grau de ambiguidade.
Como o próprio mundo enquanto objeto
científico se mostra ontologicamente heterogêneo, os autores dessa
corrente não acolhem o projeto de uma ciência unificada. Contrariando
essa normatividade, julgam que é preciso empregar formas distintas de
cientificidade nos diversos campos do conhecimento, à medida mesmo que
estes se distingam entre si por apresentarem níveis diversos de
complexidade e de organização. Para eles, em geral, não se pode
apreender adequadamente o mundo, por exemplo, em seus estratos
inorgânico, orgânico e social, com base num único procedimento
metodológico padrão — a saber, tal como se faz usualmente, o método
nomológico e dedutivo. Mais do que isso, recusam que seja possível
explicar os acarretamentos inerentes aos processos de emergência por
meio de raciocínios estritamente dedutivos.
Diferentemente,
no afã de explicar os saltos qualitativos que encontram no mundo e que
se manifestam ao observador científico não-reducionista, o emergentismo
forte fia-se sempre numa forma de saber que, ao fim e ao cabo, revela-se
como um saber de algo não empírico e que se afigura como imediato. Este
texto não tem a intenção de sintetizar as teorias dos autores que se
inserem nesse campo e que seguem de um modo ou outra essa orientação,
mas todos eles em geral apelaram para noções algo misteriosas tais como
enteléquias, leis de emergência, élan vital, princípios de evolução
criativa para explicar os processos de emergência (Clayton, 2008, p.
11-25). E o fazem mesmo quando descartam como boa compreensão de mundo o
dualismo que afirma a existência de uma substância imaterial ao lado da
substancialidade material e aceitam que todo o universo habitando pelo
homem está constituído, em última análise, por uma única espécie de
coisa. Ao raciocinarem desse modo, eles recaem na velha metafísica que
se distingue justamente por se fundar na crença de que o pensamento pode
apreender verdadeiramente a essência das coisas por meio de uma
faculdade intuitiva que, outrossim, afigura-se também como algo
misteriosa.
Ainda que não seja possível recensear aqui
as teorias do emergentismo forte, nem total nem parcialmente, é
interessante apresentar um caso clássico que pode ser encarado como
paradigmático. Em A evolução criadora, Bergson, depois de duvidar
que a vida e a evolução venham a ser acessíveis à lógica formal e de
abjurar o mecanicismo como forma exemplar de conhecimento, conclui pela
necessidade de recorrer ao saber originado pelas “formas instintivas de
consciência” para compreendê-los:
O
nosso pensamento lógico, sob sua forma puramente lógica, é incapaz de
representar a verdadeira natureza da vida, o significado profundo do
movimento evolutivo. (...) É necessário, portanto, renunciar a
aprofundar [o conhecimento sobre] a natureza da vida? (...) Mas a linha
de evolução que chega até o homem não é a única. Em outros caminhos, por
sua vez divergentes, foram criadas outras formas da consciência, que
não souberam libertar-se das limitações externas, nem reconquistar a si
mesmas, conforme a inteligência humana, mas que tampouco exprimem menos
qualquer coisa de imanente e de essencial ao movimento evolutivo.
Aproximando-as e em seguida fundindo-as com a inteligência, não
obteríamos assim uma consciência coextensiva da vida que, ao voltar-se
bruscamente para o impulso vital, o qual ela sente atrás de si, é capaz
de obter uma visão integral dele, ainda que fugidia?” (Bergson, 2010, p.
8-11).
Para finalizar
essa seção dois registros devem ser feitos. É preciso mencionar, em
primeiro lugar, que o emergentismo forte, ainda que nem sempre de um
modo transparente, costuma vir acompanhado da crença em forças divinas
imanentes ou transcendentes, as quais seriam responsáveis, em última
análise, pela potencialidade inovadora observada nos diversos estratos
do mundo. E, nesse caso, essa corrente de pensamento, como diz
criticamente um autor que achou por bem reduzir o processo evolutivo
darwinista a um mero algorítmico natural, está se fiando em “ganchos
celestes” — ou seja, “em elevadores milagrosos, não-sustentados e
insustentáveis” — com a finalidade de explicar as mudanças evolutivas
que aconteceram e continuam acontecendo na face da terra (Dennett, 1998,
p. 78). Ao contrário, para ele, essas grandes mudanças, por mais
maravilhosas que pareçam ao olhar humano desprecavido, não são mais do
que um acúmulo milenar de pequenas mutações em que não está ausente
certa aleatoriedade e que sobreviveram por seleção natural.
