domingo, 12 de fevereiro de 2017

György Lukács, o direito e o irracionalismo: elementos para uma crítica a Carl Schmitt a partir de 'A Destruição da Razão'

Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar as concepções jurídicas e políticas de Carl Schmitt tendo por referência teórica o conceito de irracionalismo, como desenvolvido pelo filósofo marxista György Lukács em A destruição da razão. Para tanto, inicia-se com uma análise da evolução do pensamento lukacsiano nos dois grandes momentos de sua produção teórica marxista, representados por História e consciência de classe e pela Ontologia do ser social, delimitando as formas com que o direito é concebido nesses dois períodos. Em seguida, expõem-se as teses centrais da filosofia irracionalista, entendida como a forma de pensamento característica da etapa imperialista do capitalismo, tendo como características gerais o desprezo do entendimento e da razão, a glorificação da intuição, a teoria aristocrática do conhecimento e a recusa a qualquer ideia de progresso social. Segue-se a premissa de Lukács, que busca compreender a filosofia não como uma sucessão de ideias descolada do desenvolvimento histórico, e tampouco a partir das intenções subjetivas dos autores, mas por meio do papel que objetivamente desempenham em determinado contexto histórico concreto. O uso do referencial contido em A destruição da razão se dá por meio de uma proposta de leitura, na qual a categoria do irracionalismo só adquire sentido pleno se entendida na totalidade da obra de Lukács. Seguindo tal proposta, entende-se que Lukács formula uma ontologia na qual uma racionalidade dialética, cuja gênese categorial está na centralidade do trabalho, permite apreender o desenvolvimento do ser social a partir dos complexos mediadores que se interpõem em seu processo de explicitação, diferenciando-se, mantendo legalidades próprias, mas sob o primado da prioridade ontológica da economia. A essa racionalidade, Lukács contrapõe duas expressões da crise da razão na filosofia burguesa: de um lado, a exasperação da razão, promovida pelo neopositivismo ao selecionar apenas os domínios formais do entendimento como acessíveis à intelegibilidade, e de outro, o irracionalismo, expresso pela recusa in totum da ideia de racionalidade. O último momento do trabalho se dedica a cotejar as ideias de Carl Schmitt em seus pontos de contato com o irracionalismo, a partir da leitura de Lukács sobre o desenvolvimento da sociologia fascista na Alemanha. O irracionalismo de Schmitt encontrar-se-ia expresso, assim, na ideia de uma decisão fundadora do direito irredutível a qualquer tipo de racionalidade, na arbitrariedade de seu conceito do político, identificado com a extensão desmedida do par amigo-inimigo, em sua ideia de que a democracia de massas teria inviabilizado a própria afirmação da democracia e, já no período nazista, na sua ideia de que o führer é e deve ser o fiador de toda a ordem jurídica.

Palavras-chave: Decisionismo, Irracionalismo, György Lukács, Carl Schmitt

Abstract: This thesis aims to examine the legal and political conceptions of Carl Schmitt, referenced theoreticaly by the concept of irrationalism as developed by the Marxist philosopher György Lukács in The destruction of reason. Therefore, it begins with the evolutionary analysis of Lukács´s thought in the two great moments of his Marxist theoretical production, represented by History and Class Consciousness and The Ontology of Social Being, outlining the ways in which Law is designed in these two periods. Then, the central theses of irrationalist philosophy are presented, these understood as a way of thinking which is a feature of the imperialist stage of capitalism, with general characteristics like the contempt of the understanding and reason, the glorification of intuition, the aristocratic theory of knowledge and the rejection of any idea of social progress. It follows the Lukacs´s premise, which try to understand philosophy not as a succession of ideas detached from a historical development, nor from the subjective intentions of the authors, but through the role they objectively play in determined concrete historical context. The use of the referential contained in The Destruction of Reason goes through a reading proposal in which the irrationalism category only acquires its full meaning if understood in the entirely work of Lukács. Following this proposal, it understands that Lukács formulates an ontology in which a dialectical rationality, whose categorical genesis is in at the center of work, allows us to apprehend the development of social being from the complex mediators that stand in its process of explicitation, differentiating, mantaining his own legalities, but under the rule of an ontological priority of the economy. To this rationality, Lukacs opposes two expressions of the crisis of reason in bourgeois philosophy: on the one hand, the exasperation of reason promoted by neopositivism when it selects only the fields of formal understanding as accessible to intelligibility, and on the other, the irrationalism, expressed by the refusal in totum of the idea of rationality. The last moment of the thesis is dedicated to collate the ideas of Carl Schmitt in their contact points with irrationalism, from the Reading of Lukács´s work on the development of the fascist sociology in Germany. Then, Schmitt´s irrationality can be expressly found in the idea of a decision which is in the foundations of Law, irreducible to any kind of rationality, in the arbitrariness of its political concept, identified with the rampant extension of the pair friend-enemy, in its idea that the mass democracy would have made impossible the very own affirmation of democracy and, in the Nazi period, in its idea that the Führer is and must be the guarantor of the entire legal system.

Keywords: Decisionism, Irrationalism, György Lukács, Carl Schmitt.
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SOUZA, Marcel Soares de. György Lukács, o direito e o irracionalismo: elementos para uma crítica a Carl Schmitt a partir de A destruição da razão. Orientadora: Profa. Dra. Jeanine Nicolazzi Phillipi. UFSC, Centro de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-Graduação em Direito, Florianópolis, 2013 (Dissertação de mestrado).
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segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

A questão da emergência



por Eleutério Prado
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Introdução

Parte-se aqui do exame crítico da ciência moderna, mantendo a tese de que esse padrão de cientificidade está fundado numa concepção de mundo o mecanicismo que enseja e mesmo requer a aplicação generalizada do método de explanação que, em outro texto, denominou-se de reducionismo clássico. Concebendo ainda esse método como expressão de uma ideia de ciência incongruente com a de complexidade, busca-se investigar criticamente o rumo do desenvolvimento de certas concepções de mundo que propiciaram o surgimento de novos métodos capazes de ir além do modo moderno de fazer ciência. Procura-se mostrar que a expansão da cientificidade positiva propiciada por essas concepções encontra ainda dificuldades importantes, as quais apenas podem ser superadas retomando os caminhos da dialética hegeliana tal como foi recuperada e redirecionada por Marx.

Já aqui é preciso mencionar, até para evitar confusões terminológicas, que as concepções de complexidade usualmente encontradas na literatura pertinente são bem problemáticas. Normalmente, elas se originam de uma compreensão conservadora de razão e, por isso, se levantam sobre a base de uma visão meramente intelectiva do conhecimento, mesmo se não se eximem de tratar o objeto como realidade densa e não meramente como fenomenalidade aparente. Nessa perspectiva, em primeiro lugar, é preciso notar que se pode entender por complexidade algo que pode ser conhecido e representado por meio de algoritmos; nesse caso, aquilo que é assim entendido será aqui reconhecido pelo termo “complicação”. Em segundo lugar, é preciso observar que também se pode compreender por complexidade aquela propriedade de certos sistemas que faz com que eles não possam ser representados por meio de algoritmos. Essa propriedade vem a ser a mutualidade, a qual se configura como ficará evidente por impedir que tais sistemas possam ser decompostos em suas partes constituintes para serem assim apreendidos enquanto tais, a partir delas. Em consequência, tais sistemas são entendidos, de algum modo, como todos que transcendem e determinam de certo modo as partes constituintes. Por isso mesmo, aquilo que é assim referido será aqui reconhecido pelo termo “mutualidade”.

