segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Breve crônica natalina: a data por excelência do anticapitalismo romântico


por Paulo Ayres

Independente da questão se o Natal é uma data que pertence a Horus, Jesus ou Papai Noel, essas últimas semanas do calendário em que ocorrem os solstícios (de Verão aqui e Inverno no Hemisfério Norte) produzem uma movimentação anual peculiar que afetam visivelmente o ritmo do comércio e a vida cotidiana das pessoas. Muito já se escreveu sobre essa época, sobre o tal espírito natalino e todo o pacote de características culturais que se afirmaram como uma tradição. É a data que, por se pautar nesse tal espírito comunitário, joga na nossa cara de maneira intensa como é hipócrita e rebaixada do ponto de vista humano a nossa vidinha cotidiana nesse mundo capitalista. Mas isso é assim desde que o capitalismo se afirmou como modo de produção consolidado e o protesto romântico ecoou como um canto desprovido de coesão racional, gerando duas melodias que, entre outras coisas, se posicionam distintamente sobre o Natal.

Junto com figuras como a tia que pergunta dos namoros, está o estereótipo - ou seria o arquétipo - do "tio reaça", que declama elogios saudosistas pela ditadura empresarial-militar e faz propaganda eleitoral do Bolsonaro. Evidentemente que, como caricatura, esse é um caso limite e bem delineado do romântico tradicionalista, aquilo que popularmente se chama de conservador, porém, de certo modo, a maior parte de gerações mais velhas tende a se apoiar, em algum grau, em posicionamentos que lhes colocam predominantemente de acordo com o romantismo tradicionalista. Geralmente esta perspectiva, em lugares como o Brasil, se dá pela via da religiosidade tradicional cristã. O Natal (e o período de Natal-Réveillon), deste modo, aparece como um oásis abstratamente humanista onde vamos beber água depois de penar um ano inteiro neste deserto infernal da sociedade mundial capitalista (o adjetivo burguês em muitos casos é ignorado, se fala num abstrato "mundo moderno" ou, em certos casos, até que "sempre foi assim, é a natureza humana etc."). Daí que é a época de festejar uma generosidade, ausente em situações corriqueiras, e lembrar que há pessoas vivendo na miséria etc. Mas não se engane com os estereótipos psicologistas e maniqueístas: o tiozão reaça também pode ficar de coração mole e falar mal do consumismo, da competição absurda etc. nesse período. O mundo está em ruínas para o romântico tradicionalista. Ele suspira pela Tradição, Família e Propriedade; e percebe que as duas primeiras tem o seu ponto de celebração neste pequeno espaço nos finais de ano. Este anticapitalismo romântico louva o Natal por proporcionar isso, pois enxerga nesse espírito natalino um espírito anticapitalista ou, para além da lógica do capital (da "realidade moderna" ou "mundana").

Na outra linhagem do protesto romântico está o arquétipo da "prima lacradora". Em maior ou menor grau, o fato é que aqui está a juventude que é geralmente universitária, hipster, bicho-grilo, engajada e "de esquerda". Sabemos que na turma da ciranda, sob um rótulo "de esquerda", há uma gradação progressista entre socialistas e liberais que borra e confunde. O anticapitalismo romântico progressista, entretanto, é necessariamente liberal. Pressupõe, em alguma medida, a concepção (antropológica, política, moral etc.) do individualismo. A reunião de família, com efeito, é um prato cheio para os textões de indignação; o encontro com os parentes conservadores e, especialmente, algum membro mais reacionário da família que é visto pelo sujeito como o Mussolini em vida. É dia de se indignar com o tradicionalismo daquela família "alienada", pessoas sem a "luz" (não da razão/Vernunft, mas da vivência, da intuição da totalidade, da Mãe Terra, da Força de Star Wars etc.). Se o tiozão reaça tende a adorar o Natal como um período sagrado de suspensão da vidinha alienada, a prima que é fã do Jean Wyllis, pelo contrário, tende a ver como o período mais profano de todos, em que há o transbordamento da hipocrisia e vamos fingir uma reconciliação e harmonização familiar e comunitária de fachada. O anticapitalismo romântico-progressista, enraizado na concepção individualista (mesmo sem ter consciência disso), vai lá apontar o dedo, bater boca ou simplesmente postar comentários ácidos sobre como os seus parentes vivem no mundo da lua. Faltam-lhes, segundo esse raciocínio, o batismo sagrado chamado "desconstrução", quase uma nova corrente da religiosidade new age.

Obviamento que estamos lidando aqui com abstrações analíticas e indicando tendências. Pode haver, é claro, uma "prima lacradora" que adora o Natal e a reunião familiar de fim de ano e, também, um "tio reaça" que detesta este período e encontrar parentes. A questão é que há estas duas posições do anticapitalismo romântico em relação ao Natal. Sendo a data suprema do anticapitalismo romântico, é até compreensível que os ânimos, às vezes, façam também uma mescla de adoração e repúdio (o assunto sobre a mercantilização do Natal está sempre em pauta). E quando lembramos que a base filosófica contra-iluminista é a mesma nas duas linhagens do anticapitalismo romântico, a gente percebe que, por mais distintos que sejam (não se pode negar os elementos de diferenciação), o tio reaça e a prima lacradora podem ter mais em comum do que imaginam. Há mais elementos de conexão do que pode perceber a nossa vã filosofia irracionalista.
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quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Sobre Proudhon e sua pseudodialética


  Carta de Marx a J. B. Schweitzer[1]

Londres, 24 de Janeiro de 1865

Caro senhor:

Recebi ontem a sua carta, na qual me solicita um julgamento aprofundado sobre Proudhon. A falta de tempo não me permite atender a seu pedido. Entretanto, para lhe demonstrar a minha boa vontade, redigi à pressa um breve esboço. O senhor pode fazer adições ou reduzi-lo; numa palavra: pode fazer com este material o que lhe aprouver[2].

Não me recordo já dos primeiros ensaios de Proudhon. Seu trabalho de escolar sobre a língua universal[3] comprova a falta de cerimônia com que tratava problemas para cuja solução lhe faltavam os conhecimentos mais elementares.

Sua primeira obra, Qu'est-ce que la propriété?[4], é, sem dúvida, a melhor. Ela marcou época, se não pela originalidade do seu conteúdo, ao menos pela maneira nova e audaciosa de dizer coisas antigas. Nas obras dos socialistas e comunistas franceses, que ele conhecia, a propriedade fora, não só, como é natural, criticada sob vários pontos de vista, mas também utopicamente abolida. Com este livro, Proudhon colocou-se, em relação a Saint-Simon e a Fourier, quase no mesmo plano em que Feuerbach se encontra em relação a Hegel. Comparado a Hegel, Feuerbach é muito pobre. Contudo, depois de Hegel, ele assinalou uma época, já que realçou alguns pontos pouco agradáveis para a consciência cristã e importantes para o progresso da crítica, que Hegel deixara em mística penumbra [clair-obscur, em francês].

O estilo de Proudhon, aí, é — permita-me a expressão — vigorosamente musculado, constituindo, no meu entender, a principal qualidade deste estudo. Mesmo nas passagens em que Proudhon limita-se a repetir o conhecido, a simples reprodução é para ele um descobrimento; o que diz é, para ele, original, algo novo, e passa como tal. A audácia provocadora com que ele ataca o “santuário” da economia política, os engenhosos paradoxos com que ironiza a vulgaridade do burguês, seus juízos corrosivos, a ironia amarga, um profundo e sincero sentimento de indignação expresso intermitentemente contra as infâmias da ordem existente, sua convicção revolucionária — todas essas qualidades contribuíram para que Qu'est-ce que la propriété? eletrizasse os leitores e produzisse uma grande impressão, desde o primeiro momento em que viu a luz. Numa história rigorosamente científica da economia política, este texto mal seria mencionado. Mas, como na literatura romanesca, obras sensacionais como esta desempenham um papel na ciência. Pense-se, por exemplo, no livro de Malthus, Sobre a população[5]; sua primeira edição não constitui mais que um panfleto sensacional e, ademais, era um plágio da primeira à última linha. E, apesar de tudo, como esta pasquinada causou impacto sobre o gênero humano!

Se eu tivesse à mão o livro de Proudhon, ser-me-ia fácil demonstrar, com alguns exemplos, a sua maneira inicial de escrever. Nos parágrafos considerados mais importantes por ele mesmo, imita o método das antinomias de Kant — o único filósofo alemão que conhecia naquela época, através de traduções —, oferecendo-nos a sólida impressão de que, assim como Kant, busca a solução das antinomias num mais além do entendimento humano, isto é: a solução permanece obscura para ele mesmo.

Apesar da sua aparência de assalto ao céu, encontra-se em Qu'est-ce que la propriété? esta contradição: de um lado, Proudhon critica a sociedade a partir do ponto de vista do pequeno camponês (mais tarde, pequeno burguês) francês; de outro, aplica a ela a escala que lhe transmitiram os socialistas.

O próprio título indica as deficiências do texto. O problema fora tão mal colocado que a solução não podia ser correta. As “relações de propriedade” dos tempos antigos foram destruídas pelas feudais; e estas, pelas burguesas. Assim, a própria história encarregou-se de submeter à crítica as relações de propriedade do passado. No fundo, Proudhon trata é da moderna propriedade burguesa, tal como existe hoje. À pergunta — o que é a propriedade? — só podia responder com uma análise crítica da economia política, que abarcasse o conjunto dessas relações de propriedade, não em expressão jurídica, como relações de vontade, mas eu sua forma real, isto é, como relações de produção. Mas como Proudhon vinculava a totalidade destas relações ao conceito jurídico geral de “propriedade”, não podia ir além da resposta que Brissot já dera[6], numa obra similar, anterior a 1789, repetindo-a com as mesmas palavras: a propriedade é um roubo.

No melhor dos casos daí se pode deduzir que o conceito jurídico burguês de “roubo”, como violação da propriedade, pressupõe a propriedade, Proudhon enredou-se em toda sorte de elucubrações sobre a verdadeira propriedade burguesa.

Durante minha estância em Paris, em 1844, travei conhecimento pessoal com Proudhon. Menciono aqui o fato porque, em certa medida, sou responsável pela sua sophistication, como os ingleses chamam à adulteração de mercadorias. Em nossas longas discussões, que frequentemente duravam noites, contagiei-o, para grande desgraça sua, com o hegelianismo que, por seu desconhecimento da língua alemã, não podia estudar a fundo. Após a minha expulsão de Paris, o sr. Karl Grün continuou o que eu iniciara. Professor de filosofia alemã, ele tinha sobre mim a vantagem de não entender uma palavra do que ensinava.

Pouco antes da publicação da sua segunda obra importante Philosophie de la misère, Proudhon anunciou-me sua próxima edição numa carta muito detalhada, em que, entre outras coisas, dizia-me o seguinte: “Espero a férula de sua crítica[7]. Com efeito, a minha crítica caiu rapidamente sobre ele (em meu livro Misére de la philosophie, Paris, 1847), de tal forma que pôs fim, para sempre, à nossa amizade.

Como o senhor poderá ver, na sua Philosophie de la misère ou Système des contradictions économiques, Proudhon responde, realmente, pela primeira vez, à pergunta — o que é a propriedade? De fato, somente depois da publicação do seu primeiro livro, Proudhon iniciou seus estudos econômicos; compreendera que, à pergunta em tela, não se podia responder com invectivas, mas por meio de uma análise da economia política moderna. Ao mesmo tempo, tentou expor, dialeticamente, o sistema das categorias econômicas. No seu método de análise, à insolúvel “antinomia” kantiana devia substituir-se, intervindo como meio de desenvolvimento, a “contradição” hegeliana.

O senhor encontrará, na réplica que escrevi em seguida, a crítica aos dois grossos volumes da obra. Nessa réplica demonstro, entre outras coisas, o pouco que Proudhon penetrou nos segredos da dialética científica e até que ponto, por outro lado, compartilha das ilusões da filosofia especulativa, quando, em vez de considerar as categorias econômicas como expressões teóricas de relações de produção históricas e correspondentes a um determinado nível do desenvolvimento da produção material, converte-as, absurdamente, em ideias eternas, preexistentes. Com essa meia-volta, ele retorna ao ponto de vista da economia burguesa[8].