Em
segundo lugar, é preciso registrar a reação ao emergentismo forte
desenvolvida por aqueles que se atém aos limites da cientificidade
positiva e ao suposto rigor da lógica formal na investigação de todos os
tipos de fenômenos. Segundo essa orientação que se conserva na
perspectiva da ciência moderna, o emergentismo forte vem a ser uma forma
de misticismo que recorre a noções vagas e que introduz intuições
metafísicas no campo da ciência com o intuito de explicar os fenômenos
considerados emergentes (Epstein, 2006, p. 31-33). E o faz porque
identifica emergência com não-dedutibilidade, ou seja, porque abre uma
brecha lógica — uma lacuna misteriosa — entre o todo e as partes,
afirmando a impossibilidade de inferir as propriedades do todo a partir
das propriedades das partes por meio de construtos lógicos adequados.
Para não cortejar o irracional, ficam então com o emergentismo fraco,
sustentando que pelo termo emergência deve-se entender simplesmente
“geração recursiva”. Ou seja, afirmam que os fenômenos emergentes são
padrões macroscópicos relativamente estáveis gerados por interações das
partes microscópicas de certos sistemas ditos complexos, em geral
formados por grandes conjuntos de elementos heterogêneos entre si.
Convêm também que esses processos interativos podem ser tranquilamente
apreendidos por meio de derivações algorítmicas que os apreendem
proposicional e formalmente. Nessa perspectiva, certos autores —
diferentemente de Bertalanffy que reconhece no mutualismo uma
característica do mundo real — identificam o dedutivismo que acolhe a
complicação como um reducionismo ampliado (não analítico em sentido
estrito), passando a afirmar que a teoria dos sistemas é também, em
última análise, um reducionismo, ainda que altamente sofisticado.
Assalto à razão
Lukács,
no segundo capítulo do livro que leva esse mesmo título, indica como o
termo irracionalismo surgira na filosofia idealista alemã (Lukács,
1968). Menciona a existência de um contexto em que o pensamento
reflexivo está na presença de certos processos que envolvem origem e
originado, gerador e gerado, projeto e projetado, de tal modo que, para
ele, entre esses polos disjuntos parece haver “um interstício vazio e
obscuro”. Segundo Lukács, diante desse problema, Fichte, em sua Teoria da ciência,
escrevera que o pensamento assim se encontra diante de algo que ele
próprio “chamaria, de um modo um pouco escolástico, mas bastante
expressivo, (...) de projectio per hiatum irrationalem” (apud
Lukács, 1968, p. 76). Ora, é evidente que o hiato aí referido como
irracional não decorre de uma percepção meramente episódica daquele
filósofo germânico, mas consiste numa expressão que aponta para o
aparecimento de lacunas, as quais surgem inevitavelmente na apreensão de
processos projetivos, generativos e transformativos.
Lukács
nota, em sequência, que essa mesma questão aparece nos textos de Hegel
quando ele polemiza com o emprego do “saber imediato” como recurso para o
fechamento de hiatos espantosos que surgem no curso de argumentações
teóricas — admitidamente lógicas. Não, porém, porque pretenda endossar a
sugestão de Fichte, mas sim, justamente, porque quer superá-la.
Ao criticar o entendimento (Verstand),
em particular mesmo quando este atua no campo da matemática, Hegel
notara que esse modo de pensamento, o qual abomina a contradição, nunca
deixa de cair em contradição. Eis aqui o que escreveu sobre a aplicação
do método matemático (aquele que se vale de axiomas, teoremas,
construções e provas) num dos campos em que tem condições ideais para
prosperar: a geometria, “no seu curso — o que é muito digno de nota —
choca-se finalmente com incomensurabilidades e irracionalidades, onde,
se quiser seguir adiante no determinar, é impelida para além do
princípio do entendimento” (Hegel, 1995, p. 363; apud Lukács, 1968, p.
77). Ou seja, mesmo a geometria, quando encontra lacunas no raciocínio,
passa a se valer de intuições e postulados. Nos campos em que o
pensamento tende ao formalismo, o entendimento mostra-se bem contido já
que aí ele quer ser rigoroso ao máximo. Em outras esferas, porém, ele se
mostra bem menos exigente. “Outras ciências quando chegam ao limite de
seu prosseguir (...) — o que lhes sucede necessariamente e com frequência (...) — encontram facilmente uma saída. Rompem a consequência
de seu prosseguir e tomam de fora o que necessitam – muitas vezes o
contrário do que precedeu – da representação, da opinião, da percepção
ou donde for” (Hegel, 1995, p. 363).