Ao fim e ao cabo, mesmo já nesse capítulo e mais completamente no estudo como um todo, chega-se à conclusão que se deve compreender complexidade como condição ontológica ou pressuposto material da práxis e, assim, da percepção, do entendimento e da dialética. Nesse sentido, o termo ‘sistema complexo’ só poderá ser empregado, de modo totalmente pertinente, para fazer referência ao objeto da ação e do conhecimento em sua existência real. Por isso mesmo, o conhecimento teórico em geral, seja ele analítico, sistêmico ou dialético, sempre apreende até certo ponto a complexidade do mundo real, nunca deixando de ser algo aproximativo que se mantém sempre em certo nível de abstração e simplicidade (Kosik, 1969, p. 38-39). Inspira essa posição uma consideração de Hegel sobre a “efetividade” que deve ser lida aqui substituindo a expressão “ideia” que nela aparece pela expressão “conteúdo material”; diz esse autor: “no que toca à natureza, não é raro que se costume admirá-la principalmente por causa da riqueza e da complexidade de suas formações. Mas essa riqueza como tal, abstraindo do desdobramento da ideia aí presente, não apresenta nenhum interesse racional mais elevado, e só nos proporciona, na grande complexidade das formações inorgânicas e orgânicas, a intuição da contingência perdendo-se do indeterminado” (Hegel, 1995, p. 271). Nesse sentido, o conhecimento científico em geral só apreende aquilo que pode ser posto numa forma racional e que captura a necessidade e a possibilidade inscritas nos fenômenos sejam eles naturais, sociais ou psicológicos e nunca a mera contingência.

Para conduzir a investigação aqui encetada é preciso retomar certos resultados do estudo anterior sobre a mesma temática (Prado, 2009). E, com esse objetivo, deve-se perguntar logo de início, na primeira seção que se segue, o que se deve entender precisamente por reducionismo clássico. Ao responder a essa questão, discute-se um particular caminho, muito expressivo, e que se tornou bem importante no correr do século XX, para a sua superação um processo atribulado e múltiplo, aliás, em andamento na ciência contemporânea. Um pioneiro no ensaio de ir além do mecanicismo, Bertalanffy, escrevendo sobre ele já na primeira metade do século passado (na verdade, desde os anos 20), apresentou uma nova concepção de ciência a qual ele denominou de teoria geral dos sistemas. E, para melhor especificá-lo e distingui-lo, contrastou-o com a cientificidade dominante desde o século XVII, assinalada por ele mediante o termo “ciência clássica”. Ele próprio acentuou que o reducionismo vinha a ser a característica central da ciência clássica.

Ao apresentar as principais características das teses de Bertalanffy, chega-se inexoravelmente à questão da emergência. Pois, a concepção de mundo que embasa a sua teorização dos sistemas diz que ele não é estruturalmente homogêneo e que, ao contrário, tem de ser apreendido como uma hierarquia de estratos de complexidade crescente. Ora, se assim é, isto requer da ciência em elaboração que ela seja capaz de fornecer explicação para a formação progressiva de tais estratos, os quais surgiram, pouco a pouco, uns a partir dos outros que os antecederam, no evolver do universo até chegar à conformação complexa presentemente conhecida. O tema não é tranquilo; ao contrário, é bem controverso. Descobre-se na literatura pertinente que diferentes autores apresentaram diversas teses sobre a natureza da emergência. Porém, os estudos que buscaram sintetizar o assunto mostram que elas podem ser classificadas em duas grandes orientações explanatórias, as quais são conhecidas como emergentismo fraco e emergentismo forte. Procura-se explicar o teor dessas duas orientações na segunda seção que se segue.

Na exposição dessas duas grandes correntes de pensamento emergentista não se escapa de enfrentar questões, entre si relacionadas, de ontologia e de lógica. A emergência é sempre um processo contínuo formado de pequenas mudanças ou vem a ser um salto qualitativo? O pensamento é capaz de explicar os processos de emergência por meio de construções dedutivas, logicamente consistente, ou precisa recorrer, diante deles, à intuição e às postulações de ordem metafísica? Ora, essas questões obrigam a enfrentar o grande tema filosófico da compreensão do ser e do devir que encontra em Aristóteles e em Hegel, como vem a ser bem sabido, os seus grandes mestres clássicos. Para abordar esse tema de um modo pertinente, será necessário examinar as antigas teses de Lukács sobre a interversão do racionalismo no irracionalismo, as quais expõem certas dificuldades do pensamento raciocinativo. Eis que essas dificuldades apenas podem ser superadas e essa vem a ser a tese central aqui exposta por meio da dialética que vem de Hegel e Marx. Trata-se do problema e de sua possível solução na penúltima e na última seção deste texto.

Razão sistêmica

Segundo Bertalanffy, a ciência clássica caracteriza-se, sobretudo, por ser estritamente analítica. Em todos os campos do conhecimento, ela “procura isolar os elementos de uma região observável do universo” com a finalidade de descobrir as suas propriedades constitutivas, “esperando, ao pô-los junto de novo, reconstituir o todo, conceitual e experimentalmente, tornando-o inteligível” (Bertalanffy, 2003, p. xix). Nesse sentido, por isso mesmo, ela crê que as propriedades dos todos considerados nas diversas áreas da investigação científica sejam redutíveis às propriedades dos seus elementos componentes, deles decorrendo material e logicamente. A ciência clássica trata os todos como agregações das partes constituintes.

A ciência nova contraria essa orientação passando a enfocar certas regiões observáveis do universo como sistemas, ou seja, como conjuntos integrados de partes que interagem entre si. Atribuindo certo peso ontológico aos todos em consideração, ela entende que “vem a ser requerido não apenas um entendimento dos elementos [que os compõem], mas também as suas inter-relações [constitutivas]” (Bertalanffy, 2003, p. xix). Dito de outro modo, tais todos são caracterizados não apenas por seus componentes elementares, mas também pelos modos de organização em que estes componentes se encontram inseridos e, assim, articulados. Porém, sem se afastar da perspectiva da cientificidade positiva, a teoria geral dos sistemas concentra-se no estudo das interações dinâmicas e complicadas que constituem em processo os todos organizados, os quais são visados por ela como composições e não apenas como meros agregados. Mesmo se afastando de uma perspectiva estritamente atomista na compreensão de mundo, para tanto, essa teoria vale-se ainda da noção de causalidade mecânica da ciência moderna, buscando expressar a formação dos sistemas, privilegiadamente, por meio da matemática dos sistemas dinâmicos (assim como, também, da cibernética, da teoria dos grafos, da teoria dos autômatos, etc.). Nesse sentido, ela contém uma ambiguidade e esta precisará ser esclarecida.

Bertalanffy encara a teoria geral dos sistemas como um novo paradigma (no sentido de Kuhn) e o contrasta com o “paradigma da ciência clássica que é analítico, mecanicista e unidirecional em matéria de causalidade”. Mais do que isso, ele o vê mesmo, pretensiosamente, com uma “nova filosofia da natureza”, a qual se despede da “visão mecanicista de mundo” para adotar uma “visão organicista” que passa a enxergar “o mundo como uma grande organização” (Bertalanffy, 2003, p. xxi).

Por isso mesmo, a teoria geral dos sistemas não se intimida com a acusação de que vem a ser uma abordagem que recai na velha metafísica, pois busca explorar cientificamente os “todos” e as “totalidades” encarando-os explicitamente como sistemas. Bertalanffy, ademais, justifica o aparecimento e o fortalecimento desse modo de pensar de um modo materialista, ainda que enviesado em sentido utilitário e pragmático: ele nascera e crescera por exigência histórica do próprio desenvolvimento da sociedade. A sociedade contemporânea, com as suas modernas tecnologias, tornara-se tão complexa que os velhos métodos científicos surgidos na modernidade deixaram de ser suficientes para tratar de seus problemas mais importantes. É ela própria, pois, que passou a exigir uma abordagem científica mais holística ou sistêmica, mais generalista e mais interdisciplinar. Os ecossistemas, os sistemas sociais, econômicos, políticos, nacionais e internacionais, que se desenvolveram extraordinariamente no século XX reclamaram segundo ele “controle científico”. Ora, os problemas sistêmicos se configuram sempre como “problemas de inter-relação de um grande número de variáveis” (Bertalanffy, 2003, p. xx). Por isso mesmo, esses próprios problemas exigiram o desenvolvimento tanto de ferramentas informais quanto de “teorias matemáticas altamente sofisticadas” capazes de operar com mecanismos complexos que envolvem causação intrincada, retroalimentação negativa e positiva, assim como não-linearidades (Bertalanffy, 2003, p. xxi).

Que problemas são estes que foram notados com certo assombro no desenvolvimento recente da sociedade moderna? Foram aqueles ele mesmo responde que se afiguraram como problemas complexos, não tratáveis pelo método reducionista da ciência moderna. De natureza tecnológica, educacional, burocrática, militar ou outra qualquer, eles surgiram para os mais variados tipos de analistas e gerentes na indústria, na gestão estatal, nas relações internacionais, na guerra, etc.