Mais adiante, demonstrei, também, o quanto é insuficiente o seu conhecimento — às vezes, digno de um escolar — da economia política, ciência a cuja crítica se dedica e como, à semelhança dos utopistas, corre atrás de uma pretensa “ciência”, da qual se pode arrancar a priori uma fórmula para a “solução do problema social”, em vez de ir buscar a fonte da ciência no conhecimento crítico do movimento histórico, movimento que cria ele mesmo, as condições materiais da emancipação. Demonstrei, sobretudo, que Proudhon só tem ideias vagas, falsas e parciais sobre o valor de troca, fundamento de toda economia, e como, inclusive, vê na interpretação utópica da teoria de Ricardo a base de uma ciência. Meu juízo sobre a sua concepção geral, resumo-o nas seguintes palavras:

Cada relação econômica tem um lado bom e um lado mau, esse é o único ponto em que o sr. Proudhon não se desmente. O lado bom, ele o vê exposto pelos economistas; o mau, denunciado pelos socialistas. Dos economistas, ele toma a necessidade de relações eternas; dos socialistas, a ilusão de ver na miséria apenas a miséria (em vez de ver nela o lado revolucionário, destrutivo, que há de acabar com a velha sociedade)[9].

Proudhon está de acordo com uns e outros quando se trata de apoiar-se na “autoridade” da ciência. Para ele, a ciência se reduz às magras proporções de uma fórmula científica. É um homem à caça de fórmulas. Assim, o sr. Proudhon jacta-se de oferecer-nos uma crítica da economia política e do comunismo, quando, na realidade, permanece muito abaixo de uma e de outro: dos economistas, porque, como filósofo, de posse de uma fórmula mágica, julga-se dispensado da obrigação de entrar em detalhes puramente econômicos; dos socialistas, porque carece da perspicácia e da coragem necessárias para elevar-se, ainda que apenas no terreno da especulação, para além dos horizontes da burguesia.

Pretende, como homem da ciência, pairar acima de burgueses e proletários, mas não passa do pequeno-burguês que oscila, constantemente, entre o capital e o trabalho, entre a economia política e o comunismo[10].

Por mais severo que possa parecer esse juízo, subscrevo ainda hoje cada uma das suas palavras. Ao mesmo tempo, é preciso recordar que, na época em que afirmei, e demonstrei teoricamente, que o livro de Proudhon era o código do socialismo pequeno-burguês, os economistas e os socialistas o excomungaram como um herético ultrarrevolucionário. Essa é a razão pela qual, posteriormente, jamais fiz coro com os que denunciaram a sua “traição” à revolução. Não foi culpa sua se, incompreendido inicialmente tanto pelos outros como por si mesmo, ele não satisfez expectativas infundadas.

Em contraste com Qu'est-ce que la propriété?, na Philosophie de la misère todos os defeitos do estilo proudhoniano ressaltam particularmente. Estilo ampoulé, como dizem os franceses: sempre que lhe falta a acuidade gaulesa, aparece uma pomposa algavaria especulativa que pretende ser o estilo filosófico alemão. O tom charlatanesco, fanfarrão e vaidoso e, especialmente, o leilão que faz de uma pretensa “ciência”, a bazófia com que a apresenta – tudo isso assombra. O entusiasmo sincero que anima a sua primeira obra é aqui, em inúmeras passagens, substituído sistematicamente pelo ardor febril da declamação. A isso se soma o afã pedante de fazer gala de erudição, afã próprio de um autodidata, cujo orgulho inato por seu pensamento original e independente se perdeu e que, em sua qualidade de parvenu da ciência, orgulha-se do que não é e não tem. E, de sobra, essa mentalidade de pequeno-burguês, que o leva a atacar de um modo indigno, grosseiro, torpe, superficial e até injusto a um homem como Cabet – merecedor de respeito pela sua atividade prática entre o proletariado francês –, enquanto exibe extremos de amabilidade para Dunoyer[11], conselheiro de Estado, é verdade, mas cuja importância se reduz à cômica seriedade com que, em três grossos volumes, insuportavelmente entediantes, prega o rigorismo, caracterizado por Helvetius nestes termos: “On veut que lês malheureux soient parfaits” [Pretende-se que os desgraçados sejam perfeitos].

A revolução de fevereiro foi uma surpresa desagradável para Proudhon, já que ele, poucas semanas antes, demonstrara irrefutavelmente que a “era da revoluções” passara para sempre. No entanto, a sua intervenção na Assembleia Nacional merece elogios, apesar de ter evidenciado o pouco que compreendia do que estava ocorrendo. Efetuada após a insurreição de junho, foi um ato de grande coragem[12]. Sua intervenção teve, além disso, resultados positivos: no discurso que pronunciou em oposição a Proudhon, e que, mais tarde, foi publicado em folheto, o sr. Thiers demonstrou a toda a Europa quão mísero e infantil era o catecismo que servia de pedestal a esse pilar espiritual da burguesia francesa[13]. Comparado ao sr. Thiers, Proudhon adquiria, certamente, as dimensões de um colosso antediluviano.

A descoberta do “crédito gratuito” e do “banco do povo” baseado nele são as últimas “façanhas” econômicas de Proudhon. Na minha Zur Kritik der Politischen Ökonomie (Berlim, 1859, parte primeira, pp. 59-64), demonstrei que a base teórica das ideias proudhonianas tem sua origem na ignorância dos princípios elementares da economia política burguesa, a saber: a relação entre a mercadoria e o dinheiro. Quanto ao edifício erguido sobre essa base, não é mais que uma simples reprodução de esquemas velhos e muito melhor desenvolvidos. Não há dúvida, e é evidente por si mesmo, que o crédito, como ocorreu em inícios do 19, contribuiu para as riquezas passassem das mãos de uma classe às de outra, e que, em determinadas condições econômicas e políticas, poderá ser um fator que acelere a emancipação do proletariado. Mas é uma fantasia genuinamente pequeno-burguesa considerar que o capital que produz juros é a forma principal do capital e tratar de converter uma aplicação particular do crédito – uma suposta abolição do juro – em base de transformação social. Com efeito, essa fantasia já fora minuciosamente desenvolvida pelos porta-vozes econômicos da pequena burguesia inglesa do século 17. A polêmica de Proudhon com Bastiat (1850), sobre o capital que produz juros[14], está muito aquém da Philosophie de la misère. Proudhon consegue ser derrotado até por Bastiat, e entra em furor cômico cada vez que o adversário lhe assesta um golpe.

Há alguns anos, Proudhon escreveu, para um concurso organizado, se bem me recordo, pelo governo de Lausanne, uma trabalho sobre impostos[15]. Aí desapareceram, por completo, os últimos vestígios do gênio e nada mais resta que o petit bourgeois tout pur[16].

No que respeita às obras políticas e filosóficas de Proudhon, todas elas apresentam o mesmo caráter ambíguo e contraditório dos seus trabalhos sobre economia. Além do mais, seu valor não ultrapassa as fronteiras francesas. Entretanto, seus ataques à religião, à Igreja etc., possuem um grande mérito, por terem sido escritos na França num época em que os socialistas franceses julgavam oportuno fazer constar que seus sentimentos religiosos os situavam acima do voltaireanismo burguês do século 18 e do ateísmo alemão do século 19. Se Pedro, o Grande, derrotou a barbárie russa com a barbárie, Proudhon fez o que pôde para derrotar com frases a fraseologia francesa.

Seu texto sobre o golpe de Estado[17] não deve ser considerado, simplesmente, como uma obra ruim, mas como uma verdadeira vilania que, ademais, corresponde plenamente a seu ponto de vista pequeno-burguês. Nesse livro, lisonjeia Luís Bonaparte, procurando torná-lo aceitável aos operários franceses. O mesmo vale para a sua última obra contra a Polônia, na qual, para a maior glória do tsar, demonstra o cinismo próprio de um cretino[18].

Frequentemente, Proudhon foi comparado a Rousseau. Nada tão falso. Está mais próximo a Nicholas Linguet, cujo livro Théorie des lois civiles é uma obra genial[19].

Proudhon possuía uma inclinação natural para a dialética. Mas nunca compreendeu a verdadeira dialética científica — não foi além dos sofismas. Na verdade, isso se explica pela sua mentalidade pequeno-burguesa. À semelhança do historiógrafo Raumer, o pequeno-burguês constitui-se de “por uma parte” e “por outra parte”. Como tal se nos revela em seus interesses econômicos e, logo, também em sua política e em suas concepções religiosas, científicas e artísticas. Assim nos aparece em sua moral e so in everything[20]. É a contradição personificada. E se é, além disso, como Proudhon, uma pessoa de espírito, logo aprenderá a fazer prestidigitação com as suas próprias contradições e convertê-las, segundo as circunstâncias, em paradoxos inesperados, espetaculares, ora escandalosos, ora brilhantes. Charlatanismo científico e oportunismo político são elementos inseparáveis de semelhante posição. A homens assim só resta um estímulo: a vaidade. Como a todos os vaidosos, preocupa-lhes unicamente o êxito momentâneo, a sensação de um dia. E é aí que se perde, fatalmente, o tato moral que sempre preservou Rousseau, por exemplo, de todo compromisso, mesmo aparente, com os poderes estabelecidos[21].

Talvez a posteridade, caracterizando esse período recente da história da França, diga que Luís Bonaparte foi o seu Napoleão e Proudhon o seu Rousseau-Voltaire.

O senhor me atribuiu uma tarefa penosa: o juízo sobre um homem morto, um homem que faleceu há pouco. Debito-lhe a responsabilidade que me foi imposta.

Respeitosamente,
Karl Marx

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Notas agregadas:
[1] Imediatamente após a morte de Proudhon (16 de janeiro de 1865), Scweitzer e W. Liebknetch pediram a Marx uma nota necrológica para o Social-Demokrat (cf. “Prefácio à primeira edição alemã” da Miséria da filosofia). O jornal publicou sem modificações esta carta de Marx, nas suas edições de 1, 3 e 5 de fevereiro de 1865. Numa carta a Engels, de 25 de janeiro, Marx comentou: “Atendendo a um pedido urgente de Schweitzer (...) remeti-lhe, ontem, um artigo sobre Proudhon. Você verá que alguns golpes bem fortes, aparentemente dirigidos a Proudhon, atingem o nosso Aquiles, a quem eram destinados”. Aquiles é referência a Lassalle.
[2] Quando da publicação da carta, a redação do Social-Demokrat, aqui, introduziu a seguinte nota: “Consideramos preferível publicar a carta sem qualquer modificação”.
[3] Trata-se do ensaio de Proudhon sobre gramática comparada, publicado no volume de Bergier, Os elementos primitivos das línguas, Besançon, 1838.
[4] Trata-se do texto O que é a propriedade? (ou Pesquisas sobre o princípio do direito e do governo), Paris, 1840.
[5] Trata-se da obra An essay of the principle of population as it affects the future improvement of society, with remarks on the speculations of Mr. Godwin, Mr. Condorcet and others writes, Londres, 1798.
[6] Trata-se da obra de Brissot de Varville, Recherches philosophiques. Sur Le droit propriété ET sur Le vol, considérés dans la nature ET dans la société, publicada no volume 6 da Bibliothèque Philosophique du Législateur, du Politque, du Jurisconsulte, Berlim-Paris-Lyon, 1782.
[7] Marx refere-se à carta de Proudhon que se insere nos Anexos deste volume.
[8] Cf., neste volume, pp. 125-126.
[9] No texto Miséria da filosofia não figura o parênteses introduzido aqui por Marx. Cf. p. 142 deste volume.
[10] Idem.
[11] Cabet: socialista utópico francês, figura de relevo na orientação do movimento operário da França entre os anos de 1830 e 1840. Dunoyer: político e economista vulgar: a obra referida por Marx é De la liberté du travail, ou simple exposé des conditions dans lesquelle les forces humaines s
‘exercent avec le plus de puissance, Paris, 3 volumes, 1845. [12] A intervenção referida por Marx é o discurso de Proudhon à Assembleia Nacional, em 31 de julho de 1848: nele, Proudhon denuncia a repressão aos revolucionários de 23-26 de junho como violência e arbítrio.
[13] Contra as propostas que Proudhon fizera à Comissão Financeira da Assembleia Nacional, Thiers replicou num discurso pronunciado em 26 de julho de 1848. Na Nova Gazeta Renana, de 5 de agosto de 1848, Engels publicou um artigo em que analisava as posições de ambos os políticos (“Discurso de Thiers contra Proudhon”).
[14] Marx se refere ao volume Gratuité du crédit. Discussion entre M. Fr. Bastiat e M. Proudhon, Paris, 1850.
[15] Trata-se da obra Théorie de l’impôt (Question mise au concors par le Conseil d’État du canton de Vaud en 1860), Bruxelas-Paris, 1861.
[16] Em francês: pequeno-burguês puro e simples.
[17] Trata-se do livro La révolution sociale démonstrée par le coup d’État du 2 de décembre, Paris, 1852.
[18] Trata-se da obra Si les Traités de 1815 ont cessé d’exister? Actes du futur congrès, Paris, 1863. Nesta obra, Proudhon protesta contra a revisão do Tratado de 1815 (Congresso de Viena) sobre a Polônia e se volta contra o apoio europeu ao movimento de libertação dos poloneses face à opressão do tsarismo russo. Aliás, sobre a posição dos políticos franceses diante do problema polonês, Marx chegou a observar (em carta a Engels, de 10 de dezembro de 1864) “a permanente traição dos franceses para com a Polônia, de Luís XV a Bonaparte II”.
[19] Essa obra foi publicada em Londres, em dois volumes, em 1767.
[20] Em inglês: então em tudo.
[21] É bem claro que essas últimas frases visam Lassalle.
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MARX, K. “Carta a J. B. Schweitzer”. In: MARX. K.  A miséria da filosofia: resposta à Filosofia da miséria, do sr. Proudhon. Trad. José Paulo Netto. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 259-269.
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terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Divisão do trabalho e burocracia: para a crítica das interpretações sociológicas da burocracia