Nessa exposição
do que ocorre no caminho do raciocínio formal segundo a sua própria
ordem lógica — é preciso perceber —, foi assumido que o próprio
entendimento vem a ser o racional e que a postulação e a intuição (no
campo da matemática) vêm a ser aquilo que o transcende, sem perturbá-lo
no interior de seus próprios limites. Como tais recursos estão além do
estritamente lógico, Lukács, lendo o que diz o próprio Hegel, vê neles
as marcas indeléveis do irracionalismo. Assim, o surgimento de hiatos no
curso do pensamento intelectivo, os quais se afiguram para ele como
obstáculos logicamente insuperáveis, faz com que recorra, conforme o
campo em que opera, à intuição, à fé, à revelação, etc., de tal modo que
o racional passa assim no não-racional e no irracional.
Hegel,
ademais, vê aí uma inversão terminológica: “o que se chama racional é o
que pertence ao entendimento, mas se chama irracional o que é, antes,
um indício e vestígio da racionalidade” (Hegel, 1995, p. 363; apud
Lukács, 1968, p. 77). É evidente que essa interversão conceitual demanda
um melhor esclarecimento; como este, entretanto, não pode ser dado
imediatamente, deve permanecer como uma pendência que apenas poderá ser
eliminada num certo momento do evolver da argumentação já encetada.
Pode-se dizer de imediato, porém, que Hegel convém que o entendimento
encontra limites, não se comporta adequadamente diante deles, pois fica
aí ou tentar ir além, assim caindo de qualquer modo, direta ou
indiretamente, em irracionalismos. E que ele próprio visa um
conhecimento superior e autoconsciente que sabe desses limites e de como
ultrapassá-los, assim como sobre sua própria relação com os conteúdos
considerados e que, em consequência, não tropeça em irracionalidades. É
esse conhecimento que chama de dialético.
Para Lukács,
ademais, o entendimento pode ser bem mistificador, pois ele
eventualmente chama o “saber imediato” do qual se vale para ir adiante
de saber super-racional. Por isso, escreve que o pensamento
identificante “detém-se precisamente nesse ponto, faz do problema algo
absoluto, converte os limites do conhecimento intelectivo,
petrificando-os, em limites do conhecimento em geral; mistifica o
problema, converte-o assim, artificiosamente, em insolúvel, fazendo dele
uma solução ‘super-racional’” (Lukács, 1968, p. 77).
Lukács
menciona, então, que Hegel, chegando nesse ponto, faz aparecer um dos
problemas centrais do conhecimento que o método dialético vem apresentar
e resolver. Pois, trás à luz aquilo que, ao mesmo tempo, o limita e o
move. Esse modo de pensamento reconhece que o real apresenta saltos e
que tais transformações qualitativas não podem ser apreendidas pelo mero
raciocínio dedutivo. Mantém a certeza de que é sempre possível avançar,
sabendo também que o conhecimento, eventualmente alcançável com muito
esforço por meio da apreensão das mediações, é sempre aproximativo.
Lukács
fornece uma ilustração com o fito de esclarecer esse ponto — a
limitação do conhecimento —, a qual se afigura precioso para a
argumentação aqui desenvolvida. Eis que Hegel escrevera na Enciclopédia das ciências filosóficas
que o “reino das leis é a imagem quieta do mundo existente ou
manifesto” e que “o fenômeno seja, frente à lei, a totalidade, pois esta
encerra a lei” (apud Lukács, p. 1968, p. 77). Para Hegel, fenômeno diz
respeito a todo o existente — vem a ser a unidade imediata do ser e da
reflexão (ou seja, da aparência e da essência) que inclui em si não
apenas a necessidade, mas também a contingência. Por isso, como o
fenômeno expressa a riqueza inesgotável do real, ele não pode ser
apreendido acabadamente pelo pensamento (mova-se este como entendimento
ou mesmo como razão dialética). O pensamento apreende o evolver dos
processos mundanos por meio de leis — ou seja, de relações necessárias
que regem os fenômenos —, mas essa apreensão da essência do real (e não,
meramente, das conjunções de eventos) tem, mesmo quando se mostra bem
suficiente diante dos propósitos humanos, um caráter de saber
aproximado.