A teoria geral dos sistemas não se apresenta primariamente como uma ontologia, ainda que não se recuse a admitir que os sistemas reais existam independentemente dos observadores e que eles vêm a ser apreendidos por meio da observação. Enfatiza, em contradistinção, que há também os sistemas simbólicos abstratos, existentes, por exemplo, no interior da própria ciência e da matemática, os quais ela encara tipicamente como construções conceituais. Situando-se, em consequência, na perspectiva da razão subjetiva e construtiva, o autor dessa teoria registra então, com certa contradição, que os sistemas reais não são objetos da percepção ou da observação direta, mas sim que são objetos construídos pela mente humana com base em “fatores mentais” intrínsecos, assim como em herança linguística e cultural, os quais determinam “como atualmente vemos ou percebemos” os fenômenos do mundo real (Bertalanffy, 2003, p. xxi). Com uma mesma chave argumentativa, ele encerra assim a ontologia num espaço bem estreito e abre a porta para a entrada triunfante da epistemologia na consideração dos sistemas complexos.

A teoria geral dos sistemas preocupa-se com a questão do conhecimento nas ciências biológicas, comportamentais e sociais e, por isso, despede-se do atomismo, do fisicalismo e do reducionismo que figuram como características inerentes à ciência clássica, a qual se desenvolvera tal como bem se sabe inicialmente no campo das ciências físicas. Bertalanffy compara essa ciência nova com a ciência clássica mais uma vez. Se o procedimento analítico dessa última requer a decomposição dos todos em componentes elementares e também, em consequência, o emprego da noção de causalidade unidirecional, “a investigação dos todos organizados... requer novas categorias de interação, transação, organização, teleologia, etc.” (Bertalanffy, 2003, p. xxii). E tudo isto suscita não apenas novos problemas de modelagem matemática, mas também novas considerações de ordem epistemológica, as quais advêm intrinsecamente da própria concepção sistêmica de mundo. E aqui, para ser bem fiel ao autor, é preciso citá-lo por extenso:

Outrossim, a percepção não é reflexão da ‘coisa real’ (qualquer que seja o seu status metafísico), e o conhecimento não é simplesmente uma aproximação da ‘verdade’ ou da ‘realidade’. Vem a ser interação entre o conhecedor e o conhecido, a qual é dependente de uma multiplicidade de fatores de natureza biológica, psicológica, cultural, linguística, etc. A física ensina que não há entidades últimas tais como corpúsculos ou ondas, existindo independentemente do observador. Isto gera uma filosofia perspectivista segundo a qual a física, mesmo com o reconhecimento de suas realizações em seu próprio campo e em campos afins, não monopoliza o modo do conhecimento. Contra o reducionismo e contra as teorias que declaram que a realidade ‘não é mais do que’ (uma coleção de partículas, genes, reflexos, tendências ou qualquer outras coisas), vemos a ciência como coleção de perspectivas criadas pelo homem para se relacionar com o universo em que ‘foi lançado’, ou melhor, no qual ele tem de se adaptar devido à evolução e à história, fazendo uso de sua dotação e dependência linguística, cultural e biológica.” (Bertalanffy, 2003, p. xxii).

A citação fala por si, mas é preciso registrar aqui, explicitamente, que este autor, ao abandonar a epistemologia empirista que apresenta o conhecimento como mero reflexo subjetivo dos eventos e conjunções de eventos na mente humana, cai numa forma de relativismo. Ao manter separados e estranhos entre si o sujeito cognoscitivo e o objeto do conhecimento, ao pensar a relação entre eles como relação meramente externa, uma polaridade excludente se impõem ao pensador como resultado de seu próprio modo de pensar raciocinativo: ou o conhecimento e o objeto conhecido são identificados dogmaticamente ou eles são irrevogavelmente diferenciados e, nesse caso, o conhecimento não pode deixar de se afigurar como construção da mente pensante, mesmo ao serem considerados os seus múltiplos condicionamentos cognitivos, sociais e históricos. Ao por ênfase na interação como elemento constitutivo daquilo que existe no mundo do homem, a teoria geral dos sistemas não podia deixar de cair nessa segunda alternativa.

O reducionismo tal como foi definido por Bertalanffy implica no dedutivismo, ou seja, na crença de que os únicos argumentos válidos nas formulações científicas em geral são aqueles que obedecem estritamente as regras da lógica formal. Elas consistem de proposições primeiras que mantêm o caráter de definição ou de fundação (postulados, hipóteses, conjecturas, etc.) e em proposições que delas se derivam mediante aplicação de princípios de inferência universalmente válidos. Algumas das proposições científicas são particulares – por exemplo, quando se referem às condições iniciais associadas à ocorrência de um dado fenômeno mas outras são gerais , por exemplo, quando expressam leis universais ou regras de comportamento com validade circunstancial. De um modo ou outro, as teorias científicas visam produzir proposições particulares com conteúdo factual. Basta ver como Bertalanffy distingue o procedimento analítico tradicional do procedimento lógico da ciência sistêmica, que busca apreender os processos interativos complicados. O primeiro é um caso particular do segundo, o qual é aplicável sempre que “as interações entre as partes sejam inexistentes ou suficientemente fracas para serem negligenciadas” e sempre que o comportamento das partes esteja relacionado ao comportamento do todo de um modo linear (sendo esse último, então, obtido por mera soma) (Bertalanffy, 2003, p. 19). Nessa perspectiva, portanto, o dedutivismo não implica no reducionismo.

O dedutivismo surge como questão e como fonte de dúvida quando se pergunta se as propriedades macroscópicas de um determinado sistema são mesmo explicáveis pelas propriedades microscópicas dos elementos que o compõem, pouco importa se essa derivação é simples, complicada ou muito complicada. Ora, aqui, explicar significa estritamente deduzir: tem-se uma redução explanatória quando as propriedades macroscópicas de um determinado todo são dedutíveis das propriedades microscópicas dos elementos que o compõem, assim como das regras de comportamento a que estão submetidos, além obviamente das configurações e condições iniciais. E isto ocorre porque a perspectiva da teoria geral dos sistemas, ao considerar a organização como elemento estruturador da realidade, implica necessariamente numa compreensão hierárquica do mundo em termos de estratos de complexidade crescente.

Destarte, essa relação de ordens que se sobrepõem umas sobre as outras se manifesta, para ela, já na distinção tradicional entre os estratos físico, orgânico e social do mundo objetivo. De modo mais amplo, eis que Boulding, de modo consistente com a teoria geral dos sistemas, tentara formular uma teoria geral do crescimento, distinguindo no mundo real pelo menos nove níveis de complexidade crescente: estruturas primárias (átomos, moléculas, etc.), mecanismos relojoeiros (máquinas, sistema solar, etc.), mecanismo com controle (termostato, servos-mecanismos, etc.), sistemas abertos simples (células), organismos simples (bactérias, plantas, etc.), animais, homens, sistemas sociais e sistemas simbólicos (linguagem natural, matemática, etc.) (Boulding, 1956).

A questão da emergência

A questão referida na introdução do parágrafo anterior é chave na temática aqui discutida. Ela aparece na literatura pertinente sob um rótulo bem significativo: problema da emergência. Pois aquilo que se manifesta num certo nível da realidade e que se origina supostamente do que ocorre num nível inferior afigura-se possuir certa autonomia em relação a essa base originária. Parece que entre o nível constitutivo e os fenômenos emergentes no nível superior há uma descontinuidade, um salto que se afigura como de difícil explicação ou mesmo, eventualmente, como inexplicável, pelo menos a primeira vista. Aquilo que é emergente vem a ser realmente novo? O que, afinal, está em curso nesse processo em que algo novo ou aparentemente novo sobrevém? Como essa novidade ou aparência de novidade pode ser explicada? Há, de fato, um salto nessa passagem que engendra a novidade? Na busca de respostas para essas perguntas, deve-se confiar ainda nas características do processo de acarretamento tal como este é modelado por meio de deduções complicadas ou se deve recorrer a algo que não cabe nesse procedimento porque ele próprio vem a ser logicamente estreito?