Resumo: O presente estudo trata, a partir de uma apreensão crítica do debate sociológico, da análise das categorias de “burocracia” e divisão do trabalho. No primeiro momento, o arcabouço conceitual é apresentado tendo como base a interpretação dada pela própria sociologia aos fenômenos. A análise crítica acerca do método sociológico é, neste momento, apresentada de forma pontual. O processo de crítica à interpretação sociológica da burocracia é, na verdade, parte integrante da dinâmica expositiva em sua totalidade. A insuficiência desta interpretação é, no segundo capítulo, desvendada a partir da textualidade de Hegel, Marx e Gramsci, quando os mesmos tratam dos conceitos de burocracia, Estado e Sociedade Civil. Por fim, a “burocratização” é referenciada à categorização marxiana e marxista. Na análise da dinâmica econômica do capitalismo monopolista revela-se uma série de tendências relacionadas à ampliação e complexificação da produção capitalista e da divisão do trabalho. A riqueza conceitual marxista, na apreensão do crescimento das funções parasitárias e gerenciais do capital e das funções improdutivas dos trabalhadores, se contrapõe à interpretação amorfa da “burocracia” realizada pela sociologia.
Palavras-chave: burocracia; divisão do trabalho; marxismo; Max Weber; Michel Crozier; Maurício Tragtenberg.

Abstract: This study analyzes, from a critical understanding of the sociological debate, the categories of "bureaucracy" and division of labor. In the first time the conceptual framework is presented based on the interpretation given by the sociology itself for the phenomena. A critical analysis about the sociological method is now presented in a punctual form. The process of criticism of the sociological interpretation of bureaucracy is actually part of the dynamic exhibition in its entirety. The failure of this interpretation is, in the second chapter, unveiled from textuality of Hegel, Marx and Gramsci, when they deal with the concepts of bureaucracy, State and Civil Society. Finally, the "bureaucracy" is referred to the Marxian and Marxist categorization. In the analysis of the dynamics of economic monopoly capitalism it is a series of trends related to the expansion and complexity of the production and the capitalist division of labor. The wealth conceptual Marxist seizure of the growth of the parasitic functions and management of capital and unproductive functions of workers are in contrast to the amorphous interpretation of the "bureaucracy" conducted by sociology.

Keywords: bureaucracy; division of labor; Marxism; Max Weber; Michel Crozier; Maurício Tragtenberg.
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Arquivo em PDF
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BOTELHO, Marcos Paulo Oliveira. Divisão do trabalho e burocracia: para a crítica das interpretações sociológicas da burocracia. Orientador: José Paulo Netto. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, UFRJ/ESS, 2008. 189 f.
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segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Críticas ao artigo “Marx na floresta”, de Jean Tible


por Lucas Parreira Álvares
Blog da Boitempo

O que para dentro da floresta se grita,
para fora da floresta ecoa.
(Provérbio citado por Marx
em Crítica à filosofia do direito de Hegel – Introdução)

A recém publicada vigésima nona edição da revista Margem Esquerda traz, no interior de seu dossiê – cuja temática é “Lutas indígenas e socialismo” – um artigo intitulado “Marx na floresta”, de autoria de Jean Tible, professor do Departamento de Ciências Políticas da Universidade de São Paulo.

A tese de doutorado de Tible, Marx e América indígena: diálogo a partir dos conceitos de abolição e recusa do Estado (2012), que posteriormente foi adaptada para uma edição em livro com o título Marx selvagem (2013) é, até então, a obra-prima do autor. Isso pois Tible, paradoxalmente à sua renomada experiência acadêmica, é um autor ainda relativamente jovem, cujo imponente tecido teórico será ainda muito ampliado. Diversos outros textos publicados por Tible tiveram uma temática complementar à sua tese de doutorado, como os artigos “Marx e os outros”, “Marx contra o Estado”, “Cosmologias contra o capitalismo: Karl Marx e Davi Kopenawa”, “Marx and Anthropophagy: Notes for a Dialogue Between Marx and Viveiros de Castro”, entre tantos outros – como por exemplo, Marx na floresta, o artigo aqui mencionado. Parece-me, entretanto, que a essência desses textos de Jean Tible já está contida em sua tese de doutorado.

Um estudante no Brasil que eventualmente tenha interesse em pesquisar os aspectos “etnológicos” na obra de Marx, ou então a relação entre Marx e a América indígena, ou mesmo que tenha interesse em investigar os assim chamados “Cadernos etnológicos” de Marx, pode até não concordar com as formulações de Tible, mas se por acaso esse estudante não mencioná-las no espectro de sua revisão bibliográfica, certamente sua pesquisa estará incompleta.

Por isso, escrever um texto em resposta a Jean Tible me parece uma tarefa que contém um caráter dúplice: por um lado, a necessidade de reconhecer a importância dos trabalhos do autor para a temática que nos é comum – a saber: os apontamentos históricos/etnológicos na obra de Marx; por outro lado, desvelar eventuais fragilidades e perigos da abordagem que o autor escolheu trilhar. Para a tarefa que pretendo executar, tomarei como referência o texto “Marx na floresta”, do qual citarei passagens diretas. Mas, é claro, convido o leitor a apreciar integralmente o artigo de Tible publicado na Margem Esquerda. Afinal, mesmo que eu citasse substancialmente o artigo, não conseguiria reproduzi-lo em sua totalidade.

Logo no início do artigo, Tible sugere que sua investigação tem como ensejo “um esboço de outro Marx” (p.34). O autor ecoa Oswald de Andrade em seu Manifesto da poesia pau-brasil para propor um marxismo “contra a cópia, pela invenção e pela surpresa; uma nova perspectiva” (p.34). Percebam como já desse início é possível extrair uma hipótese: as investigações de Marx sobre as perspectivas indígenas aparecem, na interpretação de Jean Tible, como trabalhos que retratam um “outro Marx”. Mas o que tem de “outro” nesse Marx? Acredito ser esse um bom ponto de partida – a saber: analisar em que medida há um distanciamento ou não entre essas investigações e a totalidade da obra de Marx. Guardemos, pois, essa inquietação – que será retomada no decorrer dessa exposição – para nos atentarmos ao seguimento da exposição de Tible.

Na sequência do artigo, o intuito da investigação de Tible envereda para a leitura que Marx fez de Lewis Morgan – autor este compreendido pela antropologia como um dos representantes oitocentistas da corrente assim chamada “evolucionista cultural”. Através da leitura de Ancient Society, obra-prima de Morgan, Jean Tible vai cravar uma nova hipótese: “Pela primeira vez, Marx teve contato com relatos detalhados da existência concreta de uma sociedade sem classes, a dos iroqueses” (p.34-35). Tible sabe muito bem que através da literatura do historiador alemão Georg Maurer, algumas décadas antes de seus Cadernos etnológicos, Marx já havia tido contato com a “existência concreta de uma sociedade sem classes”, afinal, em carta a Engels em março de 1868, Marx – baseado nas investigações sobre Maurer – diz que a era primitiva de cada nação corresponde a uma “tendência socialista, embora aqueles homens eruditos não tivessem ideia de que houvesse qualquer conexão entre elas. Ficam, portanto, surpresos ao descobrir o que é o mais novo no que é o mais velho – mesmo os igualitários, a um ponto que teria feito Proudhon tremer” (MARX, 2006, p.130). Mas Tible tem razão em afirmar que, pela primeira vez, tratou-se de “relatos detalhados” de uma sociedade sem classes, no caso, os Iroqueses. Porém, qual o sentido do tratamento dos Iroqueses na totalidade da obra de Marx?

Ao apresentar os detalhes da edição dos Cadernos etnológicos de Marx organizados por Lawrence Krader, é necessário algumas observações para que as formulações de Krader não se tornem preponderantes. Segundo Jean Tible, “neles [os Cadernos etnológicos], entre 1880 e 1882, Marx transcreveu, anotou e comentou trechos das obras de quatro antropólogos: Morgan, John Budd Phear, Henry Summer Maine e John Lubock” (p.35). Na verdade, Marx não tomou nota nem de apenas quatro autores, e nem esses quatro autores mencionados eram antropólogos. É evidente que esses autores trouxeram contribuições para o que hoje entendemos enquanto “etnologia” (ou antropologia), entretanto conceber tais autores como antropólogos (ou etnólogos) é tão equivocado quanto dizer que Marx também era um etnólogo pelo simples fato de ter contribuições para temáticas que permeiam a etnologia – muito embora Krader atribua esse “título” a Marx em um artigo de 1973 intitulado “Marx as Ethnologist”. O problema aqui não é o fato de que determinado autor seja jurista – por exemplo – e desenvolva trabalhos no âmbito da etnologia, mas sim, esse autor ser apresentado como antropólogo numa época em que sequer a antropologia havia se consolidado enquanto um campo de conhecimento específico.

Dos quatro autores dos Cadernos etnológicos, Phear e Maine eram juristas de formação, inclusive fizeram carreira na área; já Lubbock é um dos percussores da produção de conhecimento arqueológico, sendo um dos responsáveis por conceber a arqueologia como uma disciplina científica; e Morgan, esse sim, mesmo tendo sua formação enquanto jurista, destinou sua carreira para os temas etnológicos. As notas desses quatro autores, na verdade, constituem aproximadamente apenas metade dos cadernos de Marx de 1879 a 1882 que contém informações sobre sociedades não ocidentais e pré-capitalistas. Além dos editados por Krader e mencionados por Tible – e nesse bojo incluo aqui também os Cadernos Kovalevsky (p.35) –, ainda constam anotações dos seguintes autores: o funcionário público colonial Robert Sewell e seus escritos sobre a história indiana; os historiadores e juristas alemães Karl Bücher, Ludwig Friedländer, Ludwig Lange, Rudolf Jhering e Rudolf Sohm sobre a formação do Estado, classe e gênero em Roma e na Europa medieval, o advogado britânico J.W.B. Money e seus estudos sobre a Indonésia; dentre outros trabalhos acerca do que hoje entendemos como antropologia física e paleontologia (ANDERSON, 2010, p.197-198). É notória a intenção de Krader, como antropólogo, em selecionar os textos assim chamados “etnológicos” de Marx para a edição que organizou. Entretanto, me parece que da mesma forma um jurista poderia ter selecionado textos e seu critério e organizado os “Cadernos jurídicos” de Marx, ou que um geólogo pudesse editar os “Cadernos paleontológicos”. A constatação é: apesar dos esforços de Krader, que foram referendados por Tible, os anos finais da vida de Marx não foram destinados apenas aos estudos assim chamados “etnológicos”.