Diante da dificuldade de adequar o
pensamento ao objeto, o entendimento segue dois caminhos alternativos —
assim parece porque cada um deles, de partida, nega o outro
peremptoriamente. Porém, como esses caminhos se cruzam na chegada, ele
deve retornar de certo modo, inevitavelmente, ao ponto de partida
negado. O primeiro deles consiste em se aferrar à lógica formal, em
circunscrever a razão ao entendimento, procurando expulsar da esfera
científica tudo aquilo que não pode ser apresentado pelo método
axiomático-dedutivo (na matemática e na ciência formalizada) ou pelo
método nomológico-dedutivo (na ciência empírica em geral). Nesse caso, o
pensamento conservador se entrincheira no “racionalismo formalista”,
tornando-se, na expressão de Coutinho, agnóstico no que se refere à
possibilidade de compreender em profundidade o mundo realmente
existente. Para tanto, identifica a razão com o intelecto, ou seja, com
aquela forma de pensamento que se mostra adequada, necessária e
suficiente, à mera manipulação técnica ou burocrática de “dados”
(Coutinho, 2010, p. 16-20). Porém, ao escolher esse caminho, ao buscar
apreender apenas as formas aparentes dos fenômenos, o pensamento assim
reduzido põe para si mesmo uma formidável barreira; por causa dela, ele
se atrapalha frequentemente na tarefa de chegar a um conhecimento
consistente da própria realidade. À medida que esta lhe apresenta saltos
qualitativos, estruturais ou processuais, aos quais quer negar
existência enquanto tais, ele cai em contradição — e, assim, tendo
partido de uma posição fortemente racionalista, não pode deixar de
deslizar em seu contrário, ou seja, no irracionalismo – o que,
evidentemente, fica quase sempre implícito.
Considere-se,
por exemplo, o que acontece com o padrão de cientificidade
característico da teoria geral dos sistemas de Bertalanffy. Essa teoria
sustenta, como foi visto, que o mundo real está estruturado em níveis de
complexidade crescente; concebe, assim, este mundo como resultado de um
processo evolutivo que fez nascer, pouco a pouco, ao longo da história
do universo, nível sobre nível, até que chegou às formas mais complexas
conhecidas e que se autoconhecem. Para explicar a emergência de tais
níveis, ela se fia na apresentação matemática dos processos evolutivos —
ou seja, na construção de modelos —, os quais apenas podem dar
expressão à causalidade mecânica inerente à ciência moderna. Fica,
assim, nos limites do que foi denominado de emergentismo fraco. Para
simular o aparecimento de uma determinada configuração macroscópica,
precisa, então, impor formalmente constrangimentos no comportamento dos
elementos microscópicos do sistema considerado por meio de regras que
regulam as suas interações complicadas. Ora, isto só pode ser feito
incorporando no nível microscópico características de comportamento que
advém já do conhecimento do sistema como um todo — pois, em caso
contrário, o resultado da simulação se tornaria absolutamente incerto. A
circularidade é um indicativo de que o raciocínio caiu em contradição:
ele pretendeu produzir uma explicação, mas, em última análise,
apresentou uma tautologia.
O segundo caminho consiste
em reconhecer explicitamente a existência de lacunas na apreensão das
estruturas e dos processos reais por meio do entendimento. Nesse caso,
como esclarece Lukács, o pensamento se depara com uma “necessária e
insuperável — ainda que sempre relativa — discrepância entre a imagem
mental e o original objetivo” (Lukács, 1968, p. 79). Ao enfrentá-la, não
podendo ir além do mesmo modo, transforma essa falha numa
característica intrínseca da própria realidade, diante da qual o
pensamento racional encontra supostamente um limite intransponível.
Assim, a incapacidade do pensamento formal para captar uma determinada
realidade é hipostasiada para convertê-la numa incapacidade do
pensamento enquanto tal, do conhecimento em geral, para dominar a
essência da realidade (Lukács, 1968, p. 79). Segue-se daí que o
entendimento, por não se conformar com a própria incapacidade, obriga-se
a ultrapassar a si mesmo, entrando no domínio de um suposto
conhecimento que ele quer dar a conhecer como super- racional. Ou seja,
para justificar a sua entrada forçada nas sendas do não-racional, o
pensamento enxerga o próprio salto mortal como um “conhecimento
superior”, sob a forma de intuição, princípio metafísico, etc.
Se
a teoria geral dos sistemas é um exemplo das desventuras do pensamento
que transita pelo primeiro caminho, as teorias evolucionistas do
emergentismo forte seguem pelo segundo caminho, não menos hostil a um
saber verdadeiramente racional. Como foi visto anteriormente, elas
acolhem explicitamente a existência de saltos qualitativos nas
estruturas e nos processos da natureza e da sociedade e, para
explicá-los, recorrem sempre a alguma forma de saber imediato capaz de
penetrar misteriosamente na profundidade do ser. Portanto, pode-se dizer
que, por quaisquer dos dois caminhos, para usar uma expressão forte,
chega-se à miséria da razão. Segundo Coutinho que a empregou em sua
crítica ao estruturalismo, o predomínio de uma ou outra posição depende
da situação histórica: “quando atravessa momentos de crise, a burguesia
acentua ideologicamente o momento irracionalista, subjetivista; quando
enfrenta períodos de estabilidade, de ‘segurança’, prestigia as
orientações fundadas num ‘racionalismo formal’” (Coutinho, 2010). Como
está implícito nessa citação – a qual apresenta um problema lógico como
um problema histórico – e como se argumentou anteriormente, tais
momentos não são arbitrários, mas se pertencem um ao outro de modo
indissociável enquanto momentos do entendimento. De qualquer modo,
chegar a apontar a interversão conceitual nos discursos de entendimento
vem a ser um elemento crucial na crítica de ideologia.