Ao se deixar para trás o reducionismo, se aceita e este é um ponto de partida que os fenômenos emergentes são irredutíveis àqueles fenômenos que admitidamente os originam e que, portanto, eles são verdadeiramente novos. Considera-se, nesse sentido, que tais fenômenos são supervenientes em relação aos elementos originários e que eles são propriamente novos porque têm características diversas das características desses elementos. Ao se admitir que os todos formados a partir de processos que envolvem as partes apresentam novidades reais, fica ainda a questão de saber em que consistem precisamente essas novidades? De qualquer modo, os fenômenos ditos emergentes aparecem para o pensamento analítico como ocorrências intransparentes que não podem ser pensadas clara e distintamente e que, por isso mesmo, são enxergadas por ele como complexas (ou seja, difíceis de entender e de explicar seja por razões de ordem epistemológica ou ontológica). Pela mesma razão certos sistemas são encarados, no mesmo sentido, como sistemas complexos.

O esclarecimento das questões restantes dentre aquelas acima postas resume-se, em última análise, em saber se há ou não um salto qualitativo nos processos de emergência. Na literatura de origem anglo-saxônica que versa sobre a temática da complexidade, costuma-se indicar que duas grandes orientações prevalecem na busca de resposta para essa questão (Clayton, 2008, p. 9-11). Elas precisam ser distinguidas no plano ontológico, ainda que uma delas prefira se expressar melhor no plano epistemológico.

Aquela orientação que não recua diante do compromisso ontológico é denominada de emergentismo forte, enquanto que a outra é classificada como emergentismo fraco. A primeira orientação sustenta que o processo evolutivo da natureza como um todo é responsável pelo aparecimento histórico e sucessivo de novos níveis de complexidade organizacional, os quais apenas podem ser bem distinguidos examinando aquilo que intrinsecamente são. E isto significa que cada um desses níveis tem constituição própria, submete-se a leis características, apresentando propriedades diferenciadas. Para a primeira orientação, portanto, os processos emergentes são saltos distinguíveis ontologicamente. Em contraposição, a segunda orientação o emergentismo fraco concebe as novidades aparecidas no curso do desenvolvimento da natureza como ocorrências que surgem por meio de encadeamentos causais ordinários, podendo ser descritas no plano teórico, em princípio, por meio de construções rigorosamente dedutivas. Se essa orientação distingue também níveis de complexidade crescente no mundo real, estes são entendidos como estruturas que emergem indiretamente por meio das interações dos elementos componentes, as quais são descritíveis ainda mecanicamente.

A teoria geral dos sistemas acima discutida isto fica claro agora se estabelece nos marcos do emergentismo fraco. Ao privilegiar a matemática como forma de expressão teórica, ela assume que os todos por ela considerados emergem por meio das interações das partes, supondo ainda que essas partes assim se definam como tais independentemente do todo. Os sistemas assim considerados, já constituídos enquanto tais, constrangem o comportamento das partes constituintes, não tendo, porém, quaisquer poderes causais próprios; eis que eles, como tais, não podem influenciar determinativamente as partes do modo usualmente conceituado como “causação para baixo”. Essa orientação rejeita terminantemente essa última concepção de causação, ainda que aceite normalmente a ideia de retroalimentação; pois, essa última noção exige somente que o todo possa ser uma fonte de restrição para a parte não vindo, porém, a determiná-la reflexivamente. Pois, para ela, admitir tal noção de causação implicaria em cair em circularidades lógicas, em contradições formais. Portanto, para o emergentismo fraco não existem verdadeiramente saltos nem nos processos da natureza inorgânica e orgânica nem no devir histórico das sociedades. Ele admite, porém, a existência de certas descontinuidades nos processos reais já que por meio deles emergem novas estruturas ou modo de organização.

Os saltos eventualmente observados na experiência do mundo, os quais se afiguram como descontinuidades ontológicas fortes, são considerados como falsas aparências, frutos da falta de conhecimento, enigmas que podem ser resolvidos por meio do desenvolvimento inexorável da ciência positiva. Esse apelo ao progresso do conhecimento como forma de chegar a formulações que dissolvem os saltos em processos gradualistas, em última análise, manifesta de maneira iniludível o caráter epistemológico e formalista do emergentismo fraco. Ademais, como assevera Clayton, “por colocar forte ênfase nas continuidades entre os processos físicos e os processos dos níveis subsequentes, o emergentismo fraco mostra estar próximo do desiderato de uma ciência unitária” (Clayton, 2008, p. 10), ou seja, de uma ciência metodologicamente unificada sabidamente uma aspiração tradicional do positivismo.

Nessa perspectiva, o modo de explicação dos fenômenos a ser empregado nas esferas inorgânica, orgânica e social do mundo conservar-se-ia sempre o mesmo. O que realmente vem diferenciar a ciência nova da ciência tradicional vem a ser a disponibilidade de novas técnicas de processamento da informação, as quais permitem modelar processos interativos complicados ou mesmo extraordinariamente complicados com base em simulações. O propósito da ciência, assim desenvolvida, vem a ser reconstruir os processos naturais por meios de modelos artificiais: eis que a vida, assim, é tentativamente reconstruída de modo computacional como vida artificial, a sociedade, como sociedade artificial e a mente, como mente artificial. E esse tipo de expansão da cientificidade positiva tem sido capaz de suscitar grandes esperanças tecnocráticas de poder vir a resolver os problemas do mundo contemporâneo. Um divulgador norte-americano desse tipo de teoria declarou, com certa ingenuidade, que “o santo graal da ciência da complexidade é entender, predizer e controlar os fenômenos emergentes em particular aqueles potencialmente catastróficos...” (Johnson, 2007, p.5).

Em contraposição, o emergentismo forte acolhe a tese de que a natureza se desenvolve por meio de saltos e que tais mudanças qualitativas são apreensíveis apenas de modo ontológico. Tal com a outra orientação, ela concebe o mundo como resultado de um processo de evolutivo e histórico. Porém, ela o apreende como resultado de um constante evolver pontuado por transformações mais ou menos decisivas que, ao longo do tempo, foi fazendo aparecer novas formas de existência que se caracterizam pelo mutualismo. Em perspectiva diacrônica, veem nesse processo uma tendência geral para uma maior diversificação dos seres do universo, mas em geral não creem que se possa pensar que tudo ocorreu numa sequência de sentido unívoco, sem quaisquer espécies de contramarchas. Os autores que seguem essa orientação usualmente aceitam que o mundo, em perspectiva sincrônica, tem de ser encarado como uma hierarquia de formas de existência que se dispõem segundo uma ordem de mutualidade e complexidade crescente ainda que essa noção algo enevoada comporte também certo grau de ambiguidade.

Como o próprio mundo enquanto objeto científico se mostra ontologicamente heterogêneo, os autores dessa corrente não acolhem o projeto de uma ciência unificada. Contrariando essa normatividade, julgam que é preciso empregar formas distintas de cientificidade nos diversos campos do conhecimento, à medida mesmo que estes se distingam entre si por apresentarem níveis diversos de complexidade e de organização. Para eles, em geral, não se pode apreender adequadamente o mundo, por exemplo, em seus estratos inorgânico, orgânico e social, com base num único procedimento metodológico padrão a saber, tal como se faz usualmente, o método nomológico e dedutivo. Mais do que isso, recusam que seja possível explicar os acarretamentos inerentes aos processos de emergência por meio de raciocínios estritamente dedutivos.

Diferentemente, no afã de explicar os saltos qualitativos que encontram no mundo e que se manifestam ao observador científico não-reducionista, o emergentismo forte fia-se sempre numa forma de saber que, ao fim e ao cabo, revela-se como um saber de algo não empírico e que se afigura como imediato. Este texto não tem a intenção de sintetizar as teorias dos autores que se inserem nesse campo e que seguem de um modo ou outra essa orientação, mas todos eles em geral apelaram para noções algo misteriosas tais como enteléquias, leis de emergência, élan vital, princípios de evolução criativa para explicar os processos de emergência (Clayton, 2008, p. 11-25). E o fazem mesmo quando descartam como boa compreensão de mundo o dualismo que afirma a existência de uma substância imaterial ao lado da substancialidade material e aceitam que todo o universo habitando pelo homem está constituído, em última análise, por uma única espécie de coisa. Ao raciocinarem desse modo, eles recaem na velha metafísica que se distingue justamente por se fundar na crença de que o pensamento pode apreender verdadeiramente a essência das coisas por meio de uma faculdade intuitiva que, outrossim, afigura-se também como algo misteriosa.