Observações feitas, voltemos ao artigo em questão. Tible crava que “a leitura de Morgan permitiu um deslocamento em Marx” (p.36). Em conformidade com isso, Tible cita Rosemont ao dizer que “os relatos sobre os iroqueses deram-lhe uma vívida atenção sobre a atualidade dos povos indígenas, e talvez até um vislumbre da possibilidade de tais povos darem suas próprias contribuições à luta global pela emancipação humana” (p.36). Marx estava diante do que se tinha de mais sofisticado da “produção etnológica” – por assim dizer – de sua época, e, consequentemente, os relatos sobre os iroqueses deram-lhe um panorama sobre a atualidade dos povos indígenas. Entretanto, não existe nenhum elemento presente nos Cadernos etnológicos de Marx que sustenta a possibilidade – afinal a interpretação é precedida por um “talvez” – de que os relatos sobre os Iroqueses deram-lhe um “vislumbre da possibilidade de tais povos darem suas contribuições à luta global pela emancipação humana”. Percebam: é bem possível que tais povos deem suas contribuições – e particularmente acredito nessa possibilidade – entretanto isso não está subentendido nos Cadernos etnológicos de Marx. Por uma razão simples: os apontamentos “etnológicos” de Marx, embora sejam um elemento precioso de investigação sobre seu pensamento, nada mais são do que extratos, rascunhos e comentários acerca dos autores investigados – o que já é muito. Não me parece viável compreender que Marx, em seus cadernos de pesquisa histórica, teria feito postulações nessa profundidade. Mas claro, coloco-me na condição de compreender tal afirmativa caso seja me demonstrado em quais passagens essa interpretação se sustenta.

Logo em seguida à última citação, Tible diz que tais estudos de Marx se manifestam enquanto uma “nova ótica, nova abordagem” (p.36). Em certa medida, retomamos um dos pontos centrais que pretendo aqui contrapor: a noção de que os Cadernos etnológicos configuram-se enquanto um momento de inflexão no pensamento de Marx. Para Tible, “Marx manifestou uma hostilidade crescente ao colonialismo e ao capitalismo e passou a fazer uma apreciação distinta das forças potencialmente revolucionárias desses sujeitos outros [itálico do autor]” (p.36). Uma observação inicial: mesmo que a dialética conceitual entre “nós-outros” anteceda Marx (LEOPOLDO E SILVA, 2012), em nenhum momento essa distinção aparece com relevância na obra do autor alemão. Considerando o fato de que essa distinção está presente na antropologia contemporânea[1], acredito que Tible, nesse sentido, não conseguiu escapar de uma espécie de “Robinsonada Conceitual” ao transpor a realidade da produção teórica antropológica hoje para os Cadernos etnológicos de Marx – que é expressa também no título de um dos artigos de Tible semelhante a esse, a saber, “Marx e os Outros” (2014).

Retomando a citação, parece-me correta a afirmação de que Marx “manifesta uma hostilidade crescente ao colonialismo e ao capitalismo”, entretanto me parece equivocado sugerir que Marx “passou a fazer uma apreciação distinta das forças potencialmente revolucionárias desses sujeitos outros”. Para sustentar essa nova hipótese, Tible continua: “Em rascunho de carta para Ivanovna Zasulitch, Marx criticou Maine por sua hipocrisia, pois, tendo sido colaborador do governo inglês em sua destruição da comuna indiana, aludiu aos ‘nobres esforços’ desse governo que ‘fracassaram contra a força espontânea das leis econômicas’” (p.36); e enfim questiona: “como explicar essa capacidade de Marx de se transformar se nos lembrarmos de escritos anteriores sobre a colonização na Índia?” (p.36) Antes de apresentar a reposta de Tible para esse questionamento, devemos retomar um dos contrapontos aqui propostos: a ideia de inflexão no pensamento de Marx (“nova ótica, nova abordagem”). Agora sim, a resposta: “Por seu contato com as lutas. A riqueza de Marx e do marxismo reside nisto: na sua contaminação pelas lutas [itálico do autor]” (p.36).

Essa hipótese já esteve presente em outros textos do autor (a saber: TIBLE, 2013, p.59; TIBLE, 2014, p.218). Muito embora essa passagem de “Marx na floresta” não seja muito clara, a hipótese é melhor respaldada em sua obra Marx selvagem, na qual Tible diz que: “A força e especificidade de Marx e seu pensamento vêm de seu contato constante com as lutas e, mais, de sua capacidade de transformação com estas. Seus momentos de mudança coincidem com certas lutas […] Marx é o pensador das lutas. Não trabalhá-lo nesta perspectiva inviabilizaria o trabalho proposto” (TIBLE, 2013, p.17). No caso aqui proposto, a “luta” a que Tible se refere é a “organização iroquesa tal como trabalhada por Morgan” (p.17), mas esses “momentos de mudança” são constatados, na abordagem do autor, também em eventos como a Primavera dos Povos ou a Comuna de Paris. Parece-me evidente que esses acontecimentos influenciam a produção teórica de Marx na medida em que foram constitutivos da realidade efetiva no momento de suas investigações. Mas em que medida tais “contaminações” – nas palavras de Tible – promoveram transformações (“nova ótica, nova abordagem”) no pensamento de Marx? Reformulemos essa pergunta de acordo com a “luta” que Tible propõe no artigo “Marx na floresta”: em que medida a leitura de Marx da obra de Morgan, e consequentemente da organização dos Iroqueses, promoveu transformações (“nova ótica, nova abordagem”) no pensamento de Marx?

Parece-me evidente que a leitura de um autor como Morgan, cuja temática trabalhada era o que se tinha de mais sofisticado na Europa oitocentista, promoveu descobertas para as investigações que Marx desenvolvia. Por isso, há uma mudança na compreensão de Marx sobre uma sociedade pré-capitalista se considerarmos o modo pelo qual Marx tratou a Índia na década de 50 do século XVIII, quando tinha acesso apenas aos documentos da expedição britânica – ou seja, investigou uma nação com documentos de seus colonizadores – do modo como Marx tratou os Iroqueses a partir da leitura de Morgan, esta que é uma investigação sistemática e detalhada sobre uma comunidade sem classes. Mas essa mudança de compreensão não se configura enquanto uma inflexão, e sim como consequência de uma nova descoberta histórica, o que possibilita novas investigações.

Por exemplo: é notório que a teoria do valor de Marx ainda não estava constituída em sua obra Miséria da filosofia (1847), o que se concretizaria de maneira primorosa em O capital (1867) duas décadas depois. Mas será que é possível falar de uma “inflexão” no pensamento de Marx da publicação de Miséria da filosofia para O capital? Do ponto de vista do aperfeiçoamento das ideias econômicas de Marx, Miséria da filosofia constitui a primeira obra na qual Marx concebe “uma visão de conjunto das origens, do desenvolvimento, das contradições e da queda do regime capitalista” (MANDEL, 1968, p.55). A mudança de Marx para Londres poucos anos depois da publicação da Miséria da filosofia favoreceu demasiadamente suas investigações. Dentre outros motivos – como o próprio autor menciona no prefácio da Contribuição à crítica da economia política –, com a mudança para a capital inglesa, Marx teve acesso à “prodigiosa quantidade de materiais para a história da economia política acumulada no Museu Britânico” (MARX, 2008, p.51). Parece-me, portanto, que não há uma “inflexão” (“nova ótica, nova abordagem”) no pensamento de Marx de uma obra para outra. Mas outro exemplo disso está abaixo de nosso narizes, e Tible conhece como poucos as citações a seguir.

A primeira frase da seção 1 do Manifesto comunista, por exemplo, afirma que “a história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes” (MARX; ENGELS, 2010, p. 40). Entretanto, essa contundente afirmação tinha como fundamento a historiografia escrita até então, como Engels observa em nota de rodapé à edição inglesa de 1888 do Manifesto. Segundo Engels (2010, p.40), “a pré-história, a organização social anterior à história escrita, era desconhecida em 1847”, entretanto as descobertas nos anos que se seguiram trouxeram novas possibilidades de investigações[2] – tanto foi assim que essas novas descobertas, juntamente com a descoberta dos Cadernos etnológicos de Marx, motivaram Engels a produzir sua obra A origem da família, da propriedade privada e do Estado (1884). A essência do pensamento de Engels não mudou de 1847 a 1888. O desenvolvimento das pesquisas históricas, sim, mudou. Não há um “deslocamento de Engels” de uma obra para a outra, e nem seu modo de investigação – abordagem – foi alterado. Eis, portanto, minha resposta à provocação do parágrafo anterior: não há uma nova ótica ou uma nova abordagem no pensamento de Marx a partir de sua leitura de Morgan.

Retomando o artigo em questão, “Marx na floresta”: Tible propõe um diálogo entre Marx e o líder Yanomami Davi Kopenawa (p.36-39) – através da obra conjunta A queda do céu do líder indígena com o antropólogo francês Bruce Albert – e, assim, apresenta as constatações de Kopenawa sobre o assim mencionado “povo da mercadoria” (p.36). Segundo Jean Tible, “a crítica de Kopenawa aproxima-se da crítica marxiana do fetichismo da mercadoria” (p.39), e, assim, Tible também apresenta, a seu modo, sua interpretação sobre o fetichismo da mercadoria em Marx com base, é claro, o primeiro capítulo de O capital. Na sequência de suas formulações sobre o fetichismo da mercadoria, Tible endossa uma passagem de Isabelle Stengers e Philippe Pignarre, na qual os autores “defendem que não é no âmbito dos conceitos modernos que se deve tentar caracterizar o capitalismo, pois ‘a modernidade nos fecha em categorias demasiado pobres, tendo como eixo o conhecimento, o erro e a ilusão’”. Assim, Tible questiona: “quem pode conjugar sujeição e liberdade?” E concorda com a resposta de Stengers e Pignarre ao dizerem que, para eles, “é algo cujo os povos mais diversos – exceto nós, os modernos – sabem a natureza temível e a necessidade de cultivar, para se defender, dos meios apropriados”. (“Marx na floresta”, Margem Esquerda n.29, p.40; trechos de Stengers e Pignarre citados em tradução livre feita pelo por Jean Tible).

A formulação é genérica, mas, por si só, parece-me equivocado dizer que não é no âmbito dos conceitos modernos que se deve tentar caracterizar o capitalismo. Em contraposição, nos Grundrisse, Marx parece dizer exatamente o oposto ao mencionar que “a sociedade burguesa é a mais desenvolvida e diversificada organização histórica de produção” e que por isso “as categorias que expressam suas relações e a compreensão de sua estrutura permitem simultaneamente compreender a organização e as relações de produção de todas as formas de sociedades desaparecidas” (MARX, 2011, p.58). Percebam: Marx não só compreende que as categorias da moderna sociedade civil-burguesa são pressupostos para a compreensão de uma sociedade que adota o modo de produção capitalista, como também compreende que a apreensão da sociedade burguesa nos oferece a chave para compreensão de uma sociedade antiga, mas ressalta que isso deve ser feito “de modo algum à moda dos economistas, que apagam todas as diferenças históricas e veem a sociedade burguesa em todas as formas de sociedade” (2011, p.58) – ou seja, o que, nos próprios Grundrisse, Marx tratou como “Robinsonadas”. E claro, “as categorias expressam formas de ser, determinações de existência” (2011, p.59), são formas movidas e moventes da própria matéria, o que faz com que a categoria supere uma apreensão caótica, desordenada do todo (LUKÁCS, 1979, p.25). Portanto, mais uma vez, contrapondo-me ao modo como Tible apresenta a questão, não me parece viável caracterizar o capitalismo através de categorias e conceitos externos encontradas em sociedades que adotam outro modo de produção – ou no que Stangers e Pignarre chamam de “povos mais diversos”. Sigamos.