Enfim, a dialética
Não
é estranho ao pensamento de Hegel — e de Marx — conceber a formação da
realidade em estratos de complexidade crescente, assim como ajuizar todo
existente como um processo evolutivo ou evolvente. É bem sabido que,
com base nos conceitos de mecanismo, quimismo e organismo, Hegel tratou a
realidade natural como uma hierarquia formada por estruturas cada vez
mais complexas. Os conceitos de estrutura e sistema, portanto, também
não são estrangeiros ao pensamento desses dois autores. Ainda que tenham
ressurgido no desenvolvimento da ciência moderna quando esta precisou
ir além do mecanicismo, como acentuou Kosik, “só a concepção dialética
do aspecto ontológico e gnosiológico da estrutura e do sistema permite
chegar a uma boa solução, evitando os extremos do formalismo matemático,
de um lado, e do ontologismo metafísico, de outro” (Kosik, 1969, p.
38). Este é, pois, o momento de mostrar neste texto como e porque a
dialética vem a ser uma superação progressiva do entendimento, mostrando
que aquilo que antes fora apresentado como “hiato de irracionalidade”
deve ser apreendido, de um modo lógico, como salto racional. Para tanto,
é preciso fazer primeiro uma crítica do alcance dos conceitos de
estrutura e sistema.
Note-se que, em geral, jamais há
uma correspondência perfeita entre as formas lógicas por meio das quais
se apreende e se explica a realidade e essa própria realidade. E o
conhecimento é aproximativo não apenas porque a riqueza do mundo real é
inesgotável, mas também porque este se transforma por meio da criação de
novas formas de existência. Se isto é verdade, então, apenas até certo
ponto, numa primeira aproximação, os conceitos de estrutura e sistema
podem ser adequados para apresentá-la, isto é, com certa plausibilidade e
veracidade. Além desse ponto, eles distorcem a realidade e se tornam
falsos. Pois, a própria realidade sempre escapa das noções que fixam e
imobilizam as determinações reais – ou seja, as determinações possuídas
pela própria realidade enquanto totalidade concreta. Ora, isto não
ocorre apenas com essas duas noções, mas acontece com todas as noções
fixadoras de mundo, pertençam elas ao mecanicismo, ao sistemismo, ou
ainda, a qualquer outra abordagem que se encerre nas fronteiras do
entendimento. Como, além de interconectada, a realidade, ademais, está
em constante transformação e, assim, sabota o conhecimento que, devido
ao seu próprio caráter conservador, quer permanecer válido sem se
transformar. Frente ao constante evolver do mundo real, o saber do
entendimento se mostra limitado e limitador. Os modelos de largo uso nas
ciências naturais e sociais, por exemplo, sejam eles estáticos ou
dinâmicos, atomísticos ou estruturais, nunca deixam de apresentar uma
“imagem quieta do mundo”. Pois, vale generalizar aqui aquilo que Hegel
asseverou, muito apropriadamente, a respeito das leis.
A
dialética é precisamente o pensamento que quer superar o entendimento
e, por isso, se recusa a apreender o mundo por meio de noções fixas e
petrificadas, as quais, em consequência, por isso mesmo, se mostram como
distintas e claras. Sem deixar de tomar o saber provindo do mero
raciocínio como momento necessário do verdadeiro, a dialética propõe
como conhecimento do mundo um modo de apresentação que nunca fica
sossegado e que nunca recorre às simplificações isolantes mesmo ao custo
de certas obscuridades.
Sem querer ir muito longe, é
preciso dizer aqui que esse modo de apresentação de regiões do mundo se
desenvolve com base nos princípios da totalidade pressuposta e da
contradição assumida. E, para tentar explicar esses pontos, vai se
recorrer aqui pesadamente aos textos de dois filósofos contemporâneos,
Karel Kosik e Ruy Fausto, além dos textos do próprio Hegel.