Ainda que não seja possível recensear aqui as teorias do emergentismo forte, nem total nem parcialmente, é interessante apresentar um caso clássico que pode ser encarado como paradigmático. Em A evolução criadora, Bergson, depois de duvidar que a vida e a evolução venham a ser acessíveis à lógica formal e de abjurar o mecanicismo como forma exemplar de conhecimento, conclui pela necessidade de recorrer ao saber originado pelas “formas instintivas de consciência” para compreendê-los:

O nosso pensamento lógico, sob sua forma puramente lógica, é incapaz de representar a verdadeira natureza da vida, o significado profundo do movimento evolutivo. (...) É necessário, portanto, renunciar a aprofundar [o conhecimento sobre] a natureza da vida? (...) Mas a linha de evolução que chega até o homem não é a única. Em outros caminhos, por sua vez divergentes, foram criadas outras formas da consciência, que não souberam libertar-se das limitações externas, nem reconquistar a si mesmas, conforme a inteligência humana, mas que tampouco exprimem menos qualquer coisa de imanente e de essencial ao movimento evolutivo. Aproximando-as e em seguida fundindo-as com a inteligência, não obteríamos assim uma consciência coextensiva da vida que, ao voltar-se bruscamente para o impulso vital, o qual ela sente atrás de si, é capaz de obter uma visão integral dele, ainda que fugidia?” (Bergson, 2010, p. 8-11).

Para finalizar essa seção dois registros devem ser feitos. É preciso mencionar, em primeiro lugar, que o emergentismo forte, ainda que nem sempre de um modo transparente, costuma vir acompanhado da crença em forças divinas imanentes ou transcendentes, as quais seriam responsáveis, em última análise, pela potencialidade inovadora observada nos diversos estratos do mundo. E, nesse caso, essa corrente de pensamento, como diz criticamente um autor que achou por bem reduzir o processo evolutivo darwinista a um mero algorítmico natural, está se fiando em “ganchos celestes” ou seja, “em elevadores milagrosos, não-sustentados e insustentáveis” com a finalidade de explicar as mudanças evolutivas que aconteceram e continuam acontecendo na face da terra (Dennett, 1998, p. 78). Ao contrário, para ele, essas grandes mudanças, por mais maravilhosas que pareçam ao olhar humano desprecavido, não são mais do que um acúmulo milenar de pequenas mutações em que não está ausente certa aleatoriedade e que sobreviveram por seleção natural.

Em segundo lugar, é preciso registrar a reação ao emergentismo forte desenvolvida por aqueles que se atém aos limites da cientificidade positiva e ao suposto rigor da lógica formal na investigação de todos os tipos de fenômenos. Segundo essa orientação que se conserva na perspectiva da ciência moderna, o emergentismo forte vem a ser uma forma de misticismo que recorre a noções vagas e que introduz intuições metafísicas no campo da ciência com o intuito de explicar os fenômenos considerados emergentes (Epstein, 2006, p. 31-33). E o faz porque identifica emergência com não-dedutibilidade, ou seja, porque abre uma brecha lógica uma lacuna misteriosa entre o todo e as partes, afirmando a impossibilidade de inferir as propriedades do todo a partir das propriedades das partes por meio de construtos lógicos adequados. Para não cortejar o irracional, ficam então com o emergentismo fraco, sustentando que pelo termo emergência deve-se entender simplesmente “geração recursiva”. Ou seja, afirmam que os fenômenos emergentes são padrões macroscópicos relativamente estáveis gerados por interações das partes microscópicas de certos sistemas ditos complexos, em geral formados por grandes conjuntos de elementos heterogêneos entre si. Convêm também que esses processos interativos podem ser tranquilamente apreendidos por meio de derivações algorítmicas que os apreendem proposicional e formalmente. Nessa perspectiva, certos autores diferentemente de Bertalanffy que reconhece no mutualismo uma característica do mundo real identificam o dedutivismo que acolhe a complicação como um reducionismo ampliado (não analítico em sentido estrito), passando a afirmar que a teoria dos sistemas é também, em última análise, um reducionismo, ainda que altamente sofisticado.

Assalto à razão


Lukács, no segundo capítulo do livro que leva esse mesmo título, indica como o termo irracionalismo surgira na filosofia idealista alemã (Lukács, 1968). Menciona a existência de um contexto em que o pensamento reflexivo está na presença de certos processos que envolvem origem e originado, gerador e gerado, projeto e projetado, de tal modo que, para ele, entre esses polos disjuntos parece haver “um interstício vazio e obscuro”. Segundo Lukács, diante desse problema, Fichte, em sua Teoria da ciência, escrevera que o pensamento assim se encontra diante de algo que ele próprio “chamaria, de um modo um pouco escolástico, mas bastante expressivo, (...) de projectio per hiatum irrationalem” (apud Lukács, 1968, p. 76). Ora, é evidente que o hiato aí referido como irracional não decorre de uma percepção meramente episódica daquele filósofo germânico, mas consiste numa expressão que aponta para o aparecimento de lacunas, as quais surgem inevitavelmente na apreensão de processos projetivos, generativos e transformativos.

Lukács nota, em sequência, que essa mesma questão aparece nos textos de Hegel quando ele polemiza com o emprego do “saber imediato” como recurso para o fechamento de hiatos espantosos que surgem no curso de argumentações teóricas admitidamente lógicas. Não, porém, porque pretenda endossar a sugestão de Fichte, mas sim, justamente, porque quer superá-la.

Ao criticar o entendimento (Verstand), em particular mesmo quando este atua no campo da matemática, Hegel notara que esse modo de pensamento, o qual abomina a contradição, nunca deixa de cair em contradição. Eis aqui o que escreveu sobre a aplicação do método matemático (aquele que se vale de axiomas, teoremas, construções e provas) num dos campos em que tem condições ideais para prosperar: a geometria, “no seu curso o que é muito digno de nota choca-se finalmente com incomensurabilidades e irracionalidades, onde, se quiser seguir adiante no determinar, é impelida para além do princípio do entendimento” (Hegel, 1995, p. 363; apud Lukács, 1968, p. 77). Ou seja, mesmo a geometria, quando encontra lacunas no raciocínio, passa a se valer de intuições e postulados. Nos campos em que o pensamento tende ao formalismo, o entendimento mostra-se bem contido já que aí ele quer ser rigoroso ao máximo. Em outras esferas, porém, ele se mostra bem menos exigente. “Outras ciências quando chegam ao limite de seu prosseguir (...) o que lhes sucede necessariamente e com frequência (...) encontram facilmente uma saída. Rompem a consequência de seu prosseguir e tomam de fora o que necessitam – muitas vezes o contrário do que precedeu – da representação, da opinião, da percepção ou donde for” (Hegel, 1995, p. 363).

Nessa exposição do que ocorre no caminho do raciocínio formal segundo a sua própria ordem lógica é preciso perceber , foi assumido que o próprio entendimento vem a ser o racional e que a postulação e a intuição (no campo da matemática) vêm a ser aquilo que o transcende, sem perturbá-lo no interior de seus próprios limites. Como tais recursos estão além do estritamente lógico, Lukács, lendo o que diz o próprio Hegel, vê neles as marcas indeléveis do irracionalismo. Assim, o surgimento de hiatos no curso do pensamento intelectivo, os quais se afiguram para ele como obstáculos logicamente insuperáveis, faz com que recorra, conforme o campo em que opera, à intuição, à fé, à revelação, etc., de tal modo que o racional passa assim no não-racional e no irracional.

Hegel, ademais, vê aí uma inversão terminológica: “o que se chama racional é o que pertence ao entendimento, mas se chama irracional o que é, antes, um indício e vestígio da racionalidade” (Hegel, 1995, p. 363; apud Lukács, 1968, p. 77). É evidente que essa interversão conceitual demanda um melhor esclarecimento; como este, entretanto, não pode ser dado imediatamente, deve permanecer como uma pendência que apenas poderá ser eliminada num certo momento do evolver da argumentação já encetada. Pode-se dizer de imediato, porém, que Hegel convém que o entendimento encontra limites, não se comporta adequadamente diante deles, pois fica aí ou tentar ir além, assim caindo de qualquer modo, direta ou indiretamente, em irracionalismos. E que ele próprio visa um conhecimento superior e autoconsciente que sabe desses limites e de como ultrapassá-los, assim como sobre sua própria relação com os conteúdos considerados e que, em consequência, não tropeça em irracionalidades. É esse conhecimento que chama de dialético.