“O capitalismo configura-se como um sistema feiticeiro sem feiticeiros” (p.40); “capitalismo como mestre das ilusões” (p.41); “Se o capitalismo é um sistema feiticeiro, pode-se conceber a luta contra tal forma de organização da vida como um contrafeitiço” (p.41). Marx e Tible seguiram um mesmo caminho, porém, em sentidos opostos. Marx parte do fetiche para conceituar o fetichismo, refugiando-se “na região nebulosa do mundo religioso. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, como figuras independentes que travam relação umas com as outras e com os homens” (MARX, 2011, p.148). Essa é a forma como se manifesta o fetiche religioso. Mas Marx prossegue: “Assim se apresentam, no mundo das mercadorias, os produtos da mão humana. A isso eu chamo de fetichismo, que se cola aos produtos do trabalho tão logo eles são produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias” (2011, p.148) – já esta é a forma como se manifesta o fetichismo da mercadoria, que é uma especificidade das sociedades capitalistas, afinal, “todo o misticismo do mundo das mercadorias , toda a mágica e a assombração que anuviam os produtos do trabalho na base da produção de mercadorias desaparecem imediatamente, tão logo nos refugiemos em outras formas de produção” (2011, p.149).

Tible parece fazer o oposto. De sua compreensão do fetichismo da mercadoria (p.39), ele retoma o feitiço – palavra portuguesa que está na base da origem etimológica de “fetiche”, termo esse, para esses fins, cunhado por Charles de Brosses ainda em 1760 a partir da obra Du Culte des Dieux Fétiches – para caracterizar o capitalismo como “mundo enfeitiçado”[3]. Assim, para Tible, o objetivo do pensamento marxiano seria “o de explicitar seus processos [desenfeitiçar] para abrir caminhos de luta” (p.41), pois, embora Marx não acreditasse em feitiçarias, “suas novas categorias (e instrumentos de luta) contribuem decisivamente para desencantar as armas capitalistas e sua produção de consensos” (p.41-42). Ora, estamos diante de uma contradição: em um momento o capitalismo não pode ser caracterizado no âmbito dos conceitos modernos “pois a modernidade nos fecha em categorias demasiado pobres” (p.40), em outro, as categorias de Marx – “modernas” – são decisivas para “desencantar as armas capitalistas e sua produção de consensos” (p.42). Como as pobres categorias modernas ora são incapazes para caracterizar o capitalismo e ora se apresentam como solução aos “feitiços capitalistas”? Parece-me que, a rigor, as categorias modernas não são tão pobres assim.

Tible segue e sugere a “Revolução como desenfeitiçamento” e questiona: “como desenfeitiçar?” (p.42). E responde: “um primeiro passo é aprender com as lutas cosmopolíticas” (p.42). Com outras palavras, e provavelmente outra resposta, eu acredito que o primeiro passo é entendermos a essência do materialismo de Marx ao retornarmos à oitava tese de contra Feuerbach e compreender que “toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que conduzem a teoria ao misticismo encontram sua solução racional na prática humana e na compreensão dessa prática” (MARX, 2007, p.534). Assim, da mesma forma em que “as mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e trocar-se umas pelas outras” (MARX, 2013, p.159), os ingredientes do feitiço não chegam por si mesmos ao caldeirão. Desse modo, nem as mercadorias nem os feitiços devem impor resistência ao homem.

Já caminhando para a conclusão de seu texto, Tible remete a um relevante estudo da italiana Silvia Federici – a saber: O calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva (2017) – e, ao apresentar as formulações da italiana, endossa que na origem do capitalismo está a caça às bruxas, e que esse foi um ponto esquecido por Marx (p.42). A menção à obra de Federici é o único assunto que Tible inova em relação a seus textos anteriores. Embora pareça uma discussão interessante, gostaria de chamar a atenção para outra questão: o parágrafo sobre esse assunto me parece um pouco deslocado em relação às demais temáticas tratadas do texto. Acredito que isso se deu através da constatação de que Tible não diferencia algumas temáticas que são essenciais da antropologia – mas que não se resumem a esse campo de conhecimento apenas – como por exemplo: “Bruxaria”, “Fetichismo”, “Ritual”, “Fetiche”, “Feitiço”, “Simbolismo”, entre outras. Tible também não compreendeu que o sentido em que Marx utiliza tais termos como “espectro”, “fantasmas”, “feitiços” não tem relação alguma com o modo pelo qual os autores da antropologia fazem uso deles. Quando o líder Yanomami Davi Kopenawa utiliza o termo “feitiço”, por exemplo, ele faz uso de uma categoria que ele mesmo exprime para conceber o mundo – “às vezes se pode sentir no ar da floresta o cheiro do urucum e dos feitiços de caça” (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p.112). Já Marx, quando utiliza termos como “fantasmas”, “espectro”, “feitiço”, expressa não o modo pelo qual ele concebe o mundo, mas sim, a necessidade da crítica ao efeito ilusório que esses termos ensejam – aparentemente místicos, porém constitutivos do real. Por exemplo, na referência à metáfora do feiticeiro presente no Manifesto comunista, isso fica claramente perceptível: “a sociedade burguesa moderna, que conjurou gigantescos meios de produção e de troca, assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar os poderes infernais que invocou” (MARX, ENGELS, 2010, p.45). Assim, Tible se utiliza de tais categorias para promover uma aproximação de Marx com as temáticas antropológicas, ao passo que me parece, na verdade, que Marx está cada vez mais se distanciando delas.

Por fim, Tible termina seu texto criticando o marxismo. Ele sugere a hipótese de que “a certa fraqueza atual do marxismo deve-se a sua domesticação” (p.42) e menciona que “em vez de pensar a luta de classes a partir das bruxas, [os marxistas] preferiram deixar isso de lado e em vários momentos abraçaram seus caçadores… O espectro foi domesticado!” (p.43). Parece que Tible aponta para uma determinação unicamente positiva do “espectro do comunismo”, quando na realidade, a intenção da escrita do Manifesto comunista teve como objetivo exatamente o contrário: “é tempo de os comunistas exporem, abertamente, ao mundo inteiro, seu modo de ver, seus objetivos e suas tendências, opondo um manifesto do próprio partido à lenda do espectro do comunismo” (MARX, ENGELS, 2010, p.39). E como último ato crítico, parece-me que a utilização dessas dicotomias não marxianas – por exemplo bruxa/caçadores – enseja muito mais um recurso estilístico textual do que efetivamente uma constatação sobre o modo pelo qual tem se fundamentado a teoria marxista, em outras palavras, a forma da exposição de Tible se sobrepôs ao seu rigor.

Para finalizar, acredito que há uma diferenciação significativa que compromete a análise que Jean Tible faz de Marx, e gostaria de concluir apresentando tal diferenciação sob a forma de uma hipótese: ao passo que Tible é adepto, Marx é crítico a uma espécie de “razão etnológica”. Apresento essa formulação como uma hipótese na medida em que o produto da pesquisa que atualmente desenvolvo pode fornecer elementos para desvendá-la.[4] E claro, considerando a temática que investigo, e na condição de um estudante no Brasil, se por acaso eu ignorasse as formulações e hipóteses de Tible, minha pesquisa estaria incompleta. Eis o que justifica essas primeiras palavras a partir das quais espero que possamos estabelecer um proveitoso diálogo, afinal, apesar das diferentes interpretações, sabemos muito bem que ecoar os apontamentos históricos-etnológicos da obra de Marx é algo que nos interessa conjuntamente. A crítica escolhe um alvo, mas na essência da crítica estão as formulações de quem a executa.

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Notas:
[1] Vide, por exemplo: CASTRO, Eduardo Viveros de. “O medo dos outros”. Revista de Antropologia da USP, São Paulo, v. 54, n. 2, p.885-914, ago. 2011; MALUF, Sônia Weidner. “A antropologia reversa e nós: alteridade e diferença”. Ilha: Revista de Antropologia, Florianópolis, v. 12, n. 1, p.40-56, mar. 2010. Semestral.
[2] Ironicamente, ao apresentar tais citações para um autor que as conhece tanto quanto eu, só me vem à mente o que Althusser chamou de “citações célebres de Marx” (ALTHUSSER, 1979, p.157). Mesmo que nem Tible nem eu sejamos adeptos das formulações do pensador argelino/francês, acredito que concordaríamos que essa citação do Manifesto comunista seja uma “citação célebre” para os assuntos históricos/etnológicos em Marx.
[3] Para Tible, “o próprio Marx trata o capitalismo como mundo enfeitiçado” (p.41), muito embora não apresente a referência de onde Marx teria feito esse tratamento ou utilizado tais termos. Ao contrário, Tible puxa um rodapé e faz uma referência ao Anti-Édipo de Deleuze e Guattari no qual os franceses teriam citado a expressão como utilizada por Marx. Investiguei, portanto, a passagem do Anti-Édipo e me surpreendi com o fato de que Deleuze e Guattari parecem citar Marx mas na verdade não apresentam nenhuma referência. Segue o trecho em que os franceses falam do assim chamado “mundo enfeitiçado”: “Como diz Marx, no começo os capitalistas têm necessariamente consciência da oposição do trabalho e do capital, e do uso do capital como meio de extorquir sobretrabalho. Mas depressa se instaura um mundo perverso enfeitiçado, ao mesmo tempo em que o capital tem o papel de superfície de registro que se assenta sobre toda a produção” (DELEUZE, GUATTARI; 2010, p.23).
[4] A título de informação: em linhas gerais, minha pesquisa versa sobre a diferenciação entre as leituras que Marx e Engels fizeram da obra Ancient Society de Lewis Morgan.
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Referências bibliográficas:
ALTHUSSER, L. A favor de Marx. Rio de Janeiro: 1979, Editora Zahar, 2 Ed., 220p.
ANDERSON, K. B. Marx and the Margins: on Nationalism, Ethnicity and Non-Western Societies. Chicago: University of Chicago Press, 2010.
DELEUZE, G; GUATTARI, F. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. São Paulo: Editora 34, 2010, 559p.
KOPENAWA, D; ALBERT, B. A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, 729p.
LEOPOLDO E SILVA, F. O outro. São Paulo: 2012, Editora Martins Fontes, 62p.
LUKÁCS, G. Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx. Tradução Carlos Nelson Coutinho; revisão de Antônio Elias Ribeiro. São Paulo/SP: Livraria Editora Ciências Humanas LTDA, 1979.
MANDEL, E. A formação do pensamento econômico de Karl Marx: de 1843 até a redação de O Capital. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968, 211p.
MARX, K. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2008, 287p.
____. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2013, 181p.
____. Formações econômicas pré-capitalistas. São Paulo: Paz e Terra, 7Ed, 2006, 136p.
____. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013, 788p.
____. O capital: crítica da economia política, Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013, 894p.
MARX, K; ENGELS, F. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 2010, 271p.
______. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007, 614p.
TIBLE, J. “Lutas cosmopolíticas: Marx e América indígena (Yanomami)”. Lugar Comum, Rio de Janeiro, v. 1, n. 30, p.31-44, fev. 2012. Semestral.
_____. Marx e América indígena: diálogos a partir do conceito de abolição e recusa do estado. 2012. 221 f. Tese (Doutorado) – Curso de Sociologia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012.
_____. “Marx e os Outros”. Lua Nova. São Paulo, v. 1, n. 91, p.199-228, jul. 2014. Quadrimestral.
_____. Marx na floresta. Margem Esquerda: revista da Boitempo, São Paulo, n. 29, p.34-43, set. 2017. Semestral.
_____. Marx selvagem. São Paulo: Annablume, 2013, 242p.
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sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

El apoliticismo: una forma de hacer política

 
 por Pablo Guadarrama González

Desde que irrumpieron las ideologías políticas, especialmente las que conformarían la modernidad, se fueron decantando diversas corrientes con posturas muy divergentes entre sí, y por supuesto con fundamentos filosóficos muy heterogéneos, sobre la forma y las vías de cómo debía organizarse la vida social.