Segundo
Kosik, a dialética mantém como princípio da compreensão do mundo que
este é em si e por si uma totalidade concreta – uma realidade
inexaurível para o conhecimento humano. E esse princípio ontológico fora
já estabelecido por Hegel quando dissera que “tudo o que existe está em
relação, e essa relação é o verdadeiro de toda existência (Hegel, 1995,
p. 255). Ora, isto é de certo modo evidente mesmo para o pensamento
subjetivamente reflexivo que, porém, toma toda relação como conexão
exterior entre fatos. Para a dialética, a relação acima referida é
essencial — e, portanto, interior ao existente — e se manifesta
universalmente no aparecer de todas as coisas. Vem a ser, pois, os
próprios fenômenos que revelam a sua essência, as relações que os
constituem enquanto tais. E se isto se mostra como uma impossibilidade
para o entendimento é porque ele quer apreender os fenômenos
abstratamente.
Esse princípio hegeliano se revela em
toda a sua força quando se visa compreender a relação do todo e das
partes. Enquanto o pensamento mecânico consiste em tomar as partes como
autônomas entre si e em relação ao todo, para o pensamento dialético
cada parte apenas pode ser compreendida como momento do todo. O todo, em consequência, não pode ser entendido como mera agregação, mas apenas
como composição das partes. Por isso, a parte, ao mesmo tempo em que se
define a si mesma como parte, define também o todo. O todo, nessa mesma
medida, só define a si mesmo quando também define as partes. Ele é,
igualmente, momento das partes. Por isso, a dialética encara o todo e as
partes como determinações ontologicamente reflexivas. As partes
isoladas do todo são abstrações “mortas”; igualmente, o todo pensado só
como todo é uma abstração carente de concreticidade. Ora, a primeira
dessas duas alternativas — a que dá prioridade às partes em relação ao
todo — está na base da concepção atomista e reducionista de mundo e a
segunda – a que dá prioridade ao todo em relação às partes – fundamenta a
concepção organicista.
A ciência positiva, implícita
ou explicitamente, pensa o mundo que lhe interessa como coleção de
eventos, os quais sempre se apresentam na experiência segundo supostas
relações de concomitância, sucessão, recorrência, etc. Diante de todas
as regiões do mundo que enfrenta como problema, a sua tarefa consiste,
pois, em apreender os eventos aí ocorrentes, com as suas regularidades,
por meio de expressões funcionais que os captam como se mantivessem
entre si apenas relações exteriores. Essa ciência cresce quando o
conjunto de fatos apropriados desse modo cresce. O seu método
investigativo é analítico e sistemático; o seu método de exposição é
dedutivo. Após condensar a experiência corrente dessa forma, por indução
e generalização, ela se vale da dedução para inferir novos fatos e para
explicar as ocorrências do mundo. Para ela, em consequência, o todo —
que só pode encarar como o conjunto de todos os fatos — apenas pode
permanecer com um horizonte inatingível, ou seja, como algo
incognoscível ou mesmo absurdo.
A dialética, ao
contrário, por pensar tudo o que existe como plexos intrínsecos de
relações, ou seja, como realidade estruturada que se reproduz,
desenvolve e inova em permanente processualidade, encara de modo
diferente a tarefa do conhecimento. Não despreza o saber do
entendimento, mas costuma encarar todos os fatos e todas as relações
entre fatos como momentos aparentes de totalidades em movimento. Por
isso mesmo, não investiga a realidade ficando apenas com o método
analítico e reducionista característico do entendimento, mas trabalha de
um modo que pode ser considerado como analítico e compositivo. Pois,
examina as partes não em isolamento umas das outras, mas em suas
conexões internas, as quais encara como constitutivas das próprias
partes e do todo. Ao investigar a realidade, busca descobrir as
determinações abstratas dos fenômenos, assim como os nexos formadores de
todas as coisas, partindo do concreto aparente que, a primeira vista
sempre se afigura como algo caótico. Essa investigação, entretanto, é
apenas o caminho preparatório para aquilo que a dialética chama de
apresentação, a qual consiste em partir das determinações abstratas
descobertas na investigação para reconstruir o concreto como concreto
pensado de um modo progressivo e enriquecedor.
É assim que Kosik apresenta o método da apresentação dialética empregado por Hegel e Marx:
O
pensamento dialético parte do pressuposto de que o conhecimento humano
se processa num movimento em espiral, do qual cada início é abstrato e
relativo. Se a realidade é um todo dialético e estruturado, o
conhecimento concreto da realidade não consiste em um acrescentamento
sistemático de fatos a outros fatos, e de noções a outras noções. É um
processo de concretização que procede do todo para as partes e das
partes para o todo, dos fenômenos para a essência e da essência para os
fenômenos, da totalidade para as contradições e das contradições para a
totalidade; e justamente nesse processo de correlações em espiral no
qual todos os conceitos entram em movimento recíproco e se elucidam
mutuamente, atinge a concreticidade. (Kosik, 1969, p. 41-42).