Para Lukács, ademais, o entendimento pode ser bem mistificador, pois ele eventualmente chama o “saber imediato” do qual se vale para ir adiante de saber super-racional. Por isso, escreve que o pensamento identificante “detém-se precisamente nesse ponto, faz do problema algo absoluto, converte os limites do conhecimento intelectivo, petrificando-os, em limites do conhecimento em geral; mistifica o problema, converte-o assim, artificiosamente, em insolúvel, fazendo dele uma solução ‘super-racional’” (Lukács, 1968, p. 77).

Lukács menciona, então, que Hegel, chegando nesse ponto, faz aparecer um dos problemas centrais do conhecimento que o método dialético vem apresentar e resolver. Pois, trás à luz aquilo que, ao mesmo tempo, o limita e o move. Esse modo de pensamento reconhece que o real apresenta saltos e que tais transformações qualitativas não podem ser apreendidas pelo mero raciocínio dedutivo. Mantém a certeza de que é sempre possível avançar, sabendo também que o conhecimento, eventualmente alcançável com muito esforço por meio da apreensão das mediações, é sempre aproximativo.

Lukács fornece uma ilustração com o fito de esclarecer esse ponto a limitação do conhecimento , a qual se afigura precioso para a argumentação aqui desenvolvida. Eis que Hegel escrevera na Enciclopédia das ciências filosóficas que o “reino das leis é a imagem quieta do mundo existente ou manifesto” e que “o fenômeno seja, frente à lei, a totalidade, pois esta encerra a lei” (apud Lukács, p. 1968, p. 77). Para Hegel, fenômeno diz respeito a todo o existente vem a ser a unidade imediata do ser e da reflexão (ou seja, da aparência e da essência) que inclui em si não apenas a necessidade, mas também a contingência. Por isso, como o fenômeno expressa a riqueza inesgotável do real, ele não pode ser apreendido acabadamente pelo pensamento (mova-se este como entendimento ou mesmo como razão dialética). O pensamento apreende o evolver dos processos mundanos por meio de leis ou seja, de relações necessárias que regem os fenômenos , mas essa apreensão da essência do real (e não, meramente, das conjunções de eventos) tem, mesmo quando se mostra bem suficiente diante dos propósitos humanos, um caráter de saber aproximado.

Diante da dificuldade de adequar o pensamento ao objeto, o entendimento segue dois caminhos alternativos assim parece porque cada um deles, de partida, nega o outro peremptoriamente. Porém, como esses caminhos se cruzam na chegada, ele deve retornar de certo modo, inevitavelmente, ao ponto de partida negado. O primeiro deles consiste em se aferrar à lógica formal, em circunscrever a razão ao entendimento, procurando expulsar da esfera científica tudo aquilo que não pode ser apresentado pelo método axiomático-dedutivo (na matemática e na ciência formalizada) ou pelo método nomológico-dedutivo (na ciência empírica em geral). Nesse caso, o pensamento conservador se entrincheira no “racionalismo formalista”, tornando-se, na expressão de Coutinho, agnóstico no que se refere à possibilidade de compreender em profundidade o mundo realmente existente. Para tanto, identifica a razão com o intelecto, ou seja, com aquela forma de pensamento que se mostra adequada, necessária e suficiente, à mera manipulação técnica ou burocrática de “dados” (Coutinho, 2010, p. 16-20). Porém, ao escolher esse caminho, ao buscar apreender apenas as formas aparentes dos fenômenos, o pensamento assim reduzido põe para si mesmo uma formidável barreira; por causa dela, ele se atrapalha frequentemente na tarefa de chegar a um conhecimento consistente da própria realidade. À medida que esta lhe apresenta saltos qualitativos, estruturais ou processuais, aos quais quer negar existência enquanto tais, ele cai em contradição e, assim, tendo partido de uma posição fortemente racionalista, não pode deixar de deslizar em seu contrário, ou seja, no irracionalismo – o que, evidentemente, fica quase sempre implícito.

Considere-se, por exemplo, o que acontece com o padrão de cientificidade característico da teoria geral dos sistemas de Bertalanffy. Essa teoria sustenta, como foi visto, que o mundo real está estruturado em níveis de complexidade crescente; concebe, assim, este mundo como resultado de um processo evolutivo que fez nascer, pouco a pouco, ao longo da história do universo, nível sobre nível, até que chegou às formas mais complexas conhecidas e que se autoconhecem. Para explicar a emergência de tais níveis, ela se fia na apresentação matemática dos processos evolutivos ou seja, na construção de modelos , os quais apenas podem dar expressão à causalidade mecânica inerente à ciência moderna. Fica, assim, nos limites do que foi denominado de emergentismo fraco. Para simular o aparecimento de uma determinada configuração macroscópica, precisa, então, impor formalmente constrangimentos no comportamento dos elementos microscópicos do sistema considerado por meio de regras que regulam as suas interações complicadas. Ora, isto só pode ser feito incorporando no nível microscópico características de comportamento que advém já do conhecimento do sistema como um todo pois, em caso contrário, o resultado da simulação se tornaria absolutamente incerto. A circularidade é um indicativo de que o raciocínio caiu em contradição: ele pretendeu produzir uma explicação, mas, em última análise, apresentou uma tautologia.

O segundo caminho consiste em reconhecer explicitamente a existência de lacunas na apreensão das estruturas e dos processos reais por meio do entendimento. Nesse caso, como esclarece Lukács, o pensamento se depara com uma “necessária e insuperável ainda que sempre relativa discrepância entre a imagem mental e o original objetivo” (Lukács, 1968, p. 79). Ao enfrentá-la, não podendo ir além do mesmo modo, transforma essa falha numa característica intrínseca da própria realidade, diante da qual o pensamento racional encontra supostamente um limite intransponível. Assim, a incapacidade do pensamento formal para captar uma determinada realidade é hipostasiada para convertê-la numa incapacidade do pensamento enquanto tal, do conhecimento em geral, para dominar a essência da realidade (Lukács, 1968, p. 79). Segue-se daí que o entendimento, por não se conformar com a própria incapacidade, obriga-se a ultrapassar a si mesmo, entrando no domínio de um suposto conhecimento que ele quer dar a conhecer como super- racional. Ou seja, para justificar a sua entrada forçada nas sendas do não-racional, o pensamento enxerga o próprio salto mortal como um “conhecimento superior”, sob a forma de intuição, princípio metafísico, etc.

Se a teoria geral dos sistemas é um exemplo das desventuras do pensamento que transita pelo primeiro caminho, as teorias evolucionistas do emergentismo forte seguem pelo segundo caminho, não menos hostil a um saber verdadeiramente racional. Como foi visto anteriormente, elas acolhem explicitamente a existência de saltos qualitativos nas estruturas e nos processos da natureza e da sociedade e, para explicá-los, recorrem sempre a alguma forma de saber imediato capaz de penetrar misteriosamente na profundidade do ser. Portanto, pode-se dizer que, por quaisquer dos dois caminhos, para usar uma expressão forte, chega-se à miséria da razão. Segundo Coutinho que a empregou em sua crítica ao estruturalismo, o predomínio de uma ou outra posição depende da situação histórica: “quando atravessa momentos de crise, a burguesia acentua ideologicamente o momento irracionalista, subjetivista; quando enfrenta períodos de estabilidade, de ‘segurança’, prestigia as orientações fundadas num ‘racionalismo formal’” (Coutinho, 2010). Como está implícito nessa citação – a qual apresenta um problema lógico como um problema histórico – e como se argumentou anteriormente, tais momentos não são arbitrários, mas se pertencem um ao outro de modo indissociável enquanto momentos do entendimento. De qualquer modo, chegar a apontar a interversão conceitual nos discursos de entendimento vem a ser um elemento crucial na crítica de ideologia.