La mayoría de ellas definieron con claridad sus ideas respecto a la cuestión del poder político, como instrumento para perpetuar algunas élites o clases dominantes, o para dar paso al predominio de otros sectores sociales.

No hay que olvidar que por ideología se pueden considerar un conjunto de ideas que se constituyen en creencias, valoraciones y opiniones comúnmente aceptadas, las cuales, articuladas integralmente, pretenden fundamentar las concepciones teóricas de algún sujeto social (clase, grupo, etnia, partido, Estado, Iglesia, etc.), con el objetivo de validar algún proyecto bien de permanencia, reforma o subversión de un orden socioeconómico y político, lo cual siempre presupone de algún modo una determinada actitud ética ante la relación hombre-hombre y hombre-naturaleza.
 
Para lograr ese objetivo, las ideologías pueden o no apoyarse en pilares científicos o filosóficos, en tanto estos contribuyan a los fines perseguidos; de lo contrario pueden ser desatendidos e incluso ocultados conscientemente.

El componente ideológico en las reflexiones filosóficas por sí mismo no es dado a estimular concepciones científicas, pero no excluye la posibilidad de la confluencia con ellas, en tanto estas propicien la validación de sus propuestas.

La diferencia fundamental entre las ideologías y las filosofías radica en que estas últimas apoyan sus argumentos en el poder de la razón, en tanto las primeras pretenden fundamentar sus razones en el poder, ya sea político, económico, militar, mediático, etc.

Las principales ideologías que se conformarían en la modernidad fueron: el conservadurismo − que pretendía perpetuar la sociedad feudal con las monarquías, y en el caso de Latinoamérica el poder colonial − ; el liberalismo, que se planteaba reformar la sociedad hacia transformaciones capitalistas y republicanas; el socialismo, que aspiraría a cambiar radicalmente la organización política y social capitalista − completando así las propuestas democráticas al no reducirlas a derechos jurídicos y políticos, sino al logro de justicia social −, y el anarquismo, que en parte coincidía con esta última, pero se diferenciaba sustancialmente de ella por su presunto apoliticismo, así como por sus métodos terroristas y magnicidas.

En verdad el anarquismo no es apolítico, sencillamente porque nadie puede serlo, pues una forma de hacer política es pretender ser indiferente ante los acontecimientos sociales, sus necesidades y transformaciones. De manera que pretender ser indiferente ante la política es una forma hipócrita de hacer política.

José Martí se enfrentó al presunto apoliticismo de los anarquistas que no querían pronunciarse ante la lucha por la independencia. Afortunadamente el sentido común se impuso y estos se unieron a esa honrosa labor, de la misma forma que lo hicieron los anarquistas españoles aliándose a demócratas y comunistas para tratar de salvar la República durante la Guerra Civil.

Otras ideologías se conformaron en el siglo xx como el fascismo, que ha tratado de revertir las conquistas democráticas con prácticas políticas totalitarias, mesiánicas y racistas, o el neoliberalismo, que aparentemente pretende presentarse como una continuidad del liberalismo, pero en realidad ha logrado revertir muchas de las conquistas democráticas de este último.

Apoliticismo, conformismo, abstencionismo

La mayoría de las ideologías políticas han promovido la participación política, pero en los últimos tiempos, cuando el neoliberalismo ha triunfado, más ideológicamente que en cuanto a logros sociales para la mayoría de la población, algunos de sus “tanques pensantes” han estimulado el apoliticismo como medio para inculcar la indiferencia y la resignación entre algunos sectores populares, especialmente los jóvenes, a través de la consigna de que nada se puede hacer para lograr sociedades más justas y más amigables con el medio ambiente.

El conformismo es uno de los componentes aliados del apoliticismo. Ambos pretenden opacar el protagonismo de aquellos que se pueden convertir en potenciales peligros para la añorada, pero no lograda, estabilidad de la sociedad capitalista.

El incremento del abstencionismo observado en la mayoría de los procesos electorales de numerosos países puede tener diferentes lecturas. Una de ellas puede ser entenderlo como síntoma de impotencia de un considerable porcentaje de la población que se siente frustrada al no apreciar cambios favorables en sus condiciones de vida una vez instalados nuevos gobiernos que mantienen políticas neoliberales.

Otra es expresión del acomodamiento de una indecisa clase media que es fácilmente manipulada por los medios de comunicación, ya que le interesa más la renovación de su automóvil o de los electrodomésticos, que lo que pueda transformarse de la puerta de su casa hacia afuera. No faltan los que piensan que su voto no será decisivo para cualquier tipo de cambio a través de la elección, pues ya todo está arreglado de forma inamovible en la «democracia representativa» aunque cambien los nombres de los gobernantes, y en algunos casos ni siquiera eso, pero no cambian las políticas socioeconómicas en los gobiernos que se alternan y suceden.

Apoliticismo en el socialismo

En el caso de países socialistas la intención que subyace en el apoliticismo tiene otras lecturas, como puede extraerse de las experiencias de su derrumbe en la Unión Soviética y los países de Europa Oriental.

Esta situación es algo distinta, pues no esconde la pretensión de sembrar entre determinados grupos de la población, fundamentalmente jóvenes, la indiferencia ante las conquistas sociales alcanzadas. Dado que estos no han conocido el capitalismo, por lo general consideran que disfrutar de la salud, la educación, el deporte, la cultura, etc., de forma gratuita, es algo natural y no constituye nada extraordinario, por lo que añoran, sin renunciar a ellas, el disfrute de las extraordinarias “ofertas” de la sociedad de consumo.

Algunos presuntos “apolíticos” se abstienen de ejercer el voto en procesos electorales o votan en blanco, y creen que con esta actitud expresan su valentía política, lo cual confirma que esto es un acto político. Otros aducen que la única democracia es la multipartidista, e ignoran así que en la historia de la humanidad han existido y existirán múltiples formas de democracia y no solo la representativa.

Al hiperbolizarla, algunos gobernantes creen poseer el “democratómetro” perfecto para medir su existencia en otros países y por lo que les envían observadores para fiscalizar sus procesos electorales, pero no permiten que a su vez observadores de otros países los visiten.

Siempre recuerdo cuando le pregunté a mi madre por qué militando en el Partido Liberal había apoyado al Movimiento 26 de Julio –por ello cayó presa, fue amenazada de ser envenenada y tuve que llevarle la comida hecha en casa cada día a la estación de policía de Santa Clara–, me respondió que porque no había nada más parecido a un liberal que un conservador y un conservador a un liberal. Ambos eran la misma basura y por eso tomó esa decisión. En Colombia dicen que la diferencia entre un conservador y un liberal es que unos van a misa en la mañana y otros en la tarde.

Nunca olvidaré el agobiado rostro, por las torturas y vejaciones recibidas, de Mercedes Vázquez, su compañera de celda, ni los gemidos de los torturados, que aún algunos vecinos del parque del Carmen recuerdan. Los instrumentos de tortura fueron exhibidos el primer día del triunfo de la Revolución. Es bueno recordarles esto a los amnésicos apolíticos o a los que no conocen que esto sucedió donde hoy sonríen estudiantes de la escuela secundaria básica Capitán Roberto Rodríguez (El Vaquerito).

De manera que el presunto apoliticismo − que debe reiterarse no es tal, sino en realidad otra forma sutil de hacer política contestataria − en el caso de Cuba debe ser considerado en aquellos que lo practican una expresión de inconformidad con el sistema social elegido, mantenido y defendido por la mayoría de su pueblo. De otro modo no se explica que el derrumbe del muro de Berlín y del “socialismo real”, o tal vez “real de socialismo”, no haya llegado a alcanzar en su onda expansiva a la isla del Caribe.

El apoliticismo, que tal vez para algunos ingenuos pueda ser considerado como otra manifestación de la pregonada “muerte de las ideologías”, en realidad es todo lo contrario: una evidencia de que la lucha ideológica revitaliza algunas viejas formas y formula otras nuevas.

Al igual que en el anarquismo subyacían posturas individualistas, voluntaristas y nihilistas, al negar muchos valores de la sociedad moderna − que incluso Marx y Engels, no obstante sus críticas a la misma, reconocieron, como puede apreciarse en el Manifiesto comunista − , el apoliticismo contemporáneo está permeado por fundamentos filosóficos, conscientes o inconscientes, de corte pragmatista, utilitarista y existencialista, en los que el éxito individual se sobrepone a todo compromiso social.

Apoliticismo en Cuba

No es la primera vez que el apoliticismo ha pretendido ganar adeptos en la historia de la sociedad cubana y no solo entre los anarquistas. También al inicio de la República mediatizada hubo expresiones de conformismo por parte de algunos antiguos sectores anexionistas que tratarían de inculcar la nefasta idea de que la intervención norteamericana en la guerra independentista y la ocupación militar por parte de los Estados Unidos de América había sido una bendición que había que agradecer, por lo que no se debía manifestar ningún tipo de inconformidad política ante aquel hecho.

Afortunadamente, en los años 20 una nueva generación juvenil, intelectual y política expresada en la Protesta de los Trece, el Grupo Minorista, la creación de la Federación de Estudiantes Universitarios −liderada por Julio Antonio Mella−, la fundación del Partido Comunista de Cuba, y las luchas contra la dictadura de Gerardo Machado y la injerencia yanqui, así como un fortalecimiento de las luchas obreras, revitalizaron la conciencia política nacional cubana y el espíritu independentista que se pretendía apagar.

Del mismo modo la Generación del Centenario, inspirada nuevamente en el ejemplo de José Martí, reiniciaría la lucha por la dignidad del pueblo cubano frente a la sangrienta dictadura de Batista y obligó a los indecisos a definirse políticamente.

El triunfo de la Revolución cubana sería crucial en ese enfrentamiento al apoliticismo, especialmente cuando ante la agresión de Playa Girón se declara su carácter socialista y no podrá justificarse más ningún tipo de indiferencia ante las enormes transformaciones sociales emprendidas, como la nacionalización de las empresas extranjeras, la Reforma Urbana, la Reforma Agraria, la Campaña de Alfabetización, la Reforma Universitaria, la amplia socialización de la educación y la salud, el nacimiento de nuevas organizaciones como los Comités de Defensa de la Revolución, la Federación de Mujeres Cubanas y la gestación de un nuevo Partido Comunista de Cuba.

Cuando el pueblo cubano se vio amenazado por una nueva intervención militar norteamericana y el mundo estuvo muy próximo a que se desatara una guerra nuclear, a partir la crisis de los misiles soviéticos en este país, a nadie se le ocurría justificar una actitud apoliticista. El pueblo cubano demandaría a cada ciudadano definirse de cara a una situación en la que no había una tercera opción ante la consigna de Patria o Muerte.

¿Triunfará el apoliticismo?

Vivimos una nueva época en la que pareciera que tales confrontaciones son cosas del pasado y no faltan quienes inculcan la idea de que se deben olvidar. Por supuesto, quienes promueven tales consignas para borrar la memoria de las nuevas generaciones saben muy bien que el pueblo que no conoce su historia está obligado a repetirla.

Otros ilusos piensan que al ir desapareciendo por ley natural la generación que encendió la llama revolucionaria, esta debe apagarse. Tal vez olvidan la historia del pueblo cubano, por no decir la historia universal, que evidencia que las grandes transformaciones no han sido emprendidas por líderes solitarios. Estas solo se han hecho posibles si han sido asumidas por los sectores populares.

Cuando se conoció la noticia de que José Martí se encontraba en los campos de batalla, su amigo el escritor colombiano José María Vargas Vila publicó un artículo calificando ese hecho como una locura.

Al día siguiente, Enrique José Varona – a quien el Héroe Nacional tras su ausencia le confió la dirección el periódico Patria – le respondió con otro artículo en el que sostenía que Martí no estaba loco, porque sabía que había un pueblo entero esperando por él para la lucha independentista. Agregó que su actitud revolucionaria era tan alta como el Pico Turquino, pero los picos no nacen de sabanas, sino acompañados de otros tan altos como él: Máximo Gómez, Antonio Maceo, Calixto García, etc.