A
dialética, além de pressupor a totalidade concreta e de trabalhar em
seu conhecimento para reconstruí-la da melhor maneira possível
— e de
modo infindável pelo menos em princípio
—, assume que a própria
realidade é permeada por contradições. E que, para apreendê-las
convenientemente, é preciso acolhê-las no pensamento e no discurso. Ora,
mas que são as contradições admitidas pela dialética? De imediato,
pode-se dizer que tais contradições não são aquelas que a lógica da
identidade rejeita. A dialética não permite dizer que A seja B e não-B
ao mesmo tempo e nas mesmas circunstâncias. Algo, por exemplo, não pode,
aqui e agora, ser branco e preto. Eis que, precisamente por isso, vem a
ser necessário distinguir bem a negação dialética da negação vulgar.
Para
compreender esse ponto, é preciso ver que a dialética quer apreender as
esferas do mundo em seu modo de devir, como incessante processualidade,
ou seja, como realidades que mudam por lógica própria, sem fixá-las
como inertes e sem tratá-las como meramente históricas. Pois, as
transformações em geral
— em particular, a geração e a corrupção
— são,
para ela, passíveis de compreensão racional
— e não hiatos de
irracionalidade. Para tanto, ela se recusa a ficar no método da ciência
positiva que, para se apropriar do mundo, trabalha com noções rígidas de
coisas e de relações que se afiguram, em última análise, como positivas
e a-históricas; pois, é dessa maneira que o entendimento trabalha em
todos os campos científicos com a pretensão de submeter a si mesmo todas
as ocorrências e todas as regularidades eventualmente apresentadas pelo
mundo. Mas, ela recusa também o pensamento logicamente frouxo que se
volta à temporalidade da história e, para tanto, adota modos de
expressão em que toda noção e toda relação permanece precária e
submetida às mudanças no fluxo dos acontecimentos. Pois, de um modo ou
outro, apresente-se ele como histórico ou como a-histórico, o mundo se
afigura como superfície de “dados” (“fatos”, “eventos” ou
“positividades”), que são devidamente organizados pelo entendimento,
conforme as leis da lógica da identidade.
Para
abranger os modos de mudança
— os saltos qualitativos
— em todas as
esferas, a dialética assume que tudo aquilo que existe está constituído
de modo dúplice, como possibilidade e como efetividade, como
negatividade e como positividade. E que, portanto, é preciso admitir no
discurso da ciência a coexistência de determinações pressupostas e
determinações postas, as quais se negam umas às outras, em todas as
coisas em processo de mudança. Como explica Fausto, para a dialética a
posição é determinação: “o ponto essencial no nível lógico é que (...)
não pode haver compreensão da dialética, sem o movimento do que é
exprimido (posto) e do que não é exprimido (pressuposto). (...) E sem
isso não há dialética” (Fausto, 1983, p. 19). Assim, o objeto do
conhecimento, para ela, pode estar plenamente determinado sem estar
posto e, se está não-posto, difere de si mesmo posto (Fausto, 1987, p.
149-160). Eis aqui, pois, a chave da questão antes levantada: as
contradições acolhidas pela dialética são aquelas existentes entre
determinações pressupostas e postas – e não aquelas em que determinações
opostas estão igualmente postas.
O pensamento
dialético tem certa semelhança com o pensamento aristotélico que admite a
existência de possibilidades objetivas. Este último, para apreender o
movimento, pensa o mundo por meio dos conceitos de potência e de ato.
Para Aristóteles, como bem se sabe, uma coisa é existir em potência;
outra coisa é a existência em ato. E, a mudança em geral é, para ele, a
passagem do ser em potencia para o ser em ato. A semelhança
— e a
diferença
— desses dois modos de aprender o mundo aparece quando se
correlacionam os conceitos de pressuposição e posição da dialética,
respectivamente, aos de potência e ato do aristotelismo.