Enfim, a dialética

Não é estranho ao pensamento de Hegel e de Marx conceber a formação da realidade em estratos de complexidade crescente, assim como ajuizar todo existente como um processo evolutivo ou evolvente. É bem sabido que, com base nos conceitos de mecanismo, quimismo e organismo, Hegel tratou a realidade natural como uma hierarquia formada por estruturas cada vez mais complexas. Os conceitos de estrutura e sistema, portanto, também não são estrangeiros ao pensamento desses dois autores. Ainda que tenham ressurgido no desenvolvimento da ciência moderna quando esta precisou ir além do mecanicismo, como acentuou Kosik, “só a concepção dialética do aspecto ontológico e gnosiológico da estrutura e do sistema permite chegar a uma boa solução, evitando os extremos do formalismo matemático, de um lado, e do ontologismo metafísico, de outro” (Kosik, 1969, p. 38). Este é, pois, o momento de mostrar neste texto como e porque a dialética vem a ser uma superação progressiva do entendimento, mostrando que aquilo que antes fora apresentado como “hiato de irracionalidade” deve ser apreendido, de um modo lógico, como salto racional. Para tanto, é preciso fazer primeiro uma crítica do alcance dos conceitos de estrutura e sistema.

Note-se que, em geral, jamais há uma correspondência perfeita entre as formas lógicas por meio das quais se apreende e se explica a realidade e essa própria realidade. E o conhecimento é aproximativo não apenas porque a riqueza do mundo real é inesgotável, mas também porque este se transforma por meio da criação de novas formas de existência. Se isto é verdade, então, apenas até certo ponto, numa primeira aproximação, os conceitos de estrutura e sistema podem ser adequados para apresentá-la, isto é, com certa plausibilidade e veracidade. Além desse ponto, eles distorcem a realidade e se tornam falsos. Pois, a própria realidade sempre escapa das noções que fixam e imobilizam as determinações reais – ou seja, as determinações possuídas pela própria realidade enquanto totalidade concreta. Ora, isto não ocorre apenas com essas duas noções, mas acontece com todas as noções fixadoras de mundo, pertençam elas ao mecanicismo, ao sistemismo, ou ainda, a qualquer outra abordagem que se encerre nas fronteiras do entendimento. Como, além de interconectada, a realidade, ademais, está em constante transformação e, assim, sabota o conhecimento que, devido ao seu próprio caráter conservador, quer permanecer válido sem se transformar. Frente ao constante evolver do mundo real, o saber do entendimento se mostra limitado e limitador. Os modelos de largo uso nas ciências naturais e sociais, por exemplo, sejam eles estáticos ou dinâmicos, atomísticos ou estruturais, nunca deixam de apresentar uma “imagem quieta do mundo”. Pois, vale generalizar aqui aquilo que Hegel asseverou, muito apropriadamente, a respeito das leis.

A dialética é precisamente o pensamento que quer superar o entendimento e, por isso, se recusa a apreender o mundo por meio de noções fixas e petrificadas, as quais, em consequência, por isso mesmo, se mostram como distintas e claras. Sem deixar de tomar o saber provindo do mero raciocínio como momento necessário do verdadeiro, a dialética propõe como conhecimento do mundo um modo de apresentação que nunca fica sossegado e que nunca recorre às simplificações isolantes mesmo ao custo de certas obscuridades.

Sem querer ir muito longe, é preciso dizer aqui que esse modo de apresentação de regiões do mundo se desenvolve com base nos princípios da totalidade pressuposta e da contradição assumida. E, para tentar explicar esses pontos, vai se recorrer aqui pesadamente aos textos de dois filósofos contemporâneos, Karel Kosik e Ruy Fausto, além dos textos do próprio Hegel.

Segundo Kosik, a dialética mantém como princípio da compreensão do mundo que este é em si e por si uma totalidade concreta – uma realidade inexaurível para o conhecimento humano. E esse princípio ontológico fora já estabelecido por Hegel quando dissera que “tudo o que existe está em relação, e essa relação é o verdadeiro de toda existência (Hegel, 1995, p. 255). Ora, isto é de certo modo evidente mesmo para o pensamento subjetivamente reflexivo que, porém, toma toda relação como conexão exterior entre fatos. Para a dialética, a relação acima referida é essencial e, portanto, interior ao existente e se manifesta universalmente no aparecer de todas as coisas. Vem a ser, pois, os próprios fenômenos que revelam a sua essência, as relações que os constituem enquanto tais. E se isto se mostra como uma impossibilidade para o entendimento é porque ele quer apreender os fenômenos abstratamente.

Esse princípio hegeliano se revela em toda a sua força quando se visa compreender a relação do todo e das partes. Enquanto o pensamento mecânico consiste em tomar as partes como autônomas entre si e em relação ao todo, para o pensamento dialético cada parte apenas pode ser compreendida como momento do todo. O todo, em consequência, não pode ser entendido como mera agregação, mas apenas como composição das partes. Por isso, a parte, ao mesmo tempo em que se define a si mesma como parte, define também o todo. O todo, nessa mesma medida, só define a si mesmo quando também define as partes. Ele é, igualmente, momento das partes. Por isso, a dialética encara o todo e as partes como determinações ontologicamente reflexivas. As partes isoladas do todo são abstrações “mortas”; igualmente, o todo pensado só como todo é uma abstração carente de concreticidade. Ora, a primeira dessas duas alternativas a que dá prioridade às partes em relação ao todo está na base da concepção atomista e reducionista de mundo e a segunda – a que dá prioridade ao todo em relação às partes – fundamenta a concepção organicista.

A ciência positiva, implícita ou explicitamente, pensa o mundo que lhe interessa como coleção de eventos, os quais sempre se apresentam na experiência segundo supostas relações de concomitância, sucessão, recorrência, etc. Diante de todas as regiões do mundo que enfrenta como problema, a sua tarefa consiste, pois, em apreender os eventos aí ocorrentes, com as suas regularidades, por meio de expressões funcionais que os captam como se mantivessem entre si apenas relações exteriores. Essa ciência cresce quando o conjunto de fatos apropriados desse modo cresce. O seu método investigativo é analítico e sistemático; o seu método de exposição é dedutivo. Após condensar a experiência corrente dessa forma, por indução e generalização, ela se vale da dedução para inferir novos fatos e para explicar as ocorrências do mundo. Para ela, em consequência, o todo que só pode encarar como o conjunto de todos os fatos apenas pode permanecer com um horizonte inatingível, ou seja, como algo incognoscível ou mesmo absurdo.

A dialética, ao contrário, por pensar tudo o que existe como plexos intrínsecos de relações, ou seja, como realidade estruturada que se reproduz, desenvolve e inova em permanente processualidade, encara de modo diferente a tarefa do conhecimento. Não despreza o saber do entendimento, mas costuma encarar todos os fatos e todas as relações entre fatos como momentos aparentes de totalidades em movimento. Por isso mesmo, não investiga a realidade ficando apenas com o método analítico e reducionista característico do entendimento, mas trabalha de um modo que pode ser considerado como analítico e compositivo. Pois, examina as partes não em isolamento umas das outras, mas em suas conexões internas, as quais encara como constitutivas das próprias partes e do todo. Ao investigar a realidade, busca descobrir as determinações abstratas dos fenômenos, assim como os nexos formadores de todas as coisas, partindo do concreto aparente que, a primeira vista sempre se afigura como algo caótico. Essa investigação, entretanto, é apenas o caminho preparatório para aquilo que a dialética chama de apresentação, a qual consiste em partir das determinações abstratas descobertas na investigação para reconstruir o concreto como concreto pensado de um modo progressivo e enriquecedor.

É assim que Kosik apresenta o método da apresentação dialética empregado por Hegel e Marx:

O pensamento dialético parte do pressuposto de que o conhecimento humano se processa num movimento em espiral, do qual cada início é abstrato e relativo. Se a realidade é um todo dialético e estruturado, o conhecimento concreto da realidade não consiste em um acrescentamento sistemático de fatos a outros fatos, e de noções a outras noções. É um processo de concretização que procede do todo para as partes e das partes para o todo, dos fenômenos para a essência e da essência para os fenômenos, da totalidade para as contradições e das contradições para a totalidade; e justamente nesse processo de correlações em espiral no qual todos os conceitos entram em movimento recíproco e se elucidam mutuamente, atinge a concreticidade. (Kosik, 1969, p. 41-42).