La clara concepción del protagónico papel del pueblo en las transformaciones sociales Martí la expresó al plantear:

Nada es un hombre en sí, y lo que es, lo pone en él su pueblo. En vano concede la Naturaleza a algunos de sus hijos cualidades privilegiadas; porque serán polvo y azote si no se hacen carne de su pueblo, mientras que si van con él, y le sirven de brazo y de voz, por él se verán encumbrados, como las flores que lleva en su cima una montaña.[1]
 
La mejor forma de enfrentar el apoliticismo es contribuir al estudio de la historia del pueblo cubano, sus luchas emancipadoras, el optimismo revolucionario que ha inspirado a sus líderes desde Céspedes hasta Fidel y Raúl, así como a todos los que le han acompañado y otros que aún le acompañan.

Cuando alguien pierde la confianza en la pujanza y la vehemencia de un pueblo como el cubano en la lucha por su dignidad, pasa a formar parte de lo que Martí denominó sietemesinos. Por suerte, la mayoría de los cubanos han nacido de parto natural.

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[1] José Martí. Obras completas, Editorial Ciencias Sociales, La Habana, 1976, t. XIII, p. 34.
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quarta-feira, 29 de novembro de 2017

quarta-feira, 5 de julho de 2017

Relativismo e escolanovismo na formação do educador: uma análise histórico-crítica da licenciatura em educação do campo


Resumo: O objeto desta pesquisa refere-se às pedagogias escolanovistas/relativistas que subsidiam as proposições hegemônicas das políticas oficiais de formação de professores no Brasil e a sua relação com os projetos do curso de Licenciatura em Educação do Campo. O objetivo central diz respeito à análise crítica dos fundamentos epistemológicos e pedagógicos da Licenciatura em Educação do Campo, em especial a sua proposição de formação para a docência multidisciplinar por área do conhecimento, tomando por base a categoria da universalidade e o princípio da apropriação do conhecimento científico na perspectiva marxista. A hipótese do estudo é a de que a Licenciatura em Educação do Campo entra em contradição com seu enraizamento nas lutas da classe trabalhadora ao adotar fundamentos teóricos oriundos do escolanovismo e do relativismo epistemológico e cultural que se constituíram em suportes para as reformas da formação de professores levadas a cabo desde os anos 1990 pelas políticas neoliberais. A investigação, com referência no materialismo histórico-dialético, me conduziu à elaboração das seguintes teses: 1. As formulações hegemônicas em educação sintetizadas no lema “aprender a aprender”, divulgadas pela ONU/UNESCO/UNICEF e Banco Mundial, têm transpassado os círculos intelectuais do pensamento pedagógico de esquerda com o discurso sedutor da educação para a diversidade, a cotidianidade, os saberes espontâneos e locais em detrimento da máxima apropriação do conhecimento pelas camadas subalternas da sociedade. Os projetos da Licenciatura em Educação do Campo têm incorporado esses princípios e orientado a formação de professores, em termos de fundamentação teórico-metodológica, àquele ideário. Diante dessa afirmação, impõem-se como necessidade a crítica rigorosa a esses ideários, articulada à construção de proposições superadoras na formação do educadores no campo ou cidade. 2. A categoria da “universalidade”, na perspectiva do Marxismo e das formulações da Pedagogia Histórico-Crítica, apresenta-se como resposta diametralmente oposta às proposições escolanovistas/relativistas e um vigoroso suporte na luta contra o esvaziamento da formação do educador. Desta feita, a defesa de uma formação de professores que valorize a transmissão/apropriação do conhecimento em suas formas mais ricas e universais na educação escolar é essencial para desenvolvimento dos indivíduos singulares, assim como para o avanço da organização das lutas da classe trabalhadora em direção à possível emancipação da humanidade.

Palavras-chave: escolanovismo, relativismo, marxismo, universalidade, Pedagogia Histórico- Crítica, formação de professores, Licenciatura em Educação do Campo.

Abstract: The object of this research refers to New School‟s / relativist pedagogical propositions that support hegemonic official policies on teachers‟ education in Brazil and its relationship with the projects of the Bachelor's Degree in Education for Rural Purposes. The main objective which regards to critical analysis of the epistemological and pedagogical fundaments in Education for Rural Purposes, in particular its proposals for multidisciplinary education for teachers by field of knowledge, based on the category of universality and the principle of appropriation of scientific knowledge in the Marxist perspective. The study hypothesis is a Degree in Education for Rural Purposes in contradiction with their roots in working class struggles to adopt theoretical foundations from the New School‟s postulates and the cultural and epistemological relativism that constitute themselves to support the reform of teacher education conducted since the 1990s by neoliberal policies. The investigation, referencing to historical and dialectical materialism, led me to draw up the following theses: 1. The hegemonic formulations on education summarized in the motto "Learning to Learn”, published by the UN /UNESCO / UNICEF and the World Bank, have pierced the intellectual circles of the pedagogical left-wing way of thinking with the attractive discourse of overvaluation the diversity, of everyday life, spontaneous and local knowledge over the utmost ownership of knowledge by the subaltern classes of society. The projects on Bachelor Degree in Education for Rural Purposes have incorporated these principles and guided the training of teachers in terms of theoretical and methodological basis, to that ideal. 2. The category of "universality" in the perspective of Marxism and the formulations of Historical and Critical Pedagogy, is presented as a diametrically opposed response to New School‟s / relativist propositions and a strong support in the struggle against the undermining of teachers‟ education. Thus, the defense of a teacher education that enhances the transmission / appropriation of knowledge in its richest and most universal forms is essential for the development of single individuals, as well as to advance the organization of working class struggles towards overcoming social relations of domination and exploitation.

Keywords:
New School, relativism, Marxism, universality, Historical and Critical Pedagogy, teacher education, Degree in Rural Education.
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arquivo em PDF
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SANTOS, Cláudio Eduardo Félix dos. Relativismo e escolanovismo na formação do educador: uma análise histórico-crítica da licenciatura em educação do campo. Orientadora: Prof. Celi Nelza Zulke Taffarel. Tese (doutorado), 268 f. – Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação, Salvador, 2011.
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domingo, 18 de junho de 2017

A ironia realista dos dândis revoltados


por Paulo Ayres
 
Minha vida é tão confusa quanto a América Central
por isso não me acuse de ser irracional.
(EngHaw/Humberto Gessinger)

O disco amarelo da engenharia havaiana está completando 30 anos. Obra-prima que surge na efervescência do movimento BRock (rock brasileiro oitentista), A revolta dos dândis (Brasil, 1987) é um excelente vinho que fica mais aprazível à medida que envelhece e, assim, este aspecto de ser datado se salienta na obra (paradoxal? Não, apenas uma característica dialética da arte realista, particular-historicizante e universal-humanista ao mesmo tempo). No calor do momento, era apenas mais um outro bom disco de hits das bandas mais destacáveis do movimento ou, quando em atrito, no contato superficial, despertou a desconfiança e o olhar torto de alguns: estes engenheiros do curso de arquitetura da UFRGS seriam um grupo de gaúchos elitistas e niilistas (chamados até de fascistas) que, vindos de longe demais das capitais (Rio-Sampa, e Brasília também no caso do rock), destoariam da diversão brega, do progressismo engajado e da acessibilidade popular dominantes no rock brasileiro. Se tivesse sido a banda de um disco só, tal rótulo não estaria tão inadequado assim, porque o álbum de estreia (Longe demais das capitais, 1986), além de apresentar um ska-rock/new wave modesto, abraça com gosto o irracionalismo moderno com aura existencialista-blasé, seguro desta posição e fechado nela. Daí que apresentar um segundo disco potente e realista como este é algo que causa mais surpresa.

Numa leitura superficial, no entanto, A revolta dos dândis (e alguns discos subsequentes) continuaria filiada à defesa do derrotismo irracionalista. Leitura “que não passa de ilusão”. Os Engenheiros do Hawaii — ou se quiser, Humberto Gessinger, o mentor da banda que se confunde com ela própria se desdobram tanto numa sucessão de ironias e lamentos autorreflexivos ("quando se anda em círculos nunca se é bastante rápido") que não boiam no moralismo niilista, mas, ao contrário, fazem do moralismo niilista o objeto de análise, isto é, um objeto ironizado, neste caso. Os dândis revoltados (o título do álbum retirado do nome de um capítulo de O homem revoltado, de Albert Camus já traz uma carga irônica com o estereótipo de pequeno-burguês romântico e hipsterizado) não vem apresentar o discurso do alto do sua falsa iconoclastia, de nariz em pé, achando que está alheio à pendenga entre Fidel e Pinochet, mas é observado como parte deste nosso mundo antagônico, refletindo suas contradições e, no fim, sendo um elemento que se posiciona sobre esta realidade social (o "bater em retirada" típico do niilismo é visível na sua melancólica covardia). Deste modo, a canção mais famosa do disco (e de toda a discografia da banda), “Infinita Highway”, sintetiza esse dilema interno com sua estrutura longa e "ficcional". Seria muito simplório, para não dizer boboca, se a metáfora da rodovia, como suspensão filosófica do caos antagônico da cidade, fosse só isso e o puro discurso individualista-masturbatório afirmado. Há um diálogo implícito dentro do aparente monólogo. Um casal, um duo. Representando duas visões de mundo distintas. Temos acesso a este debate filosófico através da fala do eu-lírico, masculino e, tudo indica, um dândi existencialista de saco cheio deste mundo estranhado (aquela velha revolta desfocada do anticapitalismo romântico). Sabemos pouco, bem pouco, da garota com quem o eu-lírico procura estabelecer um pacto, mas se percebe que ela questiona certos arroubos niilistas do rapaz. Ela é a voz da razão (Vernunft) que não cede facilmente aos encantos do “foda-se” individualista-irracionalista e que pode desligar o telefone na cara dele, caso este papo filosófico de boteco fique "muito abstrato" (ela não está viajando junto, mas possivelmente ele está tentando convencê-la de ir por essa highway em sua companhia). A sobriedade da garota/razão está tão bem posta que o eu-lírico existencialista precisa fazer uma concessão nas suas fantasias de “livre arbítrio”: “tudo bem, garota, não adianta mesmo ser livre/se tanta gente vive sem ter como viver”. Nessa frase, que é a frase-chave da canção e do disco, a fuga egocêntrica se mostra na sua fragilidade. 

E qual é este lugar tenebroso do qual (quase) todos nós gostaríamos de fugir? A resposta é o título de outro dos singles mais célebres de Gessinger e sua turma: “Terra de Gigantes”. Para alguns, esta balada melancólica é o suprassumo do pessimismo. Não é bem assim. Ou melhor, não se deve confundir o eu-lírico, um dândi lamentador entre deprê e blasé, com a mensagem passada, pois há sinalizações de realidade para além do que este eu-lírico representa. No conteúdo, não tem nada de universal (“pois, agora, lá fora todo mundo é uma ilha...”, isto é, “agora”, não “sempre”). Ou seja, não é sobre a passagem para a fase adulta e o desencanto disso propiciado pela vida humana. É sobre a passagem para a fase adulta e o desencanto propiciado em um cotidiano burguês determinado historicamente. E, se quisermos ser mais específicos, é o lamento de um jovem médio-classista e “cabeça” percebendo que a juventude prafrentex, por mais barulho que faça, tende a terminar “como nossos pais” (para citarmos Belchior). Entre hippies e punks, entre DCEs e cirandas, a geração Coca Cola se atola na transgressão (legado foucaultiano). Diferente dos jovens chineses, coreanos, cubanos e vietnamitas que, na segunda metade do século XX, abalaram as estruturas, esta juventude faz, no máximo, uma algazarra nas superestruturas. Deste modo, a “terra de gigantes” (selva capitalista) continua firme e forte trocando vidas humanas (com sua força de trabalho sugada, inclusive) pela riqueza mercantil, por diamantes.