Ambos
admitem a existência de negações na referência a todas as coisas
produzidas na natureza e na sociedade. Pois, o ser em potência é o
não-ser em ato e o ser em ato é o não-ser em potência. Porém, o
pensamento aristotélico, diferentemente da dialética hegeliana, não
acolhe essas negações como contradições reais. Ao contrário, por não se
afastar suficientemente da lógica formal, ele acolhe tais negações como
se fossem diferentes aspectos do ser em consideração, os quais podem ser
então apreendidos distintamente pelo intelecto humano. Eis que o ser em
potência e o ser em ato são distintos porque, por exemplo, determinada
matéria veio a receber formas diferentes em diferentes circunstâncias e
em diferentes momentos do tempo. Assim, para esse modo de pensamento, a
potência e o ato coexistem, mas, ao mesmo tempo, excluem-se entre si. A
dialética, porém, empenhada em compreender o devir
— e não apenas a
mudança
— pensa as contradições como inscritas nos próprios objetos do
conhecimento
— os quais, assim, se tornam para ela objetos-movimento. A
dialética, por isso, diferentemente do aristotelismo, contempla como
crucial a categoria de negação determinada que expressa, precisamente, a
passagem da pressuposição à posição. Mediante essa lógica, Hegel e Marx
— mas não Aristóteles
— apreendem a lógica de constituição das coisas,
de esferas da realidade e dos níveis de complexidade do mundo, assim
como o movimento daquilo que já está constituído.
Na
esfera do pensamento e da exposição discursiva, a lógica dialética
assume as contradições para não se contradizer. Na esfera do objeto, ela
assume que as contradições são reais. E o faz porque quer aprender
racionalmente as transformações qualitativas e os processos de
emergência por meio da categoria de negação determinada. O entendimento,
ao recusar corretamente à má contradição, recusa também àquela que é
boa, ou seja, aquela que procurar dar expressão ao ser como devir e que
se vale do conceito (no sentido de Hegel). E que, para tanto, diz do ser
que aí está que ele difere de si mesmo enquanto ser que está prenhe de
possibilidades reais. Como as transformações qualitativas e os processos
de emergência confrontam o entendimento, ele se atrapalha: ou procura
se conservar enquanto tal e, assim, acaba caindo em contradição ou
motiva a busca de sua própria ultrapassagem e, assim, se interverte em
irracionalismo.
E essa consideração fecha o círculo
argumentativo iniciado com o problema da superação da ciência moderna,
ou dizendo melhor, da cientificidade newtoniana. A história da ciência
mostrou que essa superação era não apenas possível, mas necessária.
Porém, mostrou também que esse desenvolvimento fracassa em certa medida
quando se mantém na perspectiva estreita
— e burguesa
— de um saber que
apenas quer dominar o mundo, tendo em vista a conservação. A
argumentação acima procurou mostrar que uma superação da ciência moderna
– a qual se caracteriza por ser, ao mesmo tempo, medíocre e altamente
eficaz
—, uma superação que, ademais, contra ela não se revolta
exasperadamente, apenas pode se tornar coerente quando abraça a
dialética – ou seja, a lógica da mudança constitutiva.
= = =
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PRADO, E. F. S. “Três concepções de complexidade”. In:
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Resumo: No
artigo, procura‐se, em primeiro lugar, distinguir a ciência clássica da
teoria dos sistemas, tal como foi formulada por Bertalanffy. Como essa
segunda concepção de ciência apreende o mundo como uma hierarquia de
sistemas de complexidade crescente, ela põe o problema da emergência.
Discutem‐se, em sequência, duas grandes orientações na compreensão desse
problema: o emergentismo fraco e o emergentismo forte. Mostra‐se,
depois, que ambas essas orientações não deixam de chegar a impasses
lógicos, os quais as levam a cair em problemas lógicos: contradições ou
irracionalismos. Trabalhando os conceitos de totalidade e contradição
reflexiva, indica‐se na seção final como a dialética de Hegel e Marx
veio superar aqueles impasses, estabelecendo a possibilidade e a
necessidade de um modo de pensamento que enfrenta o devir — e as
transformações qualitativas — racionalmente.
Palavras-chave: Emergência, método e dialética
Abstract: This
article intends to, first of all, distinguish between classical science
and system theory, as it was formulated by Bertalanffy. As the second
science conception capture the world as a hierarchy of systems with
growing complexity, it poses the problem of emergence. The article
discuss, in sequence, two big orientations in the comprehension of this
problem: the weak emergentism and the strong emergentism. It shows,
then, that both orientations do not avoid logical impasses, wich let
them in logical problems: contradictions or irrationalisms. Working with
the concepts of totality and reflexive contradiction, it indicates in
the ending section how the dialectics of Hegel and Marx overcame that
impasses, establishing the possibility and necessity of a way of
thinking that faces the becoming — and the qualitative transformations —
rationally.
Keywords: Emergency, method and dialectics
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PRADO, E. F. S. “A questão da emergência”. In:
Marx e o marxismo (Niep-Marx). UFF, Niterói, nov/dez 2011.
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