A dialética, além de pressupor a totalidade concreta e de trabalhar em seu conhecimento para reconstruí-la da melhor maneira possível e de modo infindável pelo menos em princípio , assume que a própria realidade é permeada por contradições. E que, para apreendê-las convenientemente, é preciso acolhê-las no pensamento e no discurso. Ora, mas que são as contradições admitidas pela dialética? De imediato, pode-se dizer que tais contradições não são aquelas que a lógica da identidade rejeita. A dialética não permite dizer que A seja B e não-B ao mesmo tempo e nas mesmas circunstâncias. Algo, por exemplo, não pode, aqui e agora, ser branco e preto. Eis que, precisamente por isso, vem a ser necessário distinguir bem a negação dialética da negação vulgar.

Para compreender esse ponto, é preciso ver que a dialética quer apreender as esferas do mundo em seu modo de devir, como incessante processualidade, ou seja, como realidades que mudam por lógica própria, sem fixá-las como inertes e sem tratá-las como meramente históricas. Pois, as transformações em geral em particular, a geração e a corrupção são, para ela, passíveis de compreensão racional e não hiatos de irracionalidade. Para tanto, ela se recusa a ficar no método da ciência positiva que, para se apropriar do mundo, trabalha com noções rígidas de coisas e de relações que se afiguram, em última análise, como positivas e a-históricas; pois, é dessa maneira que o entendimento trabalha em todos os campos científicos com a pretensão de submeter a si mesmo todas as ocorrências e todas as regularidades eventualmente apresentadas pelo mundo. Mas, ela recusa também o pensamento logicamente frouxo que se volta à temporalidade da história e, para tanto, adota modos de expressão em que toda noção e toda relação permanece precária e submetida às mudanças no fluxo dos acontecimentos. Pois, de um modo ou outro, apresente-se ele como histórico ou como a-histórico, o mundo se afigura como superfície de “dados” (“fatos”, “eventos” ou “positividades”), que são devidamente organizados pelo entendimento, conforme as leis da lógica da identidade.

Para abranger os modos de mudança os saltos qualitativos em todas as esferas, a dialética assume que tudo aquilo que existe está constituído de modo dúplice, como possibilidade e como efetividade, como negatividade e como positividade. E que, portanto, é preciso admitir no discurso da ciência a coexistência de determinações pressupostas e determinações postas, as quais se negam umas às outras, em todas as coisas em processo de mudança. Como explica Fausto, para a dialética a posição é determinação: “o ponto essencial no nível lógico é que (...) não pode haver compreensão da dialética, sem o movimento do que é exprimido (posto) e do que não é exprimido (pressuposto). (...) E sem isso não há dialética” (Fausto, 1983, p. 19). Assim, o objeto do conhecimento, para ela, pode estar plenamente determinado sem estar posto e, se está não-posto, difere de si mesmo posto (Fausto, 1987, p. 149-160). Eis aqui, pois, a chave da questão antes levantada: as contradições acolhidas pela dialética são aquelas existentes entre determinações pressupostas e postas – e não aquelas em que determinações opostas estão igualmente postas.

O pensamento dialético tem certa semelhança com o pensamento aristotélico que admite a existência de possibilidades objetivas. Este último, para apreender o movimento, pensa o mundo por meio dos conceitos de potência e de ato. Para Aristóteles, como bem se sabe, uma coisa é existir em potência; outra coisa é a existência em ato. E, a mudança em geral é, para ele, a passagem do ser em potencia para o ser em ato. A semelhança e a diferença desses dois modos de aprender o mundo aparece quando se correlacionam os conceitos de pressuposição e posição da dialética, respectivamente, aos de potência e ato do aristotelismo.

Ambos admitem a existência de negações na referência a todas as coisas produzidas na natureza e na sociedade. Pois, o ser em potência é o não-ser em ato e o ser em ato é o não-ser em potência. Porém, o pensamento aristotélico, diferentemente da dialética hegeliana, não acolhe essas negações como contradições reais. Ao contrário, por não se afastar suficientemente da lógica formal, ele acolhe tais negações como se fossem diferentes aspectos do ser em consideração, os quais podem ser então apreendidos distintamente pelo intelecto humano. Eis que o ser em potência e o ser em ato são distintos porque, por exemplo, determinada matéria veio a receber formas diferentes em diferentes circunstâncias e em diferentes momentos do tempo. Assim, para esse modo de pensamento, a potência e o ato coexistem, mas, ao mesmo tempo, excluem-se entre si. A dialética, porém, empenhada em compreender o devir e não apenas a mudança pensa as contradições como inscritas nos próprios objetos do conhecimento os quais, assim, se tornam para ela objetos-movimento. A dialética, por isso, diferentemente do aristotelismo, contempla como crucial a categoria de negação determinada que expressa, precisamente, a passagem da pressuposição à posição. Mediante essa lógica, Hegel e Marx mas não Aristóteles apreendem a lógica de constituição das coisas, de esferas da realidade e dos níveis de complexidade do mundo, assim como o movimento daquilo que já está constituído.

Na esfera do pensamento e da exposição discursiva, a lógica dialética assume as contradições para não se contradizer. Na esfera do objeto, ela assume que as contradições são reais. E o faz porque quer aprender racionalmente as transformações qualitativas e os processos de emergência por meio da categoria de negação determinada. O entendimento, ao recusar corretamente à má contradição, recusa também àquela que é boa, ou seja, aquela que procurar dar expressão ao ser como devir e que se vale do conceito (no sentido de Hegel). E que, para tanto, diz do ser que aí está que ele difere de si mesmo enquanto ser que está prenhe de possibilidades reais. Como as transformações qualitativas e os processos de emergência confrontam o entendimento, ele se atrapalha: ou procura se conservar enquanto tal e, assim, acaba caindo em contradição ou motiva a busca de sua própria ultrapassagem e, assim, se interverte em irracionalismo.

E essa consideração fecha o círculo argumentativo iniciado com o problema da superação da ciência moderna, ou dizendo melhor, da cientificidade newtoniana. A história da ciência mostrou que essa superação era não apenas possível, mas necessária. Porém, mostrou também que esse desenvolvimento fracassa em certa medida quando se mantém na perspectiva estreita e burguesa de um saber que apenas quer dominar o mundo, tendo em vista a conservação. A argumentação acima procurou mostrar que uma superação da ciência moderna – a qual se caracteriza por ser, ao mesmo tempo, medíocre e altamente eficaz , uma superação que, ademais, contra ela não se revolta exasperadamente, apenas pode se tornar coerente quando abraça a dialética – ou seja, a lógica da mudança constitutiva.

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Referências
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Resumo: No artigo, procura‐se, em primeiro lugar, distinguir a ciência clássica da teoria dos sistemas, tal como foi formulada por Bertalanffy. Como essa segunda concepção de ciência apreende o mundo como uma hierarquia de sistemas de complexidade crescente, ela põe o problema da emergência. Discutem‐se, em sequência, duas grandes orientações na compreensão desse problema: o emergentismo fraco e o emergentismo forte. Mostra‐se, depois, que ambas essas orientações não deixam de chegar a impasses lógicos, os quais as levam a cair em problemas lógicos: contradições ou irracionalismos. Trabalhando os conceitos de totalidade e contradição reflexiva, indica‐se na seção final como a dialética de Hegel e Marx veio superar aqueles impasses, estabelecendo a possibilidade e a necessidade de um modo de pensamento que enfrenta o devir e as transformações qualitativas racionalmente.

Palavras-chave: Emergência, método e dialética

Abstract: This article intends to, first of all, distinguish between classical science and system theory, as it was formulated by Bertalanffy. As the second science conception capture the world as a hierarchy of systems with growing complexity, it poses the problem of emergence. The article discuss, in sequence, two big orientations in the comprehension of this problem: the weak emergentism and the strong emergentism. It shows, then, that both orientations do not avoid logical impasses, wich let them in logical problems: contradictions or irrationalisms. Working with the concepts of totality and reflexive contradiction, it indicates in the ending section how the dialectics of Hegel and Marx overcame that impasses, establishing the possibility and necessity of a way of thinking that faces the becoming
and the qualitative transformations rationally.

Keywords: Emergency, method and dialectics
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PRADO, E. F. S. “A questão da emergência”. In: Marx e o marxismo (Niep-Marx). UFF, Niterói, nov/dez 2011.
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