O que desperta a revolta destes mauricinhos conscientes (refiro-me tanto aos músicos-autores quanto aos eus-líricos) é perceber que estão dentro de um processo bem mais complexo que o preto-no-branco, isto é, que estão entre polos contraditórios num movimento de enfrentamento e reciprocidade os “dois lados da mesma moeda”. Isso corrobora perfeitamente com a forma de composição de Gessinger, um estilo personalíssimo em sua dosagem, cujos ingredientes dos versos são: antíteses (ideias contrárias), aliterações (utilização das mesmas consoantes), assonâncias (uso seguido das mesmas vogais), paronomásias (palavras de sons semelhantes), além das referências explícitas e implícitas a fatos históricos, teorias e obras artísticas. A dialética é, justamente, o assunto das duas faixas que dão nome ao álbum e a ignição nessas duas viagens aceleradas são dois toques introdutórios; uma espécie de vinheta ligeira que ajuda a destacar as duas faixas como momentos de síntese da obra (faixas, aliás, com roupagem folk feita pelo violão de Augusto Licks). Por isso estas letras do Bob Dylan dos pampas seguem o esquema de ligar vários pares contraditórios através da localização ontológica (“A Revolta dos Dândis I” usa o termo “entre”) e da subjetividade do sujeito (“A Revolta dos Dândis II” diz “já não vejo diferença entre” tal coisa e tal coisa). Assim sendo, neste tertium datur cantado de polos naturais (real e abstrato) e polos sociais (lutas de classes, época da Guerra Fria), se reflete o mundo do capitalismo tardio e a situação do indivíduo atomizado-burguês que o habita. E se “A Revolta dos Dândis II” parece pouco dialético, e mais para sofista e niilista, é porque é necessário enxergar esta canção como complemento da outra e ver para além do subjetivismo do eu-lírico. Isso é sugestionado pela letra que indica uma opinião, um olhar (“já não vejo” é a expressão repetida), além disso, o eu-lírico de “A Revolta dos Dândis I” surge, no final desta sexta faixa, com outro timbre de voz a voz da sobriedade, da razão, ora pois , repetindo alguns versos da primeira faixa, entre eles o sugestivo “entre a loucura e a lucidez” que separa o que o eu-lírico irracionalista tinha juntado com o seu subjetivismo (“já não há mais diferença entre a raiva e a razão”). Fazendo um jogo de luz e sombra, “A Revolta dos Dândis II” é o momento de loucura (e não “Vozes”). Deste modo, quando a ideologia irracionalista questiona o caráter dialético do real, a lucidez correspondente (a razão dialética) retorna e joga luz sobre esse fato. É essa lucidez, aliás, que faz da faixa mais carregada de ironia, a quinta (“Filmes de Guerra, Canções de Amor”), uma crônica cínica, mas precisa. Assim como a clássica “Ouro de Tolo” do Raul Seixas, a vida cotidiana (Alltasgslebens) burguesa é ridicularizada sem dó nem piedade (com direito ao brasileiríssimo acompanhamento carnavalesco ao fundo do rock que está em primeiro plano). “Não me peça pra entender/esquecer/escolher" pede o sujeito (ou sujeitos, visto que Carlos Maltz divide os vocais nessa). O “fio ciumento” do amor burguês e o “frio do campo de batalha” das guerras não têm nada de nobres e honrosos. São artigos tão comerciais quanto suas representações no gênero temático-cinematográfico de “filmes de guerra” e no gênero temático-musical das “canções de amor”.

Por falar em canções de amor, há duas faixas cujo tema é o amor romântico, “Refrão de Bolero” e “Desde Aquele Dia”. Nenhuma delas faz a manjada romantização deste amor burguês. O que temos nas duas é o “fim do mundo todo dia da semana” de um cara que teve a vida emocional revirada por estar obcecado pelos lábios labirínticos de uma tal de Ana e pelo “rosto de menina” de uma “heroína”. O tom trágico dita essas lamentações. 

Labirintos, círculos, highway, velocidade, pressa, caminhos, fronteiras... o disco A revolta dos dândis é a ilustração de uma viagem de tomada de consciência social, porém sem consciência de classe por parte dos eus-líricos. Afinal, eles são anticapitalistas românticos e nós, através do feeling adequado de Gessinger nas letras, os enxergamos ou melhor, ouvimos nas suas insuficiências e deslizes nesta postura de revolta desorientada. Assim, pode parecer uma recomendação clichê, óbvia, mas é necessário sempre demarcar a diferenciação (que pode haver) entre o autor da obra e os personagens (no caso da ficção) e entre o autor da obra e os eu-líricos (no caso da lírica: poemas e canções). E, além disso, é necessário atentar para uma particularidade do complexo artístico: às vezes, a obra de arte transcende as visões de mundo viciadas de determinado autor e, até ganhando vida própria para além deste “perfil pessoal" do artista, se constitui como grande arte, ou seja, como arte realista/humanista. Eis o fenômeno que Marx, Engels e Lukács percebem como o triunfo do realismo. Daí que não é nenhum absurdo que o monarquista Balzac tenha produzido arte realista e que o cineasta realista Scorsese, no plano pessoal, não seja socialista, isto é, não tenha consciência de classe (não sei das opiniões político-econômicas do diretor norte-americano, estou usando apenas para exemplificar). Portanto, não se deve cometer a mesma injustiça com os Engenheiros do Hawaii que Lukács cometeu com Kafka e Proust (sim, até o mestre dos estudos estéticos pode tropeçar e não aplicar corretamente seu próprio método em análises de determinadas obras). Nos ensaios de Realismo crítico hoje, o filósofo húngaro faz uma análise superficial, apressada, de romancistas tidos como vanguardistas, não se atendo a leitura imanente de suas obras, mas se baseando nas suas temáticas e o que eles disseram em entrevistas sobre suas respectivas concepções ideológicas. Independente se Kafka era fã de filosofia existencialista, o fato é que sua obra transcende o vanguardismo (reduto literário onde se canaliza essa visão irracionalista-filosófica) e revela a essência do cotidiano do pequeno-burguês alienado no capitalismo monopolista. Mutatis mutandis, é a mesma coisa quando falamos do feeling realista de Gessinger. Se ele é existencialista, católico ou umbandista na visão pessoal de mundo, não afeta a maioria de suas composições descontando-se, como foi dito, o primeiro disco da banda, em que não há, ainda, o triunfo do realismo. Na verdade, tal orientação ideológica afeta apenas na temática: muitas de suas canções, especialmente em A revolta de dândis, são sobre dândis irracionalistas, contudo, não se ajustando de maneira fechada a estes eus-líricos hipsters e revoltados, e sim se aprofundando na autorreflexão irônica que permite detectar as antinomias e limitações destes personagens poéticos.

Até mesmo porque, se Sartre e Camus comparecem em A revolta dos dândis não significa que suas filosofias sejam reverenciadas ao pé da letra. Aliás, a literatura de Camus, diferente da de Kafka, não consegue o triunfo do realismo, sendo um exemplo de canalização da ideologia existencialista (ou absurdista, como Camus chamava a sua própria corrente existencialista: algo que está ruim sempre pode piorar). Entretanto, não é problema o fato de o belo refrão da faixa “A Revolta dos Dândis I” fazer clara referência ao romance O estrangeiro, de Camus, pois a visão antropológico-individualista, o sentimento de recortado socialmente, é sublinhado na fala deste eu-lírico como isso mesmo: uma percepção, um sentimento (“eu me sinto estrangeiro, passageiro de algum trem...”) e não ontologicamente (“eu sou um estrangeiro, passageiro...”). Já Sartre (ou seria melhor dizer, “o primeiro Sartre”?) está presente até nominalmente no disco, mas a sua filosofia (uma repaginação da ideia de “livre-arbítrio” numa versão individualista e ateia) é colocada em dúvida sarcasticamente (afinal, “a dúvida não é o preço da pureza"?) e, para se defender, o eu-lírico, na última canção (“Guardas da Fronteira”), sugere que se está errado na sua crença em “liberdade absoluta”, o mentiroso não é ele, mas o pensador francês que o influenciou. Esta última faixa (com a participação de Júlio Reny cantando), aliás, é a culminação da viagem reflexiva que é A revolta dos dândis. O pequeno-burguês romântico está puto da vida. Com vontade de jogar o vaso na TV e esta pela janela. E se há a desconfiança de que o “livre-arbítrio” dos existencialistas seja um mito, por outro lado, o eu-lírico não parece nem um pouco a fim de ceder ao mito oposto, o determinismo (o refrão é antideterminista). Ainda bem. Lado B de bacana.

O lado B neste disco significa, também, baixo. Com exceção de “Vozes”, as canções deste lado possuem uma vibrante linha de baixo (tocado por Gessinger) em primeiro plano, deixando um clima soturno, principalmente nos momentos em que os antagonistas da humanidade e protagonistas da desumanidade se tornam mais nítidos para o eu-lírico (em “Além dos Outdoors”, “Quem Tem Pressa Não Se Interessa” e “Guardas da Fronteira”): as mercadorias. Elas são citadas, diretamente ou indiretamente, nas personificações do capital (o “eles” de “mas a razão é só o que eles têm” e “mas é assim que eles fazem” reapareceria na joia chamada “3ª do Plural”, composta por Gessinger, tempos depois) e, ostensivamente, em outdoors vistos neste percurso. É preciso, de alguma maneira, enxergar para além dos outdoors, além da nojenta publicidade, além do fetichismo de mercadoria (objetivamente, não podemos superá-lo dentro do mundo burguês, mas subjetivamente, ideologicamente, podemos ver além deste fetichismo). Afinal, diferente das aranhas que “não tecem suas teias, por loucura ou por paixão” (Marx também compara aranhas e abelhas com trabalhadores para destacar o que é ontologicamente próprio da humanidade), o ser social possui a capacidade de prévia-ideação onde projeta e escolhe entre um determinado leque de alternativas concretas e age de acordo com uma teleologia (intenção). Eis a concreta, a real, a materialista e dialética, liberdade. Aquilo que é tão buscado na viagem filosófica de A revolta dos dândis, mas o eu lírico revoltado avisa “você sabe o que eu quero dizer, não está escrito nos outdoors” e, não sabendo explicar adequadamente esta categoria da liberdade, oferece apenas o “silêncio sempre maior” como protesto impotente a este mundo estranhado (atitude que lembra o silêncio de Wittgenstein, mencionado por Lukács).

Quanto à frase “mas a razão é  só o que eles têm”, como o “eles” se refere aos apologistas diretos do capital , a “razão” criticada é o empobrecido e manipulatório racionalismo formal. Falta ontologia, falta ética, falta humanismo para esse objetivismo reificador que se atém ao entendimento (Verstand). Mas o que pode fazer um dândi romântico contra esse mundo e essa ideologia, já que a sua própria ideologia é tão unilateral quanto a “razão” (racionalismo formal) que ele critica? É na destoante “Vozes”, todavia, que há uma pausa no ritmo da pressa, da velocidade, para revelar como este eu-lírico recarrega as baterias na solidão reflexiva, pois é isto que quer dizer a “noite” na canção: um momento de refletir sobre as “revoltas banais”. Já “as vozes” podem ser interpretadas como as diferentes (e excludentes) correntes ideológicas tanto que a faixa seguinte trata das “vozes oficiais” da apologia direta. A falta de uma racionalidade objetiva contribui para o hipster se sentir um esquizofrênico, ora assustado ora atraído ora arrependido por determinadas ideias. A ambiguidade é que esta solidão, neste mundo burguês, lhe conforta e lhe machuca. E a enfermidade do relativismo e da inconstância surge na própria forma da canção: um desfecho arrebatador e ensolarado nos tira do cenário tristonho e abre um robótico reggae onde são reproduzidas as “vozes oficiais” de maneira eletrônica. As banalidades do dândi revoltado ficam expostas: a apologia indireta do mundo burguêsBeatnick ou bitolado? Beatnick e bitolado. Beatnick é bitolado. Possivelmente, um beck e um filme do Godard colocam as coisas no prumo para a  viagem de A revolta dos dândis prosseguir... até chegar o momento de jogar o vaso na TV. O dândi revoltado não é cool. Só está nu. Jogando strip poker com cientificistas, analistas e generais no vagão de um trem.

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[0] Escrito em: 15-16/06/2017.
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